Passados quase três meses desde o desencalhe do navio Ever Given no Canal de Suez, a embarcação ainda permanece retida pelas autoridades Egípcias, num embate jurídico que certamente desperta interesse de toda a comunidade marítima internacional.
Enquanto as partes interessadas deliberam uma possível solução para a liberação do navio – tema que certamente trataremos em artigo futuro na presente coluna – buscaremos aqui comentar sobre outro relevante instituto do direito marítimo invocado no referido caso, qual seja, o instituto da avaria grossa.
No dia 1º de abril de 2021, pouco depois do desencalhe do navio, a companhia proprietária da embarcação declarou a ocorrência de avaria grossa. Ora, mas se as equipes de salvamento haviam acabado de desencalhar o navio, permitindo que o mesmo voltasse a flutuar e poder navegar, o que seria esta tal avaria grossa declarada pouco após o desencalhe?
O instituto da Avaria Grossa remonta às bases do Direito Marítimo.
No século XIII a.C., época do Código de Manu dos Hindus, já se discutiam normas para regulamentar o comércio marítimo. Durante a Idade Média, o parâmetro era a Lei de Rhodes (Lex Rhodia de Jactu – séc. II a.C.), que durante longos anos regulou os negócios ligados ao comércio marítimo.
Dentre outras disposições, a Lei de Rhodes disciplinava que, caso uma mercadoria a bordo de determinada embarcação tivesse que ser lançada ao mar com o fim de tornar o navio mais leve para salvaguardar a jornada marítima, este ato que causou deliberado prejuízo a uma parte, seria cometido em benefício de todos os demais interessados naquela expedição, razão pela qual todos os beneficiados deveriam contribuir para resguardar o prejuízo provocado.
Posteriormente, verifica-se a disposição deste instituto na Guidon de La Mer (1550), nas Ordenanças de Luís XV (1681) e na Ordenança de Roterdam (1721).1
E o instituto até hoje se faz bastante presente na legislação marítima internacional, bem como no ordenamento jurídico brasileiro.
O Código Comercial Brasileiro define que as avarias podem ser classificadas, quanto à sua causa, como avarias grossas (ou avarias comuns) e avarias simples (ou particulares). De acordo com seu art. 763, as primeiras são repartidas "(...) proporcionalmente entre o navio, seu frete e a carga", enquanto as segundas são suportadas "(...), ou só pelo navio, ou só pela coisa que sofreu o dano ou deu causa à despesa".
Theophilo de Azeredo Santos ensina que: "as despesas extraordinariamente feitas e os danos sofridos para o bem e salvação comum das mercadorias e do navio são avarias grossas ou comuns. Chamam-se comuns porque são suportadas em comum, tanto pela coisa que sofreu o dano, como pelas que foram conservadas em razão da despesa ou dano realizado. São denominadas grossas porque devem ser pagas pelo grosso ou universalidade do navio e da carga".2
No sentido conceitual geral, agregando as disposições legais e doutrinárias a avaria grossa pode ser entendida como o dano ou despesa extraordinária causado ao navio ou à carga, de forma intencional e razoável, pelo comandante da embarcação, em uma situação de perigo real e iminente, com o intuito de preservar a integridade dos demais bens e interesses que se acharem a bordo e a continuidade da jornada marítima. Estas despesas ou sacrifícios serão rateados proporcionalmente pelos consignatários das cargas salvas e pelos interesses do navio (armador, afretador e outras partes relacionadas).
Um dano ou despesa, causado de forma intencional pelo comandante do navio, pode vir a ter que ser compartilhado por todos os proprietários de cargas a bordo?! A resposta é positiva, mas desde que tal dano tenha sido realizado com o fim de preservar a incolumidade do navio, das demais cargas a bordo e de todos os outros interesses envolvidos.
Voltemos ao caso "Ever Given", para melhor exemplificar.
No dia 29 de março de 2021 foram concluídos de forma bem-sucedida os esforços realizados pelas equipes engajadas no salvamento da embarcação e das cargas a bordo. Três dias depois, o proprietário da embarcação declarou avaria grossa, indicando que seria imposta a todos os proprietários de carga, do navio e afretadores, a obrigação de contribuir com as despesas incorridas com as operações de salvamento.
Note que, como narrado acima, os custos e despesas empregadas com as trabalhosas operações de salvamento3, enquadram-se dentro do contexto de despesas extraordinárias, realizadas de forma intencional, com o intuito de preservar a integridade de todos os interesses a bordo do navio.
Portanto, declarada a avaria grossa, foi nomeado um regulador de avarias, consistente num profissional qualificado em avarias marítimas que assume o papel de apurar o valor total das despesas que se enquadram no contexto de avaria grossa, levantar o valor de todas as cargas, do navio, do frete e acessórios, e, por fim, indicar a proporção que cada parte terá que prestar, a título de contribuição de avaria grossa.
Esse trabalho de regulação, que poderá tomar anos, envolve a necessidade de o regulador entrar em contato com todos os embarcadores de carga a bordo do navio, com os afretadores e o armador, a fim de que apresentem os comprovantes dos valores dos seus bens e interesses a bordo. Por exemplo, os valores das notas comerciais das cargas, valores de frete, valor do navio, entre outros. Na sequência, munido dos valores das despesas tidas como avaria grossa, o regulador realizará uma conta pro rata – não tão simples como este artigo faz parecer – indicando qual o percentual sobre o valor de seu bem a bordo que cada interessado terá que prestar a título de contribuição por avaria grossa.
A última vez em que fora declarada avaria grossa envolvendo uma grande embarcação porta-containers havia sido em 2018, quando da ocorrência de fogo a bordo do navio Maersk Honam. Naquela ocasião, diante das despesas empregadas no salvamento e combate ao incêndio, os proprietários de carga tiveram que pagar um percentual de 54% do valor de suas cargas, a fim de poderem liberar suas mercadorias que chegaram ao destino.
Outro exemplo similar, dessa vez envolvendo diretamente o Brasil, foi o caso do navio Maersk Londrina, atingido com um incêndio em seu porão no ano de 2015, durante uma jornada da Ásia com destino ao Brasil.
A tripulação do navio vinha tentando combater o incêndio, até que o comandante constatou que a limitação de seus recursos o forçaria a tomar uma medida extraordinária, consistente numa arribada forçada a um porto próximo, a fim de buscar assistência.4
Assim, desviando-se do rumo originário, o navio aportou em Port Louis, nas Ilhas Maurício, tendo o armador contratado uma empresa especializada em salvamento para continuar o combate ao incêndio. Levou-se 10 dias até o fogo ser completamente combatido.
Tanto as despesas empregadas com o salvamento, os custos extraordinários sofridos com a arribada e os prejuízos provocados às cargas que foram avariadas durante as tentativas de combate ao incêndio - como as mercadorias que acabaram sendo molhadas, por exemplo -, entraram no contexto de avaria grossa. Não se incluiu na avaria grossa, no entanto, a carga incendiada, por se enquadrar a mesma no contexto de avaria simples (ou particular), na medida em que tais danos não resultaram de um ato intencional visando salvaguardar os demais interesses a bordo.
Após contratação de um regulador de avarias marítimas (average adjuster), o rateio dos prejuízos foi solicitado às partes envolvidas naquela viagem mediante a coleta preliminar das garantias necessárias por parte dos consignatários das mercadorias, juntamente com a quantificação dos prejuízos e o cálculo da quota parte a ser paga por cada um dos indivíduos envolvidos na viagem.
Ainda nessa fase, quando da chegada das cargas ao destino, foi fixada uma contribuição provisória, sendo exigida caução dos proprietários das cargas que chegaram aos portos Brasileiros, por meio de depósito ou fiança5, para assegurar a efetiva contribuição ao procedimento de regulação. Esta contribuição deve ser satisfeita pelos consignatários sob pena de retenção da carga, que se encontra regulada nos dispositivos 784 e 785 do Código Comercial.
Art. 784 - O capitão tem direito para exigir, antes de abrir as escotilhas do navio, que os consignatários da carga prestem fiança idônea ao pagamento da avaria grossa, a que suas respectivas mercadorias forem obrigadas no rateio da contribuição comum.
Art. 785 - Recusando-se os consignatários a prestar a fiança exigida, pode o capitão requerer o depósito judicial dos efeitos obrigados à contribuição, até ser pago, ficando o preço da venda sub-rogado, para se efetuar por ele o pagamento da avaria grossa, logo que o rateio tiver lugar
Disposição similar também traz o art. 7º do Decreto-Lei 116/67, que assim dispõe:6
Art. 7º - Ao armador é facultado o direito de determinar a retenção da mercadoria nos armazéns, até ver liquidado o frete devido ou o pagamento da contribuição por avaria grossa declarada.
Em razão da ausência de prestação voluntária destas garantias por determinadas partes, as Cortes Judiciárias Brasileiras da comarca de cada um dos portos em que as cargas foram desembarcadas determinaram, liminarmente, a prestação das referidas garantias pelos proprietários de carga que não o haviam feito, sob pena de retenção das cargas no terminal de descarga até que fossem prestadas tais contribuições de avaria grossa. Vejamos:7
"(...) Isso posto, DEFIRO o pedido liminar para determinar a retenção das cargas das requeridas no terminal de contêineres (...), até que as rés identificadas na listagem que deverá acompanhar a inicial (...) comprovem a realização de depósito ou a prestação de garantia"
(TJSC, Vara Única de Itapoá/SC, proc. 0300321-07.2015.8.24.0126).
Aliás, a avaria grossa já foi palco de exame por diversos tribunais brasileiros, com a lavratura de interessantes julgados. Veja-se:8
AÇÃO REGRESSIVA - CONTRATO DE SEGURO DE TRANSPORTE MARÍTIMO INTERNACIONAL - AVARIA GROSSA. 1. Contrato de transporte marítimo. Sub-rogação da seguradora. Pagamento indenização ao segurado. 2. Navio operacionalizado por três empresas distintas - proprietária, afretadora e subafretadora/transportadora. Demanda ajuizada em face de todas. 3. Encalhamento da embarcação. Alijo de mercadorias para salvação comum. 4. Declaração de "Avaria grossa". Exoneração parcial da responsabilidade do transportador, mediante rateio do prejuízo entre os envolvidos. 5. Culpa do transportador não demonstrada. Mera alegação de não ocorrência de avaria grossa que se mostra insuficiente a afastá-la, notadamente em tendo sido acostada prova obtida de forma unilateral. 6. Mercadoria recebida sem ressalvas, trazer a ausência de dano. 7. Recurso desprovido.
(TJRJ, Apelação 0062625-24.2007.8.19.0001 - Des. Ricardo Couto De Castro – 7ª Câmara Cível - j: 16/08/2017)
APELAÇÃO – TRANSPORTE MARÍTIMO – AVARIA GROSSA – SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. TRANSPORTE MARÍTIMO – Avaria grossa verificada quando da explosão de contêiner em navio em que transportadas mercadorias de propriedade da autora da ação – Necessidade de realização de esforços extraordinários para salvamento da carga - Recusa da autora ao pagamento da contribuição exigida de todos os proprietários de carga, insurgindo-se contra a retenção dos conhecimentos de transporte – Recusa injustificada – Regras do comércio marítimo que impõem o dever de pagamento ou ofertar garantia, sob pena de retenção das mercadorias, o que foi deferido em favor da ré em diversas ações ajuizadas – Valor preliminar da garantia apurado por empresa especializada, sem elementos que evidenciem abuso – Valor definitivo que poderá ser contestado oportunamente. SENTENÇA MANTIDA – RECURSO DESPROVIDO.
(TJSP; Apelação 1032282-49.2015.8.26.0002; Relator Des. Sergio Gomes; 37ª Câmara de Direito Privado; j: 07/02/2017)
Nossos Tribunais Superiores também já há bastante tempo enfrentaram o tema:
Avaria grossa. Configuração. Enquanto a sentença entendeu que, quando deliberado o encalhe, consumados já se achavam os danos, o acórdão tem como certo que a mercadoria se deteriorara devido a ação de água salgada, durante o longo tempo em que o navio ficou encalhado. E, tendo o encalhe sido deliberado, para salvar o navio e a carga, teve como configurada a avaria grossa. A conclusão quanto ao direito está baseada em matéria de fato, sobre cuja apreciação divergiram a sentença e o acórdão (...)
(STF, RE 52803, Relator: Min. Luiz Gallotti, 3ª Turma, pub: 20/11/1967)
Avaria grossa. Caracterização. Rateio das despesas extraordinárias. Desnecessidade de regulação para configuração da avaria. Recursos extraordinários não conhecidos.
(STF, RE 57591, Relator: Min. Amaral Santos, 1ª Turma; pub: 09/05/1969)
No caso Ever Given, a regulação será pautada em normas internacionais, possivelmente com a aplicação das Regras de York-Antuérpia9, que consistem em padrões contratuais privados nos quais as partes, por sua vontade, compactuam a observar.10
No que compete ao direito Brasileiro, a regulação de avaria grossa tem previsão expressa no Código de Processo Civil de 2015, cujos artigos 707 a 711 trazem os procedimentos a serem adotados. Aliás, o instituto sempre esteve previsto nas Leis Processuais anteriores11.
Mas é o Código Comercial que define o instituto em nosso ordenamento (arts. 763-765)12, estabelecendo em seu art. 764 uma lista exemplificativa de 21 itens abordando situações que se enquadrariam no contexto de avaria grossa – incluindo as despesas incorridas para o salvamento de embarcação encalhada, como no caso do Ever Given.
Em linhas gerais, os conhecimentos de carga relativos ao transporte internacional sujeitam-se à regulação de avarias comuns dispostas nas Regras de York-Antuérpia. Por outro lado, caso aplicável a legislação brasileira, a regulação será feita seguindo o disposto no Código Comercial13 e a Lei Processual Civil.14
Não obstante a harmonização entre as previsões sobre as avarias grossas do Código Comercial Brasileiro e das Regras de York-Antuérpia, os diplomas possuem, naturalmente, importantes diferenças, sendo a maior destas a adoção do sistema de diferenciação da causa primária.
O Código Comercial adota o sistema da unidade da avaria15. Isto implica em primeiro determinar-se a causa da avaria originária para, então, definir-se se os danos ou despesas que dela são consequência podem se enquadrar no contexto de avaria grossa.
As Regras de York-Antuérpia (RYA), por sua vez, consagram o sistema de indiferença da causa primária (Regra D). Assim, disciplina-se que haverá contribuição por avaria grossa independentemente de o evento danoso ter sido provocado por falta ou culpa de um dos envolvidos naquele transporte. Ou seja, para as RYA não importa a causa do evento danoso originário, todas as despesas extraordinárias empregadas intencionalmente para remediar e preservar os demais interesses a bordo, enquadrar-se-ão no contexto de avaria grossa e deverão ser rateadas por todos nesse primeiro momento de declaração da avaria grossa, sem prejuízo da possibilidade de posterior ação regressiva das partes que prestarem garantia, em face do real causador do dano.
A aplicação de cada um dos sistemas dependerá, em última análise, da convenção das partes quando de sua pactuação nos contratos de transporte ou afretamento.
Aos envolvidos no comércio de carga por via marítima, portanto, o instituto da avaria grossa não deveria ser surpresa nem novidade. Está o mesmo inserido não só nas leis, nas regras internacionais e nas práticas comerciais, há milênios, como também nas próprias disposições contratuais dos contratos de transporte ou afretamento.
Por fim, cumpre esclarecer que o instituto da Avaria Grossa naturalmente guarda outras especificidades aqui não abordadas, por se tratar de um tema extenso que não pode ser esgotado num único artigo.16
Sua sistemática envolve uma repartição equitativa dos sacrifícios extraordinários ocorridos durante uma expedição marítima dentre aqueles (navio, carga e frete) que se beneficiaram com o emprego de tais despesas extraordinárias.
Não obstante a sua existência milenar, devemos vivenciar, com o incidente do navio Ever Given, possivelmente o maior caso de avaria grossa já visto em toda a história.
E, por esta razão, o tema não poderia jamais ficar de fora desta coluna, dedicada a todos os interessados no Direito Marítimo.
*Lucas Leite Marques é sócio do Kincaid | Mendes Vianna Advogados.
**Leonardo Mesquita Zampolli é advogado no Kincaid | Mendes Vianna Advogados.
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1 MARTINS, Eliane Octaviano. Curso de Direito Marítimo. Volume II. Barueri, SP. Editora Manole, 2013;
2 SANTOS, Theophilo de Azeredo. Direito da Navegação, Rio de Janeiro, RJ, Forense, 1968, P. 361;
3 Nas quais foram empregadas equipes técnicas especializadas, dragas, rebocadores, escavadoras e centenas de profissionais.
4 A arribada é prevista como situação passível de ser inserida no contexto de avaria grossa, tal qual disciplinado no art. 764 do Código Comercial e está regulada pelo art. 740 do mesmo Código, que assim disciplina: "Quando um navio entra por necessidade em algum porto ou lugar distinto dos determinados na viagem a que se propusera, diz-se que fez arribada forçada (artigo nº. 510)". O Código dispõe, ainda em seu art. 741 os motivos que justificam a adoção de uma arribada forçada.
5 Na hipótese de carga segurada, usualmente é exigido um termo de garantia, fornecido pela seguradora, o Valuation Form, também chamado de Average Guarantee (Termo de Garantia Financeira), e a Average Bond (Compromisso de Cumprimento). Na hipótese de carga não segurada, geralmente se exige o Valuation Form, a Average Bond ou depósito em dinheiro.
6 O direito de retenção também se encontra previsto na Instrução Normativa nº 800 da Receita Federal do Brasil, a qual permite ao transportador realizar um bloqueio eletrônico no Siscomex (Sistema Integrado de Comércio Exterior), impedindo assim a liberação aduaneira das mercadorias que desembarcam no país, em caso de pendência de pagamento da contribuição por avaria grossa. Veja-se: "Art. 40 IN 800 - É facultado ao armador determinar a retenção da mercadoria em recinto alfandegado, até a liquidação do frete devido ou o pagamento da contribuição por avaria grossa declarada, no exercício do direito previsto no art. 7º do decreto-lei 116, de 25 de janeiro de 1967; Parágrafo único. O sistema informará ao depositário, no momento da entrega, a retenção determinada pelo armador".
7 No mesmo sentido se verificam as decisões judiciais proferidas pelos Juízos de Santos/SP (proc. 1015905-69.2015.8.26.0562); Itajaí/SC (proc. 0307176-87.2015.8.24.0033).
8 Os julgados referidos no presente artigo, além de muitos outros proferidos pelas cortes brasileiras acerca de temas relacionados ao direito marítimo podem ser verificados no Livro de Jurisprudência Marítima disponível aqui.
9 Segundo nos ensina a Profª. Eliane Octaviano Martins (in Curso de Direito Marítimo. Volume II. Ed. Manole, 2013), inúmeras foram as tentativas tencionadas para se instituir um Código Internacional de Avarias Grossas, evitando, consequentemente, conflitos de interpretação e aplicabilidade e uniformizando procedimentos regulatórios. Dentre as referidas tentativas de uniformização, surgiram as Regras de Glasgow (Glasgow Resolutions), cujos ensaios iniciaram em 1860, culminando, em 1864, na aprovação de 11 regras, as quais são consideradas fundamentos da legislação internacional referentes à avaria grossa. Por conseguinte, em 1877, foram aprovadas as referidas regras com a adição de mais uma, cujo conjunto normativo foi nomeado de Regras de York e Antuérpia (RYA). Estas regras de ordem puramente privada, que têm como facultativa sua adoção nos contratos de transporte marítimo, sofreram oito alterações ao longo dos últimos tempos, quais sejam: 1890, 1924, 1950, 1974, 1990, 1994, 2004 e 2016, esta última promulgada durante Congresso do CMI – Comitê Marítimo Internacional, realizado em Nova Iorque em maio de 2016, incluindo a presença de uma sólida delegação brasileira, liderada pelo saudoso expert Rucemah Leonardo Gomes Pereira – in memoriam.
10 GIBERTONI, Carla Adriana Comitre. Teoria e Prática do Direito Marítimo. 3º edição. Rio de Janeiro. Editora Renovar. 2014.
11 A avaria comum, era tratada na Lei Processual Civil de 1939 (Arts. 765 a 768 do Código de Processo Civil de 1939, decreto-lei 1.608, de 18 de setembro de 1939) e, posteriormente, no CPC de 1973, através do seu artigo 1.218 ("Art. 1.218. Continuam em vigor até serem incorporados nas leis especiais os procedimentos regulados pelo decreto-lei 1.608, de 18 de setembro de 1939, concernentes: XIV - às avarias (arts. 765 a 768)"). Mais recentemente passou a ser diretamente disciplinada no Código de Processo Civil de 2015, o qual traz um capítulo próprio sobre o procedimento especial de jurisdição contenciosa para regulação da avaria grossa, em seus artigos 707 a 711.
12 Estando inclusive inserido no Projeto de novo Código Comercial em trâmite no Senado Federal. (Projeto de Lei do Senado 487/2013).
13 Insta destacar que é o Código Comercial que chancela, através de seu art. 762, a inserção de convenção especial, a reger a avaria grossa nos contratos (Bill of Lading ou Carta Partida). Vejamos: "Art. 762 Cod. Com. - Não havendo entre as partes convenção especial exarada na carta partida ou no conhecimento, as avarias hão de qualificar-se, e regular-se pelas disposições deste Código."
14 Também podendo estar sujeita a determinação por parte do Tribunal Marítimo, nos casos em que a avaria grossa resultar de fato ou acidente da navegação, conforme disposto no art. 17, 'f', da lei 2180/1954, como bem destacado pela Profª Ingrid Zanella Andrade Campos, a qual aduz ainda que "o Tribunal Marítimo executaria a primeira responsabilidade afeta ao regulador, qual seja de declarar, de forma justificada, se o caso pode ser caracterizado como avaria grossa (...)", não obstante frisar que "a referida hipótese legal nunca foi aplicada pelo Tribunal Marítimo" (in "A Regulação de Avaria Grossa: Aspectos Processuais e a Atuação do Tribunal Marítimo", "Direito Marítimo Portuário e Aduaneiro, Temas Contemporâneos", Vol II, Ed Arraes, Belo Horizonte; organizado por MARTIN, Eliane Octaviano; REIS DE LIVEIRA, Paulo Henrique; e MENEZES, Wagner).
15 "Art. 765 - Não serão reputadas avarias grossas, posto que feitas voluntariamente e por deliberações motivadas para o bem do navio e carga, as despesas causadas por vício interno do navio, ou por falta ou negligência do capitão ou da gente da tripulação. Todas estas despesas são a cargo do capitão ou do navio (artigo nº. 565)."
16 Aos que quiserem se aventurar em outros detalhes e maior aprofundamento na análise do instituto à luz das normas do Código Comercial, o Código de Processo Civil, as Regras de York-Antuérpia e o Projeto de Novo Código Comercial, recomenda-se aqui a leitura de outro artigo no qual tivemos oportunidade de contribuir acerca do tema, publicado na Revista de Direito Aduaneiro, Marítimo e Portuário nº 33, Jul- Ago/2016 (Instituto de Estudos Marítimos) e disponível aqui.
Outros julgados relativos ao tema, proferidos pelas cortes brasileiras, podem ser verificados no Livro de Jurisprudência Marítima disponível aqui.