Migalhas Marítimas

Trabalhador marítimo e coberturas de P&I sob a óptica da Maritime Labor Convention (MLC/06)

Trabalhador marítimo e coberturas de P&I sob a óptica da Maritime Labor Convention (MLC/06).

2/12/2021

Os recorrentes casos de abandono de trabalhadores marítimos nas costas brasileiras, bem como a recente promulgação da Convenção sobre Trabalho Marítimo - CTM (MLC - Maritime Labor Convention) por meio do decreto 10.671/21 no Brasil, traz a necessidade de reflexão acerca dos exatos limites de cobertura e responsabilidade dos Clubes de P&I (Protection and Indemnity) nestas hipóteses.

A definição do trabalhador marítimo está prevista nas Convenções 221, 1452 e 1853 da Organização Mundial do Trabalho e o indicam como “marinheiro”, “gente do mar” e até mesmo “marítimo”. Já o decreto 2596/984, art. 1º, I define o trabalhador marítimo como “aquaviário”.

CTM - Convenção sobre Trabalho Marítimo (decreto 10.671/21) em seu artigo 2º, alínea “f” define o trabalhador marítimo como gente do mar - significa qualquer pessoa empregada ou contratada ou que trabalha a bordo de um navio ao qual esta Convenção se aplica.

A referida Convenção, internacionalmente conhecida como MLC/06, se aplica a todos os indivíduos que são considerados “gente do mar” e busca estabelecer as condições de trabalho do marítimo (gente do mar) tais como relação de emprego, segurança e saúde, idade mínima, recrutamento, jornada, repatriamento entre outras.

Dentre as condições de trabalho convergentes com os direitos trabalhistas básicos dos trabalhadores marítimos, a MLC/06 prevê o direito de repatriação nos termos dispostos na regra 2.5 abaixo transcrita: 

"Regra 2.5 - Repatriação

Finalidade: Assegurar que a gente do mar possa voltar para seu domicílio.

1. A gente do mar tem o direito de ser repatriada, livre de despesas, nas circunstâncias e condições especificadas no Código.

2. Todo Membro exigirá que os navios que arvoram sua bandeira aportem garantias financeiras para assegurar que a gente do mar seja devidamente repatriada em conformidade com o Código."

Portanto, os marítimos têm o direito a ser repatriados sem custos se o contrato de trabalho cessar, se o interessado estiver no estrangeiro, por iniciativa do armador ou do marítimo por justa causa e se o marítimo não estiver em condições de exercer as funções previstas em seu contrato de trabalho.

A princípio, essa obrigação de providenciar a repatriação do marítimo e arcar com todos os custos dela provenientes é do armador. Caso o armador não adote as medidas necessárias para o cumprimento da repatriação, a obrigação é transferida ao Estado cuja bandeira o navio arvora e se não o fizer, ao Estado para o qual o marítimo será repatriado ou do qual é cidadão.

Assim prevê a Norma A2.5.1, parágrafo 5, nos termos abaixo transcritos.

"Norma A2.5.1

5. Se um armador deixar de tomar providências e não arcar com as despesas relativas a repatriação de gente domar que tem direito de ser repatriada:

a) a autoridade competente do Membro cuja bandeira o navio arvora providenciará a repatriação da gente do mar interessada; caso não o faça, o Estado para o qual o marítimo deva ser repatriado ou o Estado do que é cidadão providenciará sua repatriação e será ressarcido pelo Estado cuja bandeira o navio arvora;

b) custos incorridos na repatriação da gente do mar serão passíveis de ressarcimento pelo armador ao Membro cuja bandeira o navio arvora; e

c) as despesas com a repatriação não poderão em caso algum ficarem a cargo da gente do mar, salvo nas condições previstas no parágrafo 3º desta Norma." 

A Convenção sobre Trabalho Marítimo – CTM veda expressamente a transferência do ônus relativo à repatriação ao trabalhador marítimo, exigindo inclusive que os proprietários das embarcações apresentem garantias financeiras a fim de comprovarem o eventual cumprimento com o previsto nas regras da Convenção acerca da repatriação, se necessário.

Pois bem, diante da apresentação indispensável da garantia financeira, é obrigação do proprietário da embarcação exibir os certificados a bordo emitidos pelo seu clube de P&I ou outro fornecedor de garantia financeira com o intuito de confirmar que os custeios e despesas da repatriação da tripulação em eventual falta do armador serão providenciados pelo seguro.

Nessa toada, é importante esclarecer que os clubes de P&I, tidos como garantidores financeiros, são associações mútuas sem fins lucrativos que oferecem seguro de proteção e indenização aos seus membros, os armadores ou operadores e afretadores. Portanto, um clube P&I “não é uma mútua de seguros, mas uma associação constituída especialmente com este objetivo de cobrir certos riscos de mar.”5

A proteção concedida pelos Clubes de P&I não se confunde com um contrato de seguro, tendo em vista que o instituto consiste na contribuição de todos os membros em determinado prejuízo suportado por apenas um, não havendo o pagamento de indenização propriamente dita pelo Clube ao membro. O Clube de P&I funciona basicamente como um administrador/gerenciador do fundo destinado à garantia de determinados riscos.

Logo, todos os navios sujeitos à MLC/06 são obrigados a exibir o certificado emitido por um Clube de P&I ou outro provedor de garantia financeira, confirmando que o seguro ou garantia financeira está em vigor para assistir o marítimo na eventualidade de seu abandono6, posto que nesta situação o armador não cumprirá com a obrigação relacionada aos custos de repatriação.

Para a Organização Marítima Internacional (IMO - International Maritime Organization) o abandono caracteriza-se pelo rompimento do vínculo entre o armador e o marítimo. O abandono ocorre quando o armador deixa de cumprir certas obrigações fundamentais para com o marítimo relativas ao repatriamento, ao pagamento das remunerações pendentes e ao fornecimento das necessidades básicas da vida, tais como alimentação adequada, alojamento e cuidados médicos. Assim sendo, o abandono do marítimo terá ocorrido quando o comandante do navio tiver ficado sem quaisquer meios financeiros em relação à operação do navio7.

A Norma A2.5.2, parágrafo 2 da MLC/06 prevê as situações de abandono do trabalhador marítimo, que infelizmente vêm ocorrendo com maior frequência em águas brasileiras.

2. Para os propósitos dessa Norma, uma gente do mar será considerada como abandonada quando, em violação aos requisitos dessa Convenção ou às condições do acordo de emprego da gente do mar, o armador:

a) falhar em cobrir os custos da repatriação da gente do mar;

b) deixar a gente do mar sem a necessária manutenção e apoio; ou

c) tenha por outro lado rompido unilateralmente os vínculos com a gente do mar, incluindo falha em pagar os salários contratuais por um período de pelo menos dois meses.

Desta forma, constatada a situação de abandono do trabalhador marítimo, a assistência do Clube de P&I ou do provedor da garantia financeira é acionada de acordo com as obrigações contidas na Norma A2.5.2, parágrafo 9 da referida Convenção que claramente delimitam a responsabilidade dos Clubes de P&I no tocante ao marítimo.

"Norma A2.5.2 - Garantia financeira

(...)

9. Tendo observado a Regra 2.2 e 2.5, a assistência fornecida pelo sistema de garantia financeira deverá ser suficiente para cobrir o seguinte:

a) salários pendentes e outros haveres devidos pelo armador à gente do mar sob o acordo de emprego, o acordo relevante ou a lei nacional da bandeira do Estado, limitado a quatro meses dos salários pendentes e quatro meses dos haveres pendentes;

b) todas as despesas razoáveis incorridas pela gente do mar, incluindo os custos de repatriação referidos no parágrafo 10; e

c) as necessidades essenciais da gente do mar incluindo itens como alimentação adequada, vestimenta onde necessária, acomodação, água, combustível essencial para sobrevivência a bordo do navio, assistência médica necessária e quaisquer outros custos razoáveis ou despesas pelo ato ou omissão relativo ao abandono até que a gente do mar chegue em casa"

Da leitura do dispositivo legal, conclui-se, sem qualquer sombra de dúvida, que o Clube de P&I (sistema de garantia financeira) será responsável tão somente pelo pagamento de (i) quatro meses de salários devidos pelo armador independentemente da quantidade de salários pendentes, além do (ii) pagamento das despesas relacionadas às necessidades essenciais do marítimo, bem como (iii) àquelas despesas relativas à repatriação, (A2.5.2, parágrafo 10)8.

A dita assistência financeira a ser provida pelo Clube de P&I deve ser suficiente para a cobertura do custo de vida do marinheiro, suas necessidades essenciais desde o dia do abandono até sua chegada em casa, incluindo: comida e água, roupas, acomodação, combustível para sobrevivência a bordo do navio, cuidados médicos e quaisquer outros custos razoáveis.

Com relação às despesas de repatriação, os Clubes de P&I serão responsáveis por todos os custos ou encargos razoáveis decorrentes do abandono do marítimo, incluindo cuidados médicos, alimentação e acomodação desde o momento que deixar o navio até chegar em casa, bem como o transporte para casa, normalmente por via aérea.

Por consequência, a obrigação dos Clubes de P&I nos casos de abandono do marítimo não se estende a quaisquer outros custos, despesas e responsabilidades se não aqueles previstos na Convenção sobre o Trabalho Marítimo.

Desta feita, conclui-se que o ordenamento jurídico brasileiro, bem como as convenções internacionais ratificadas e internalizadas no ordenamento pátrio possuem regras que devem ser observadas e cumpridas. 

A Convenção tratada neste artigo traz um rol taxativo de hipóteses nas quais o sistema de garantia financeira (Clubes de P&I) assistirá o marítimo em caso de abandono pelo armador sendo incabível a interpretação extensiva da referida norma.

Se a lei impõe limites de responsabilidades exatamente com o fim de se evitar qualquer tipo de insegurança jurídica, não há razões para interpretações extensivas da norma, ficando a responsabilidade dos Clubes de P&I, exclusivamente nos casos caracterizados como abandono do marítimo, limitada ao pagamento de quatro meses de salários, despesas relacionadas às necessidades essenciais do marítimo e despesas relativas à respectiva repatriação.


1 artigo 2º, b: o termo “marinheiro” compreende toda pessoa empregada ou engajada a bordo a qualquer título, e figurando no rol de equipagem, exceção feita dos comandantes, dos pilotos, dos alunos dos navios-escola e dos aprendizes quando estes estiverem vinculados por um contrato especial de aprendizado: ficam excluídas as equipagens da frota de guerra e as outras pessoas a serviço permanente do Estado.

2 artigo 1º: 1 - A presente Convenção se aplica às pessoas que estão disponíveis de maneira regular para um trabalho de gente do mar e que tiram deste trabalho a sua renda anual principal.

3 artigo 1º:Para os efeitos da presente Convenção, o termo marítimo e a locução gente do mar designam toda e qualquer pessoa empregada, contratada ou que trabalhe em qualquer função a bordo de uma embarcação, que não seja de guerra e que esteja dedicada habitualmente à navegação marítima.

4 Art. 1º Os aquaviários constituem os seguintes grupos: I - 1º Grupo - Marítimos: tripulantes que operam embarcações classificadas para a navegação em mar aberto, apoio marítimo, apoio portuário e para a navegação interior nos canais, lagoas, baías, angras, enseadas e áreas marítimas consideradas abrigadas. 

5 MARTINEZ, Pedro Romano – Seguro Marítimo. O transporte marítimo de mercadorias e o contrato de seguro. p. 151. 26 BRITO, José Miguel de Faria Alves – Seguro Marítimo de Mercadorias. p. 32.

6 Norma A2.5.2 – Garantia Financeira. 1. Na implementação da Regra 2.5, parágrafo 2, essa Norma estabelece requisitos para assegurar as disposições de um expedito e efetivo sistema de garantia financeira para assistir a gente do mar na eventualidade de seu abandono.

7 Resolution  A.930(22) – International Maritime Organization.

8 Norma A2.5.2 – Garantia Financeira: 10. O custo de repatriação deverá cobrir viagem por meios apropriados e expeditos, normalmente por ar, e inclui o fornecimento de alimentação e acomodação da gente do mar, do momento que deixar o navio até a sua casa, assistência médica necessária, transporte de seus objetos pessoais e quaisquer outros custos razoáveis ou despesas advindas do abandono.

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Colunistas

Lucas Leite Marques é sócio do escritório Kincaid Mendes Vianna Advogados com especialização em Direito Marítimo, Portuário e Internacional. Graduado em Direito pela PUC/Rio). Pós-graduado em Direito Processual Civil pela UCAM/IAVM, LL.M em Transnational Commercial Practice pela Lazarski University (CILS). Professor de Direito Marítimo da FGV/RJ e de cursos junto à Maritime Law Academy, Instituto Navigare, PUC/RJ, entre outros. Diretor da vice-presidência de Direito Marítimo e Portuário do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem - CBMA.

Luis Cláudio Furtado Faria sócio da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados. Formado em Direito pela UERJ.Mestre em Direito Civil pela UERJ e possui LLM em International Commercial and Corporate Law pelo Queen Mary College, da Universidade de Londres. Fez estágio na Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional – CCI em Paris. Atuou como advogado estrangeiro nos escritórios Herbert Smith e Reed Smith, ambos em Londres, entre 2011 e 2012.

Marcelo Sammarco é mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela Universidade Metropolitana de Santos. Graduado em Direito pela Universidade Metropolitana de Santos. Advogado com atuação no Direito Marítimo, Aéreo, Portuário e Regulatório. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo e Portuário da UNISANTOS. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo da Maritime Law Academy. Vice-presidente da ABDM - Associação Brasileira de Direito Marítimo. Presidente da Comissão de Marketing do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Árbitro do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Sócio do escritório Sammarco Advogados.

Sérgio Ferrari é professor Adjunto de Direito Constitucional da UERJ. Professor convidado do FGV Law Program. Pesquisador Visitante do Instituto do Federalismo da Universidade de Freiburg, Suíça, de 2013 a 2014. Professor convidado da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) de 2011 a 2013. Doutor e mestre em Direito Público pela UERJ. Bacharel em Direito pela UFRJ. Sócio do escritório Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados.