Migalhas Marítimas

A colaboração premiada no processo marítimo - Ainda outra valiosa contribuição da resolução 54/21 do Tribunal Marítimo

A colaboração premiada no processo marítimo - Ainda outra valiosa contribuição da resolução 54/21 do Tribunal Marítimo.

24/6/2021

A resolução 54/2021 foi objeto recente desta coluna, em razão da introdução de amplos avanços vinculados, particularmente, à classificação de processos como de "alta relevância". Nesta oportunidade, no entanto, a resolução em comento retorna a este veículo em razão de ainda outra notória inovação proporcionada ao meio marítimo: trata-se da regulamentação, nesta esfera, do instituto da colaboração premiada.  

Ao leitor que goza de maior familiaridade com o Direito Penal, a colaboração premiada já se manifesta como ferramenta firmemente consolidada. Popularizada junto ao público mediante os trâmites da Operação Lava Jato (embora com o inglório nome de "delação premiada"), este meio de produção probatória permite que "o coautor ou partícipe da infração penal, além de confessar seu envolvimento no fato delituoso, [forneça] aos órgãos responsáveis pela persecução penal informações objetivamente eficazes para a consecução de um dos objetivos previstos em lei, recebendo, em contrapartida, determinado prêmio legal"1. Os requisitos exigidos à colaboração e os benefícios possivelmente auferidos pelo colaborador se encontram positivados, dentre outros, na lei 12.850/2013, também conhecida como Lei de Organizações Criminosas (LOC)2.

Pois bem. Com a edição da Resolução em análise, o Tribunal Marítimo (TM) passa a adotar o valioso instituto da colaboração premiada nos Inquéritos e Processos Sobre Acidentes e Fatos da Navegação. O parâmetro normativo à aplicação deste instituto foi estabelecido a partir da LOC, como se depreende da redação fixada no novo art. 90-A do Regimento Interno do TM3.

Os procedimentos vinculados à colaboração premiada restaram expressamente formalizados por meio dessa normativa, sendo evidente que o papel habitualmente atribuído ao Ministério Público na lei 12.850/2013 foi designado à Procuradoria Especial da Marinha (PEM), que possuirá competência exclusiva para avaliar e celebrar proposta de Colaboração Premiada (art. 90-A, § 3º e 4º da resolução 54/2021).

Sendo assim, mediante a recepção de proposta para formalização do acordo de colaboração premiada, será incumbência da PEM consignar junto ao pretenso colaborador – quer este seja pessoa física ou jurídica – as implicações punitivas desta transação. Vale ressaltar, ainda, que a Resolução valoriza a fixação da confidencialidade dos trâmites e deslinde do acordo em referência desde sua propositura, o que englobará, naturalmente, todo o decorrer das negociações que dele provenham.

A participação da PEM nos acordos de colaboração premiada firmados no processo marítimo passa, portanto, a se dar a partir da aquiescência devidamente formalizada do colaborador acerca do início das tratativas para consolidação da transação, momento o qual dispõe, necessariamente, da verificação de indício do cometimento de eventual infração por parte do colaborador.

Por fim, a Resolução 54/2021 determina que a colaboração premiada será conduzida por "comissão composta por dois integrantes da Procuradoria Especial da Marinha, indicados pelo Diretor daquela Procuradoria" (art. 90-A, § 8º da Resolução 54/2021). Eventual acordo deverá ser encaminhado ao juiz-relator e submetido ao Colegiado para homologação.

A experiência deste instituto junto à esfera marítima ainda é incerta, tais quais as questões e questionamentos que dela podem advir. No entanto, a assimilação desta ferramenta no âmbito do processo marítimo poderá ser de grande valor, sobretudo ao verificarmos que eventuais ilícitos penais ocorridos em vinculação à navegação atingem, em razão da alta complexidade dos negócios firmados e das movimentações financeiras a eles envolvidas, elevadíssimas montas.

De fato, alguns poucos exemplos já são suficientes para perceber a importância do novo instituto. A utilização dos rios da Bacia Amazônica para o tráfico de armas e entorpecentes, especialmente a partir do Alto Solimões, dada a proximidade com Países em que historicamente estas atividades ilícitas estão estabelecidas, já é fato conhecido dos órgãos de segurança, há anos. A predominante utilização da via fluvial em tais atividades ilícitas – geralmente organizadas com alto grau de sofisticação e capilaridade – já leva, por si só, ao interesse da jurisdição marítima, à luz do art. 15, f)4, da lei 2.180/54. Em tais circunstâncias, seria de todo recomendável a busca de coordenação entre os vários órgãos envolvidos na repressão (Polícia Federal, Ministério Público Federal, etc.), sendo possível até pensar na celebração de acordos simultâneos nas esferas criminal e marítima, a exemplo do que ocorreu com os acordos de leniência e de colaboração premiada, em fatos notórios nos últimos anos.

Mesmo em casos que não envolvam diretamente a prática de crimes, o instituto pode ter aplicação autônoma no processo marítimo.  Basta imaginar as hipóteses de empresas, regulares ou não, que promovem o transporte aquaviário de passageiros e cargas e que habitualmente constrangem seus comandantes a descumprir normas de segurança da navegação, especialmente a lotação (número máximo de pessoas permitidas a bordo) da embarcação, ou obrigando-os a realizar viagens quando as condições meteorológicas são desfavoráveis.  A colaboração premiada de um destes comandantes poderá revelar que o descumprimento das normas não seria pontual, mas uma prática comum na empresa. Isto permitiria (obviamente junto à colheita de provas adicionais no inquérito marítimo) ampliar significativamente o alcance da lei marítima, colhendo outras situações desconhecidas e mesmo práticas reiteradas que poderiam levar à punição de pessoas jurídicas.  Tal premissa evitaria, para usar uma expressão popular, que "a corda arrebente do lado mais fraco".  É, mesmo intuitivamente, uma clara realização da justiça.

Neste contexto inicial, portanto, é possível apenas especular sobre algumas consequências e polêmicas que poderão advir do novo instituto.  As consequências, sobre as responsabilidades civil e penal, da confissão realizada no âmbito do processo marítimo, para fins de colaboração premiada, certamente será uma destas polêmicas. Espera-se que o Poder Judiciário, em geral, tenha um olhar atento a estas inovações e veja a jurisdição marítima como uma aliada, que muito pode contribuir com a efetividade da jurisdição comum, e não como um "concorrente" que estaria invadindo as suas funções. Infelizmente, o histórico dessa atitude não nos permite muito otimismo.

Sendo certo que esta movimentação preliminar atua como mero prelúdio para as mais diversas discussões e alinhamentos a serem adotados junto ao TM, nos resta, neste primeiro momento, oferecer maior notoriedade à relevante iniciativa em referência, a qual promove valiosa contribuição de modo a facilitar o combate à corrupção e ao crime organizado no meio náutico.

Sérgio Ferrari é sócio do escritório Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados e doutor em Direito Público pela UERJ.

 

Roberta Labruna é bacharel em Direito pela PUC/RJ.

__________

1 LIMA, Renato Brasileiro. Legislação Especial Criminal Comentada. 4. ed. Salvador: JusPODIVM, 2016, p. 520. 

2  "Art. 4º O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados: I - a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas; II - a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa; III - a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa; IV - a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa; V - a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada."

3 "Art. 90-A Aplicam-se aos Processos sobre Acidente ou Fato da Navegação, os institutos da Colaboração Premiada, prevista na Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013, bem como o Acordo de Leniência, previsto no art. 16, da Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013."

4 Art . 15. Consideram-se fatos da navegação:

f) o emprego da embarcação, no todo ou em parte, na prática de atos ilícitos, previstos em lei como crime ou contravenção penal, ou lesivos à Fazenda Nacional.

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Lucas Leite Marques é sócio do escritório Kincaid Mendes Vianna Advogados com especialização em Direito Marítimo, Portuário e Internacional. Graduado em Direito pela PUC/Rio). Pós-graduado em Direito Processual Civil pela UCAM/IAVM, LL.M em Transnational Commercial Practice pela Lazarski University (CILS). Professor de Direito Marítimo da FGV/RJ e de cursos junto à Maritime Law Academy, Instituto Navigare, PUC/RJ, entre outros. Diretor da vice-presidência de Direito Marítimo e Portuário do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem - CBMA.

Luis Cláudio Furtado Faria sócio da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados. Formado em Direito pela UERJ.Mestre em Direito Civil pela UERJ e possui LLM em International Commercial and Corporate Law pelo Queen Mary College, da Universidade de Londres. Fez estágio na Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional – CCI em Paris. Atuou como advogado estrangeiro nos escritórios Herbert Smith e Reed Smith, ambos em Londres, entre 2011 e 2012.

Marcelo Sammarco é mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela Universidade Metropolitana de Santos. Graduado em Direito pela Universidade Metropolitana de Santos. Advogado com atuação no Direito Marítimo, Aéreo, Portuário e Regulatório. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo e Portuário da UNISANTOS. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo da Maritime Law Academy. Vice-presidente da ABDM - Associação Brasileira de Direito Marítimo. Presidente da Comissão de Marketing do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Árbitro do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Sócio do escritório Sammarco Advogados.

Sérgio Ferrari é professor Adjunto de Direito Constitucional da UERJ. Professor convidado do FGV Law Program. Pesquisador Visitante do Instituto do Federalismo da Universidade de Freiburg, Suíça, de 2013 a 2014. Professor convidado da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) de 2011 a 2013. Doutor e mestre em Direito Público pela UERJ. Bacharel em Direito pela UFRJ. Sócio do escritório Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados.