Introdução
Na coluna de hoje, traremos algumas considerações sobre um instituto típico do Direito Marítimo, os clubes de P&I (protection and indemnity). Embora desempenhem importante papel no setor de transporte marítimo, os clubes não têm previsão na lei brasileira e são pouco conhecidos dos operadores jurídicos em geral. Talvez por isso, sua responsabilidade cause controvérsias que não se costuma ver no exterior, gerando um debate, cuja atualidade é inegável. Recentemente, foi referida, neste Informativo, uma decisão interlocutória proferida pelo Poder Judiciário do Rio Grande do Sul1, o que nos motivou a revisitar o instituto e trazer aos leitores seus principais contornos, e também os fundamentos pelos quais entendemos, com o devido respeito, que aquele pronunciamento não tem o significado que aparenta.
Clubes de P&I – O que são?
Os Clubes de P&I – Protection and Indemnity Clubs – possuem grande relevância no mercado marítimo internacional, mostrando-se importante, para qualquer interessado no setor, conhecer um pouco das características intrínsecas à atividade dos Clubes de P&I, analisando as diferenças entre suas práticas e as da atividade de seguro tradicional.
Atualmente, os Clubes de P&I de maior tradição e com maior representatividade de cobertura e riscos (90% da frota mundial) pertencem a uma associação denominada “International Group of P&I Clubs”. São eles: Britannia, Shipowners, West of England, North of England, London Club, Swedish Club, Liverpool & London, Standard Club, Skuld, Gard, Steamship Mutual, American Club e Japan Club.
Os Clubes de P&I funcionam como associações de mútuo-socorro, sem fins lucrativos, historicamente caracterizada pela autogestão2 constituídas por armadores ou operadores, e afretadores, denominados “membros”, cujo objetivo precípuo consiste na proteção mútua contra prejuízos inerentes à navegação, decorrentes de responsabilidade civil perante terceiros.
Como corolário dessa dinâmica, no âmbito da proteção do P&I, pressupõe-se a contribuição de todos os membros do Clube destinada à diluição dos prejuízos suportados por apenas um.
Os Clubes de Proteção e Indenização surgiram no século XIX como uma associação, sem fins lucrativos, formada pelos Armadores para ratear entre si os valores dos prejuízos com as demandas que não conseguiam ser absorvidas pelas apólices comerciais dos navios3. Ou seja, o surgimento dos Clubes, numa forma de associação dentre os próprios armadores e afretadores, adveio justamente da lacuna e da falta de cobertura de determinados riscos pelas seguradoras tradicionais. Enquanto estas últimas auferem seu lucro por meio das apólices de seguro e coberturas que oferecem, negociando sobre os riscos que seus segurados assumem, os Clubes de P&I visam justamente remediar, num esforço conjunto, os riscos não cobertos pelas seguradoras tradicionais.
Tais Clubes de P&I não têm qualquer fim lucrativo, e os valores a serem requeridos dos associados (membros) de um Clube de P&I têm como único fim ratear os prejuízos estimados das suas operações, não caracterizando qualquer tipo de pagamento ou remuneração efetuada em benefício do Clube:
"Nenhum lucro é obtido e essa é a característica mais marcante que distingue um Clube de uma seguradora de mercado."4(Tradução livre: HAZELWOOD, Steven J., HILL, Cristopher, ROBERTSON Bill; An Introduction to P & I. Lloyd’s Of London Press LTD., 1988, p. 12)
Para fins de organização e rateio dos prejuízos estimados, é realizada anualmente uma chamada aos membros para prestarem contribuição à associação, denominada advance call, sendo possível ainda que requisições adicionais sejam feitas ao longo do ano para cobrir os excessos, chamadas supplementary calls. Em determinados casos, havendo baixa sinistralidade, os Clubes podem até devolver parte desses calls aos seus membros (return calls).
Um dos maiores corolários das obrigações existentes entre os Clubes de P&I e seus membros é a existência do princípio "pay to be paid" adotado entre as partes e estipulado contratualmente. Significa dizer que, para fazer jus ao reembolso dos prejuízos sofridos, o membro do Clube deve primeiro realizar o pagamento dos valores devidos aos terceiros, credores.
Dessa forma de organização, tem-se que o dever do Clube não é o de pagamento de indenização a terceiros ou de garantir o adimplemento dos seus membros perante terceiros. O que decorre desta forma de organização dos agentes do setor em Clubes de P&I é a criação de um dever de reembolso pelos prejuízos de seus membros.5
Em outras palavras, os membros de um clube não têm direito a nenhuma indenização ou reembolso, a não ser que tenham, primeiro, realizado um desembolso – ao contrário do que acontece no seguro tradicional, onde, preenchidas as condições de cobertura da apólice, o segurado possui um direito à indenização securitária.
De fato, a assistência concedida pelos Clubes de P&I aos seus associados não pode ser confundida, em hipótese alguma, com um contrato de seguro. Aliás, são inúmeras as diferenças entre as atividades dos Clubes de P&I e de seguradoras.
Em primeiro lugar, cumpre notar que o contrato de seguro previsto no Código Civil configura contrato típico, inserto no Capítulo XV do Título VI ("Das Várias Espécies de Contrato"). E, dentre as características do contrato típico de seguros, temos a exigência de pagamento de prêmio, de estipulação de riscos predeterminados e de emissão de apólice, nos termos dos arts. 757 e seguintes do Código Civil, todos requisitos que não se amoldam à atividade dos Clubes de P&I.
Nos termos do Código Civil, às seguradoras compete garantir interesse legítimo do segurado, mediante pagamento de prêmio. O prêmio a ser pago pelo segurado à seguradora não guarda relação direta com qualquer sinistro, e será devido mesmo se o risco coberto não se configurar.
Nas atividades dos Clubes de P&I, todavia, sequer existe a figura do prêmio na forma tradicional de “remuneração paga pelo contratante em contrapartida à garantia conferida pela seguradora” conforme leciona Fábio Ulhoa Coelho6. Ao contrário, os Clubes de P&I recebem contribuições de seus membros, não só anualmente, mas sempre que necessário (advance calls e complimentary calls), com o único fim de cobrir os prejuízos decorrentes das atividades de seus membros.
Nesse sentido, é possível inclusive que os valores estimados a maior sejam devolvidos aos seus membros (return calls) ou, ainda, deduzidos de futuras contribuições. E essa situação vai em direção diametralmente oposta ao que preconiza o princípio securitário de "Indivisibilidade do prêmio", segundo o qual "a devolução [do prêmio] alteraria os cálculos efetuados para fazer frente aos sinistros: por esta razão o segurador deve adquirir definitivamente o prêmio correspondente".7
Como os Clubes visam apenas o rateio dos prejuízos incorridos por seus membros, sem auferir lucro, é absolutamente condizente com tal prática a devolução de fundos aos membros e não causa espanto que os valores excedentes sejam devolvidos ou deduzidos de futuras contribuições.
Diversamente, conforme define Ulhoa Coelho, a empresarialidade - onde, por essência, visa-se o lucro – é componente essencial da atividade das seguradoras tradicionais.8 Assim, configura verdadeira finalidade da atividade de seguro que o valor dos prêmios auferidos seja superior ao valor de indenização securitária referente aos sinistros efetivamente cobertos, visto que a seguradora atua com o propósito de auferir lucro, lucro este que é obtido a partir da cobertura dos riscos assumidos pelos seus segurados.
Além da inexistência da figura do prêmio, também não se identifica a figura das apólices securitárias na atividade dos Clubes de P&I.
Nos termos do decreto-lei 73/66, o seguro é contratado com a emissão da respectiva apólice, na qual deverão constar os riscos predeterminados que o seguro se presta a cobrir.9 Ou seja, a seguradora somente deve cobrir o risco que estiver expressamente previsto na apólice.
A dinâmica envolvendo Clubes de P&I, todavia, é absolutamente diversa. As regras dos Clubes (Club Rules) admitem a possibilidade de assegurar riscos que sequer haviam sido levantados ou identificados a priori, através da denominada Omnibus Clause.
Não só inexiste tal prática na atividade securitária como, ainda por cima, o art. 757 do Código Civil determina expressamente que os riscos cobertos por seguro devem ser predeterminados, o que é absolutamente incompatível com a prática dos Clubes.10
Como a finalidade precípua dos clubes advém de um esforço mútuo, sem finalidade lucrativa, de proteção à indústria, é possível que um risco antes não identificado, uma vez concretizado e pago por um dos membros, venha a ser aceito para reembolso por parte do Clube.
E frise-se novamente a expressão reembolso, visto que, em decorrência do princípio “pay to be paid” adotado entre as partes, o membro de um Clube deve primeiro realizar o pagamento dos valores devidos aos credores, antes de poder obter um reembolso do clube. Essa situação não se verifica nos contratos de seguro tradicionais. Nesse contexto, o Superior Tribunal de Justiça já entendeu em sede de recurso repetitivo (REsp nº 925.130/SP), que a obrigação das seguradoras estipulada no art. 787 do Código Civil não é a de reembolso do seu segurado, mas sim obrigação de garantia de pagamento11.
Como se vê, portanto, as próprias obrigações decorrentes de cada atividade diferem totalmente, restando evidente o equívoco dos mais desavisados ao equiparar as atividades dos Clubes de P&I às atividades das empresas seguradoras.
Numa palavra: enquanto a seguradora cobre um risco, recebendo o prêmio quer ocorra, quer não ocorra o sinistro, o Clube de P&I reembolsa um prejuízo, somente se e quando ocorrido.
Esta distinção entre os institutos é de extrema relevância para a análise das atividades do Clube e acarreta diferenças fundamentais na forma como a jurisprudência nacional e estrangeira tratam as demandas ajuizadas por terceiros diretamente contra os Clubes de P&I.
O P&I na Jurisprudência
Não obstante a jurisprudência pátria ainda tenha tido pouco contato com a figura do P&I, é possível identificar demandas pontuais ajuizadas por terceiros diretamente contra os Clubes, visando à condenação destes pelos prejuízos causados por algum de seus membros.
Parece-nos que essa prática decorre do mero desconhecimento da natureza dos Clubes e suas atividades, sendo motivada pela tentativa de fazer valer contra os Clubes de P&I as construções jurisprudenciais relativas ao direito securitário – que, como já visto acima, são diametralmente diferentes.
Neste particular, não se olvida a possibilidade de, superados determinados requisitos, a seguradora figurar no polo passivo de demanda de terceiro prejudicado por segurado em casos de seguros de responsabilidade civil facultativo. Essa legitimidade, todavia, não pode ser estendida aos Clubes de P&I.
Essa possibilidade em face das seguradoras foi pacificada por ocasião do julgamento em regime de Recurso Repetitivo do REsp nº 925.130/SP, situação na qual entendeu-se que "em ação de reparação de danos movida em face do segurado, a seguradora litisdenunciada pode ser condenada direta e solidariamente junto com este a pagar a indenização devida à vitima, nos limites contratados na apólice".
As recorrentes demandas que acarretaram esta construção jurisprudencial tinham o mesmo cenário comum: os segurados demandados pelos terceiros prejudicados, cientes da cobertura securitária à qual faziam jus, denunciavam à lide suas seguradoras (que não raro haviam negado cobertura), para que o pagamento viesse a ser efetuado diretamente pelas seguradoras.
Tão usual era tal prática de denunciação da seguradora à lide, que o E. STJ houve por bem pacificar a matéria, reconhecendo a possibilidade de inclusão das seguradoras litisdenunciadas no polo passivo da demanda e de condenação solidária juntamente com seus segurados.
Esse posicionamento, defendeu o STJ, teria a vantagem de beneficiar não apenas o segurado, de quem não seria exigido o efetivo desembolso, mas também o terceiro prejudicado, e que "o exato resultado desejado pelo direito material não é outro senão o de que […] a seguradora suporte, ao fim e ao cabo, esses prejuízos experimentados pelo terceiro".
Como fundamento para tal entendimento, o STJ, por ocasião do julgamento do REsp citado, adotou o entendimento do i. doutrinador Humberto Theodoro Junior, segundo o qual a possibilidade de ação direta contra a seguradora juntamente com seu segurado decorre do fato de que existe, em verdade, uma coobrigação da seguradora e seu segurado de pagamento perante terceiro.
Como se vê, portanto, o fundamento por detrás da possibilidade de ajuizamento de demanda direta contra a seguradora, em casos de seguros de responsabilidade civil facultativo decorre do fato de que o Código Civil de 2002, alterando o Código Civil de 1916, dispôs que a obrigação da seguradora, nos casos de seguros de responsabilidade civil, seria a de garantir o pagamento em favor de terceiro prejudicado, e não de reembolsar o seu segurado, conforme constava no art. 1.432 do CC/1916.12
Ao nosso entender, a secular prática dos Clubes de P&I deixa claro que os fundamentos que possibilitam a ação direta contra a seguradora não se sustentam, nem mesmo de maneira analógica, em relação aos Clubes de P&I.
Em primeiro lugar, o cenário reiterado que acarretou no reconhecimento de legitimidade passiva das seguradoras em caso de seguros de responsabilidade civil facultativos não acontece com relação aos Clubes de P&I.
Apesar da multiplicidade de casos envolvendo demandas de terceiros ajuizadas em face de armadores e transportadores marítimos membros de Clubes de P&I, relacionados a acidentes de navegação ou avarias em cargas transportadas, não se vê, jamais, a ocorrência de denunciação à lide dos Clubes de P&I, como ocorre nos casos envolvendo seguradoras.
De forma diversa do que ocorre com as seguradoras e seus segurados, é do interesse de todos os membros – e, portanto, do próprio Clube –, que se faça valer o princípio "pay to be paid", sem cuja observância o membro não terá direito ao reembolso, situação pacífica na doutrina internacional.13
E a observância deste corolário, que é livremente pactuado entre os membros em seu Clube de P&I (ressalte-se, no pleno exercício não só da sua autonomia contratual, mas sobretudo da liberdade de associação) não tem o intuito de proteger a figura do Clube de P&I, que não passa de personificação da coletividade de membros, nem a figura dos terceiros prejudicados, mas proteger a todos os outros membros individualmente, de eventuais prejuízos que venham a ser suportados por qualquer um dos demais membros.
Vale dizer: é do interesse de todos os membros que os prejuízos sejam primeiro arcados pelo próprio causador do dano antes que ocorra o reembolso, para que seja evidenciada a solvência do membro.
Se um membro se tornar insolvente, é de se entender que ele não possa mais contribuir com os futuros rateios dos membros, de sorte que inexiste interesse dos demais membros em suportar os prejuízos sofridos pelo causador do dano ou sequer permanecerem associados ao mesmo. Por esse motivo, a falta de pagamento por parte do membro acarreta na inexistência de um direito ao recebimento de reembolso por parte do Clube de P&I.
E mais: o objetivo dos membros e do Clube é fazer com que o membro prejudicado seja reembolsado, e não garantir que terceiro seja indenizado. O seguro de responsabilidade civil tem por fundamento o interesse em fazer valer valores como o de solidariedade econômica e socialização das perdas14, ou ainda o "interesse social de garantia de indenização"15, ao passo que o interesse por trás do reembolso do Clube tem caráter utilitário.
Nesse sentido, reconhecendo esse caráter da atividade dos Clubes de P&I, o primeiro julgado sobre o assunto de que se tem conhecimento, proferido em 1995 pelo Tribunal de Alçada do Estado do Rio Grande do Sul, decidiu pela ausência de responsabilidade solidária do Clube16.
O assunto também já foi analisado pelo Juízo da 5ª Vara Cível de Santos, situação em que foi reconhecida a ilegitimidade passiva dos Clubes de P&I por inexistir vínculo material entre o Clube de P&I e a suposta vítima do dano. Referida sentença reconheceu ainda que, ao contrário das companhias de seguro convencionais, "No regime P&I não existe elo de direito material entre o terceiro em tese vítima de dano praticado pelo associado e o respectivo Club, seja por sub-rogação ou por estipulação a favor de terceiro, menos ainda diretamente".17
Ainda, em julgado recente no Estado do Rio de Janeiro, o Juízo especializado da 4ª Vara Empresarial também entendeu que “não há qualquer razão que pudesse fazer crer na responsabilidade do Clube perante terceiros”. Referida sentença, ademais, deixou clara a diferença entre a natureza e atividade dos Clubes de P&I e das seguradoras:18
"Com efeito, não há qualquer prova da natureza jurídica de seguradora que a autora quer imputar à requerida. Antes, ao contrário, a ASSURANCEFORENINGEN GARD demonstrou tratar de mero ajuntamento de interesses convergentes daqueles que operam na mesma senda empresarial. Trata-se, como se vê, de ajuda mútua entre os membros congregados numa mesma tenda.
Nesse panorama, são os próprios associados que se socorrem em um mutualismo, salvaguardando os interesses próprios, Impende fazer notar que não há pagamento de prêmio pelos associados, mas contribuições (chamadas "advance calls") para formação do fundo tendente a cobrir os infortúnios que atingirem seus membros.
Para afastar ainda mais a natureza securitária, percebe-se que em caso de insuficiência de saldo para cobrir eventual sinistro, o Clube recorre a novas contribuições dos mesmos membros (supplementary call), numa mostra de falta de caixa própria e de encargo indenizatório. Firmada essa premissa, vê-se, em sequência, que não há qualquer outra razão que pudesse fazer crer na responsabilidade do Clube perante terceiros. […]
Vale dizer: o pacto entre os congregados não faz decorrer expectativa legítima de terceiros a respeito da solidariedade." (Processo nº 0189045-59.2016.8.19.0001, 4ª Vara Empresarial da Comarca da Capital/RJ – grifos nossos)
E o referido julgado foi ratificado integralmente pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, nos seguintes termos:19
Apelação Cívelnº0189045-59.2016.8.19.0001
Apelante:MACHADO, CREMONEZE, LIMA E GOTAS –ADVOGADOS ASSOCIADOS.
Apelado: ASSURANCEFORENINGERGARD
RELATORA: DESEMBARGADORA TERESA DE ANDRADE
APELAÇÃO CÍVEL.DIREITO MARÍTIMO.AÇÃO DECLARATÓRIA. SEGURADORA. PEDIDO DE RECONHECIMENTO DE SOLIDARIEDADEDOCLUBE DE PROTEÇÃO E INDENIZAÇÃO (P&I CLUB) DEMANDADO E O ARMADOR INTEGRANTE DA ASSOCIAÇÃO.IMPROCEDÊNCIA.
1.Ação declaratório proposta pelo ora apelante, pleiteando o reconhecimento de solidariedade entre o ora apelado e o armador integrante da associação-Ré, em virtude de sinistro ocorrido durante o transporte marítimo de carga. Ação de regresso anteriormente ajuizada pela seguradora do destinatário da carga em face do armador, na qual restou reconhecida a responsabilidade deste pelos danos causados. Pretensão da sociedade de advogados patrocinadora dos interesses da seguradora de ver reconhecida a solidariedade obrigacional entre o causador do dano e a Ré, associação de mútuo auxílio da qual é integrante, e que, segundo o Autor, funciona como seguradora do armador. (...)
O cerne da controvérsia reside em definir se a Ré, assim entendida como associação de mútuo auxílio formada por armadores/transportadores, pode ser considerada devedora solidária de um de seus membros em condenação judicial oriunda de sinistro envolvendo o transporte marítimo de cargas. Com efeito, busca a parte Autora ver reconhecida a qualidade de seguradora da Ré e, assim, obter a sua responsabilização direta pelas obrigações inadimplidas pelo segurado. 4.P&I Club. Clube de proteção e indenização de natureza associativa dirigida ao mútuo auxílio econômico-financeiro formada por armadores/transportadores de carga por via marítima, que tem por objeto “segurar, mutuamente, responsabilidades, perdas, custos e despesas incorridos pelos membros com relação direta à operação das embarcações registradas na associação e participar de outras atividades relacionadas”.
(...) o vínculo jurídico que liga o armador (causador do dano) e a Ré não constitui liame contratual bilateral, como ocorre nos contratos de seguro, entre a seguradora e o segurado. Antes, cuida-se de vínculo associativo entre particulares que constituem uma corporação de mútuo auxílio. Resulta dessa forma de organização algumas regras próprias que se distinguem sobremaneira daquelas vigentes nos contratos de seguro de dano tradicionais. A primeira delas diz respeito à forma de contribuição para a associação, que diversamente das prestações pagas nos contratos de seguro, servem exclusivamente para constituir um fundo garantidor, que eventualmente, pode ser suplementado pelas designadas "chamadas" ou calls (regra 13 do estatuto da Ré –fl. 380), no caso de necessidade de cobrir eventos que superem o montante do fundo. Uma vez que caso tais contribuições superem o sinistro, os valores aportados pelos membros são reembolsados (regra 17 do estatuado da Ré –fl. 381). Por seu turno, no caso dos prêmios pagos à seguradora, além de remunerarem a própria atividade desempenhada pela seguradora, vige o princípio da indivisibilidade do prêmio, que preconiza que os riscos devem ser considerados não isoladamente – tal como no caso dos P&I Clubs – mas no seu conjunto, pois os riscos não se distribuem igualmente por todo período de vigência do contrato. Dessa forma, afigura-se inadmissível a devolução do prêmio ao segurado no caso de não ocorrência do sinistro ou no caso de que este não supere o valor aportado pelos contratantes 8. Outra característica ainda mais relevante que afasta o regime securitário do regime dos clubes de proteção e indenização relaciona-se com a natureza garantidora do seguro de dano de responsabilidade civil, no caso, insculpida no art. 787 do Código Civil. Depreende-se da leitura do dispositivo transcrito acima que a seguradora garante não apenas o reembolso do que o segurado for obrigado a ressarcir, mas, antes, o pagamento do que, a título de perdas e danos, for devido pelo segurado ao terceiro prejudicado, isto caso tenha sido contratado o seguro contra terceiros. Isso porque, muito embora frequentemente o termo garantia tenha seu significado dependente de uma prestação principal, no contrato de seguro a garantia é a própria prestação principal. Assim, a prestação principal da seguradora, no seguro facultativo de responsabilidade civil, é a de que eliminará os efeitos patrimoniais da imputação de responsabilidade civil e, verificada a dívida, fará o pagamento ao terceiro prejudicado, bem como ressarcirá os danos sofridos pelo próprio segurado. De outro lado, nos P&I Clubs, a regra associativa consubstancia-se no dever de ressarcimento do membro integrante do clube. A norma cristaliza-se a partir do axioma pay to be paid, ou em tradução livre, “pague para ser pago”, isto é, o dever de ressarcir institui-se em relação ao próprio integrante do clube e somente a partir do momento em que ele efetua o pagamento da indenização ao terceiro, terá direito ao reembolso. Regra 87 do estatuto da associação. Como se pode notar, sob qualquer aspecto que se analise a questão, a pretensão autoral está fadada ao insucesso. 9. Sentença mantida. 10. Recurso desprovido.
Como se percebe, a decisão interlocutória do Rio Grande do Sul, recentemente noticiada é absolutamente isolada, em absoluto descompasso com o panorama da jurisprudência brasileira. Aliás, não se pode comparar decisão interlocutória sem qualquer exame de mérito, com Jurisprudência. Não existe um único julgado nas Cortes Brasileiras que reconheça a possibilidade de manejo de ação direta de responsabilidade civil contra os Clubes de P&I numa relação de solidariedade ou subsidiariedade.
A expressa vedação legal, no Brasil, à "solidariedade presumida"
No Código Civil de 1916, o Capítulo IV do Livro das Obrigações, que tratava da solidariedade, tinha como primeiro dispositivo seu famoso art. 896, com afirmação peremptória, que ficou plasmada numa geração de advogados formados sob sua égide: a solidariedade não se presume; resulta da lei ou da vontade das partes.
Este dispositivo precedia até mesmo à definição legal de solidariedade, que só aparecia no parágrafo único deste mesmo artigo.
Como não poderia deixar de ser, idêntica norma, com idêntica formulação, está presente no art. 265 do Código em vigor.
Assim, uma vez que o Clube de P&I não firma contrato típico de seguro com seus membros, e que a obrigação do Clube se restringe ao reembolso de seus membros, e não à garantia do pagamento, inexiste determinação legal ou contratual para que se entenda o Clube de P&I como solidariamente ou subsidiariamente responsável pelo dano causado por seus membros.
Aplicar entendimento diverso seria entender que virtualmente todos os armadores e transportadores estrangeiros do mundo são solidariamente responsáveis por acidentes da navegação ou por avaria de carga uns dos outros.
Vale lembrar, ainda, que os Clubes de P&I são associações com sede no exterior, ao passo que, de acordo com a SUSEP, as seguradoras devem ser pessoas jurídicas brasileiras, aqui sediadas. Essa diferença, embora aparentemente inócua, tem grandes repercussões no tocante à lei aplicável às relações jurídicas envolvendo Clubes de P&I e seus membros, essa última estipulada no art. 9º da LINDB.
Referido artigo determina que "para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem”, e seu parágrafo 2º determina que “a obrigação resultante do contrato reputa-se constituída no lugar em que residir o proponente".
Do teor da norma, temos que o contrato entre Clube e seus membros deve ser regidas pela lei estrangeira do local de sede do Clube de P&I.
Diante disso, importante também analisar o entendimento no Direito Comparado, como se passa a fazer.
Breves Notas do Direito Comparado
Assim, uma vez que a maioria dos Clubes de P&I é sediada na Inglaterra, convém comentar que a Suprema Corte inglesa (House of Lords), por ocasião do julgamento do caso Fanti & the Padre Islands, em 1991, entendeu que os consignatários da carga não tinham direito à ação direta contra o Clube de P&I, não obstante o membro fosse insolvente, reconhecendo que compete ao Clube uma obrigação de reembolso de seus membros, em uma relação contratual da qual o terceiro prejudicado não faz parte.
E não é apenas a legislação inglesa que entende pela impossibilidade de terceiro prejudicado acionar diretamente os Clubes de P&I.
No Chile, a atividade dos Clubes de P&I não é entendida como seguro de responsabilidade civil obrigatório, o que afasta a possibilidade de ação direta por terceiro prejudicado, à exceção dos casos de contaminação e de resgate, extração ou eliminação de destroços decorrentes de naufrágio, por força de particularidades da legislação ambiental e da Lei de Navegação chilena.20 Ou seja, apenas havendo previsão expressa em lei em tal sentido, o que inexiste no ordenamento Brasileiro. Ao contrário, como visto no item anterior, há expressa vedação legal à "presunção de solidariedade".
Portugal, particularmente, parece ter entendimento idêntico ao brasileiro. Não obstante admitir ação direta contra seguradores, o mesmo não se aplica quanto aos Clubes de P&I. A esse respeito, o Tribunal Marítimo de Lisboa, especializado na matéria, entende que a lei aplicável às relações entre Clubes de P&I e membros deve ser aquela da sede do Clube de P&I, exatamente como estipula a nossa LINDB, e, em observância à disposição estrangeira (na maioria das vezes, inglesa), vem reconhecendo a impossibilidade de ação direta contra os Clubes de P&I (CALDAS, 2008).
Conclusão
Com estas breves notas sobre os clubes de P&I, esperamos que a demonstração da natureza do instituto, a análise da lei brasileira, da jurisprudência e do entendimento do Direito comparado, tenham servido para mostrar que seguradoras tradicionais e os clubes de P&I são tão parecidos quanto a água e o vinho, e que não há como justificar a responsabilização direta destes últimos, pelos danos causados por seus associados, seja em caráter solidário, seja em caráter subsidiário.
__________
1 Trata-se de decisão interlocutória proferida nos autos do processo 1.17.0057666-7, pela 14ª Vara Cível do Foro Central de Porto Alegre, com o seguinte teor: "Incluam-se no polo passivo o Armador Proprietário do Navio e a Companhia Seguradora, qualificados na fl.". Apesar da referência à "companhia seguradora", a controvérsia era sobre um Clube de P&I, restando claro as bases frágeis nas quais a mesma foi proferida. Não chegou a ser proferida nenhuma decisão de mérito quanto ao assunto no processo, em razão de superveniência de acordo entre as partes.
2 "it is not to be forgotten that the directors of P&I. Clubs are themselves Shipowners, who are capable of having regard to the wider interests of their industry." (Lord Goff of Chieveley, Firma C-Trade SA vs Newcastle Protection and Indemnity Association (The Fanti) and The Padre Island [1991] 2 A.C 1; [1990] 3 W.L.R.78; [1990] 2 All E.R. 705; [1990] 2 Lloyd’s Rep. 191).
3 GIBERTONI, Carla Adriana Comitre. Teoria e prática do Direito Marítimo. 3 ed. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2014, p.398.
4 No original: "No profits are made anyway and it is the single most distinctive feature which sets a club apart from a 'market' insurer."
5 "(...) uma pessoa pode pertencer a uma sociedade (como um Cube P&I) cujas regras não lhe garantem o direito a uma indenização, mas apenas a contribuições de outros membros para suas perdas. Uma vez que a essência do contrato de seguro é que o segurado deve ter o direito a uma indenização, parece que, neste caso, não pode haver um contrato de seguro." (Tradução livre: MCGILLIVRAY; PARKINGTON. Insurance Law. 8th ed. Londres: [s.d.], 1998) No original: "(…) a person may belong to a society (such as a P. & I. Club) whose rules do not entitle him to an indemnity but only to contributions from other members towards his loss. Since the essence of a contract of insurance is that the insured should be entitled to an indemnity, it seems that in such a case there cannot be a contract of insurance."
6 COELHO, Fábio Ulhoa apud BURANELLO, Renato Macedo. Do Contrato de Seguro. 1 ed. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2006, p. 13/14.
7 HALPERIN, Isaac. El Contrato de Seguro. Buenos Aires: Argentina, 1946, p. 190.
8 "É a empresarialidade da seguradora que lhe possibilita conceder, no mercado, a garantia buscada pelos segurados ou contratantes do seguro. Sem organização empresarial, ninguém pode eficientemente oferecer serviços de garantia securitária." (COELHO, Fábio Ulhoa apud BURANELLO, op. cit., p. 12.
9 Art. 9º. Os seguros serão contratados mediante propostas assinadas pelo segurado, seu representante legal ou por corretor habilitado, com emissão das respectivas apólices, ressalvado o disposto no artigo seguinte.
10 "Art. 757. Pelo contrato de seguro, o segurador se obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa ou a coisa, contra riscos predeterminados."
11 "Outra grande inovação de direito material se deu em relação ao contrato de seguro de responsabilidade civil, que o CC não trata como fonte de obrigação de reembolso de indenização paga pelo segurado à vítima do dano, e sim como garantia de tal pagamento, a ser efetuado diretamente pela seguradora (CC art. 787). (THEODORO JUNIOR, Humberto. Novidades no campo da intervenção de terceiros no processo civil: a denunciação da lide per saltum (ação direta) e o chamamento ao processo da seguradora na ação de responsabilidade civil. In. Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil, vol. 1 (jul/ago. 2004)".
12 Art. 1.432. Considera-se contrato de seguro aquele pelo qual uma das partes se obriga para com outra, mediante a paga de um prêmio, a indenizar-lhe o prejuízo resultante de riscos futuros, previstos no contrato.
13 "Under Club Rules it is a condition precedent to a member’s right of recovery that his calls are fully paid." (HAZELWOOD, Steven J.; P & I Clubs Law And Practice. Lloyd’s Of London Press LTD., 1989, p. 246) "P. & I. Clubs undertake to pay only the amount which the member shall have become liable to pay and shall have in fact paid." (HAZELWOOD, Steven J. op. cit. p. 285).
14 STJ – Resp nº 1.601.555/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, j. em. 20.02.2017.
15 FABIO KONDER COMPARATO, "Substitutivo ao Capítulo referente ao Contrato de Seguro no Anteprojeto do Código Civil", in. Revista de Direito Mercantil, nº 5, Revista dos Tribunais, São Paulo, p. 149.
16 AC nº 195031695, Rel Des. Gaspar Marques Batista, 3ª CC. do Tribunal de Alçada do Estado do Rio Grande do Sul, j. em 12/04/1995.
17 Processo nº 1.677/10, 5ª Vara Cível de Santos, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
18 Processo nº 0189045-59.2016.8.19.0001, 4ª Vara Empresarial da Comarca da Capital/RJ.
19 TJRJ Apelação nº 0189045-59.2016.8.19.0001, 6ª Câmara Cível, Des. Teresa de Andrade, j. 23.05.2018).
20 WEITZ, Leslie Tomasello. El Seguro de P&I (protección e indemnización) como seguro de indemnización y la acción directa em contra del assegurador. In. Revista Ibero-Latinoamericana de Seguros. No 25. Bogotá: Pontifica Universidad Javeriana, 2006.