Em meados de maio de 2018, devido ao aumento do preço do combustível diesel, os caminhoneiros se mobilizaram em um protesto de dimensão nacional que teria consequências graves para a economia brasileira. Durante dez dias de paralização, enquanto as filas de caminhões se formavam nas rodovias, o país se viu diante da ameaça de desabastecimento, com alguns setores registrando a falta de insumos essenciais, como alimentos e combustíveis em geral. Ao final daquele ano, os impactos da greve seriam sentidos nos indicadores macroeconômicos, em especial o PIB e a inflação.
O protesto dos caminhoneiros tornou flagrante a grande dependência da economia brasileira em relação ao modal rodoviário como principal, e muitas vezes o único, meio para escoamento da produção e distribuição de bens e insumos em um país de dimensões continentais. As alternativas logísticas ao setor rodoviário passaram então a ser avaliadas com maior profundidade, tendo as atenções se voltado, naturalmente, à imensa costa brasileira. Com a proximidade dos grandes centros urbanos ao litoral, o modal aquaviário, e em especial a navegação de cabotagem, ou seja, aquela realizada entre portos ou entre pontos do território brasileiro, entrou no cerne das políticas públicas para o setor.
Atualmente, encontra-se em análise pelo Senado Federal o projeto de lei 4.199/2020, também conhecido como BR do Mar, o qual, se for aprovado, tem o potencial de alterar de forma relevante as normas da navegação de cabotagem atualmente em vigor. Um dos pontos mais controversos desse projeto, como se verá adiante, diz respeito justamente à sua principal inovação, isto é, a facilitação do afretamento de embarcações pelas empresas brasileiras de navegação (EBN).
Nesse sentido, dispõe o art. 5º, caput e incisos I e II do Projeto, que a EBN habilitada no BR do Mar poderá afretar, por tempo, embarcações de uma subsidiária integral estrangeira, desde que tais embarcações: (i) sejam de propriedade da subsidiária estrangeira; ou (ii) estejam em posse, uso e controle da empresa subsidiária estrangeira, sob contrato de afretamento a casco nu. Na segunda hipótese, portanto, não haveria a necessidade de investimento em frota própria pela EBN.
Aqui, necessário fazer um breve apontamento sobre a aplicação, na prática, dessa nova sistemática de afretamento. Conforme esclarecido pelo Governo Federal em informativo técnico sobre o projeto, a operação se dará da seguinte maneira: (i) a EBN constitui subsidiária no exterior; (ii) a subsidiária estrangeira adquire, ou afreta a casco nu, uma ou mais embarcações; (iii) a subsidiária estrangeira contrata a tripulação (que deve ter 2/3 de brasileiros), que trabalhará de acordo com a legislação do país estrangeiro, e não com a brasileira; e, por fim, (iv) a EBN controladora afreta por tempo a embarcação.
O mesmo art. 5º, em seu § 1º, ainda dispõe sobre as condições nas quais essa forma de afretamento por tempo será possível, que poderá ocorrer: (i) com base em proporção, a ser definida pelo Executivo federal, dos navios “efetivamente operantes” registrados em nome do grupo econômico ao qual a EBN pertence; (ii) em substituição a embarcações “de tipo semelhante” em construção no país ou no exterior; (iii) para atendimento exclusivo de contratos de transporte de longo prazo; e (iv) para prestação de operações de cabotagem, por até 48 meses. Como se vê, será sob as duas últimas hipóteses que se dará o afretamento sem obrigação de investimento em frota própria.
Mas não é só: o Projeto também prevê a possibilidade de afretamento a casco nu, ou seja, aquele em que o afretador pode designar o comandante e a tripulação, de embarcação estrangeira, com suspensão de bandeira, para realização de navegação de cabotagem. Nos termos do art. 19 do Projeto, que modifica o art. 10 da lei 9.432/1997 ("Lei do Transporte Aquaviário"), essa modalidade de afretamento estará limitada a uma embarcação estrangeira nos primeiros 12 meses de vigência da lei. Todavia, esse limite vai sendo ampliado em uma embarcação adicional, de doze em doze meses, até que o afretamento a casco nu de embarcação estrangeira se torna ilimitado a partir do 48º mês após a entrada em vigor da lei. Nesse caso, a EBN não necessitará ter frota própria nem ter contratado a construção de embarcações no país.
Além disso, outras inovações dizem respeito: (i) ao estabelecimento do prazo de 90 dias, contados da data de entrada em vigor da norma, para a ANTAQ definir os critérios para o enquadramento da embarcação como efetivamente operante e pertencente a um mesmo grupo econômico; e (ii) à possibilidade da administração do Porto Organizado pactuar com interessados na movimentação de cargas, pelo prazo improrrogável de até 48 meses, o uso temporário de áreas e instalações portuárias localizadas na poligonal do porto organizado, a fim de viabilizar as chamadas operações especiais de cabotagem a que se refere o inciso VI, do § 1º, do art. 5º.
Diante das disposições que facilitam o afretamento de embarcações estrangeiras, algumas entidades do setor de cabotagem nacional têm visto com preocupação esse novo mecanismo. Segundo essas entidades, a nova dinâmica de afretamento introduzida pelo Projeto potencialmente resultará em uma assimetria regulatória, ao possibilitar a entrada de novas empresas no mercado de cabotagem por meio do afretamento de embarcações estrangeiras, mas sem o investimento em uma frota própria de embarcações brasileiras, ao contrário do que vinha sendo realizado por empresas de pequeno a médio porte que já estavam operando no setor.
O Ministério da Infraestrutura, por outro lado, sustenta que o Projeto, se for aprovado, incentivará o mercado nacional de cabotagem. No entendimento do governo, o BR do Mar não só desvinculará a oferta de embarcações no Brasil à construção naval, que segue em ritmo lento nos últimos anos, como também aumentará a competitividade do setor, reduzindo custos e incentivando a atividade econômica. Ainda segundo o Ministério da Infraestrutura, o objetivo seria o de levar em consideração os investimentos das empresas que já atuam no setor, mas permitir também a entrada de novo players, aumentando a competição na cabotagem.
Os defensores do Projeto lembram que o texto também inclui medidas para o incentivo e aumento da construção naval, por meio da ampliação do uso do Fundo da Marinha Mercante (FMM). O art. 21 do projeto determina que: (i) 100% do AFRMM gerado por EBN que opere embarcação estrangeira afretada será destinado ao FMM; e (ii) 10% do produto da arrecadação do AFRMM será destinado ao melhoramento da infraestrutura aquaviária. O Projeto, todavia, em seu art. 21, modifica a lei 10.893/2004 e determina que o Adicional de Frete para a Renovação da Marinha Mercante (AFRMM) terá uma alíquota única de 8%, para as três modalidades de navegação: (i) longo curso; (ii) cabotagem; e (iii) fluvial e lacustre, no transporte nas regiões Norte e Nordeste de granéis líquidos, sólidos e outras cargas. A medida é relevante, uma vez que reduz substancialmente o valor do AFRMM, antes de 25%, 10% e 40%, para as três citadas modalidades, respectivamente.
Ainda segundo os que defendem o texto, o projeto resultará em um saldo final bastante positivo a todos os stakeholders do setor, uma vez que a abertura do mercado tenderá a reduzir preços, tornando a cabotagem mais atrativa como meio de transporte de cargas na economia nacional, reduzindo-se, em última análise, a atual dependência do modal rodoviário. Sobre esse último ponto, os defensores do Projeto afirmam que as mudanças não têm como objetivo substituir o transporte de cargas pelo modal rodoviário, mas possibilitar alternativas à sua utilização, especialmente em fretes de longa distância, nos quais o modal aquaviário seria o mais recomendável.
De acordo com estimativas do governo Federal, o BR do Mar aumentará (i) a oferta de embarcações para cabotagem em 40%; (ii) o volume de contêineres transportados por cabotagem em 65%; e (iii) o crescimento anual do mercado de cabotagem em 30%. Não obstante, os defensores do Projeto ainda indicam outros benefícios indiretos, tais como redução de custos com manutenção de rodovias, maior segurança no transporte de cargas, com menor incidência de roubos e acidentes de trânsito, bem como menor impacto ambiental.
Por fim, vale lembrar que o Projeto está em deliberação no Senado, e, portanto, ainda é passível de alterações antes de sua promulgação. Considerando o elevado número de emendas propostas ao projeto até o momento (43, atualmente), é provável que algumas das disposições mencionadas anteriormente sejam ainda objeto de bastante discussão entre os agentes do setor, resultando no aprimoramento do Projeto. Espera-se que, ao final, o objetivo da ampliação da utilização da cabotagem como alternativa ao modal rodoviário seja alcançado.
*Luis Cláudio Furtado Faria é sócio da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados.
**Vitor Chavantes Godoy da Costa é associado da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados.
***Gabriel Cavalcante Maia é estagiário da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados.