É possível que o leitor dessa coluna já tenha reparado no aumento do número de embarcações fundeadas na zona costeira brasileira, especialmente naquelas próximas às áreas de exploração e produção de petróleo. Nesse último domingo, o fenômeno surpreendeu, novamente, o primeiro autor desta coluna ao passar pela Baía de Guanabara. O registro do fotógrafo amador segue abaixo:
A maioria das embarcações que aparecem nessa foto são embarcações empregadas no que a legislação brasileira define como navegação de apoio marítimo. Essas embarcações prestam apoio logístico a outras embarcações e instalações, sobretudo plataformas e FPSOs, que atuam nas atividades de pesquisa e lavra de hidrocarbonetos.
Segundo informações da Associação Brasileira das Empresas de Apoio Marítimo (Abeam), a frota da navegação de apoio marítimo no Brasil possui, atualmente, 373 embarcações, sendo 336 de bandeira brasileira e 37 de bandeira estrangeira. Diante de tais números, é difícil imaginar que, na década de 70, quando do início da exploração offshore no Brasil, a frota brasileira de navios de apoio marítimo era composta por apenas 13 embarcações1.
À época, o tipo de navegação exercida por essas embarcações sequer era denominada "apoio marítimo", sendo classificada como "pequena cabotagem", entendida como a navegação realizada entre a costa e as ilhas oceânicas brasileiras. Hoje, aquela "pequena cabotagem" corresponde a uma frota de centenas de embarcações que prestam serviços à Petrobras, mas também a empresas estrangeiras que operam no país, as chamadas empresas de E&P (Exploração e Produção).
Especificamente no que importa ao presente artigo, deve-se destacar que, até a recente alteração normativa que será mencionada adiante, as empresas de E&P que pretendiam contratar embarcações de apoio marítimo para fornecer suporte logístico às suas atividades eram impedidas de celebrar contratos de afretamento por tempo com os armadores dessas embarcações, estes constituídos sob a forma de uma Empresa Brasileira de Navegação, as chamadas EBNs.
Isso porque a ANTAQ possuía o entendimento de que apenas EBNs poderiam afretar embarcações por tempo operadas por outras EBNs, ou seja, nas duas pontas do contrato de afretamento por tempo deveria haver uma EBN. Assim, nos casos em que a empresa de E&P não constituía uma EBN – o que ocorre com bastante frequência, já que a navegação, via de regra, não consiste no core business dessas empresas --- a única forma de uma empresa de E&P contratar embarcações de apoio marítimo era por meio de contratos de prestação de serviços.
Ocorre que, nesse cenário, a empresa de E&P incorria em aumento de custos operacionais em razão da incidência, sobre o contrato de prestação de serviços, do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS). Já nos contratos de afretamento, não há incidência desse tributo, por constituírem contratos complexos (parte locação, parte prestação de serviços), conforme entendimento consolidado no STJ (Recurso Especial 1.054.144-RJ, Min. Relatora Denise Arruda)
Esse ônus fiscal – quando não repassado às próprias EBNs de apoio marítimo por meio da redução do valor do serviço prestado -- contribuía para o aumento dos custos de operação das empresas de E&P, ensejando, em última análise, a perda de competitividade do petróleo produzido no país.
Além de não encontrar paralelo em outros países produtores de petróleo, a crítica que se fazia ao entendimento da ANTAQ era o de que a empresa de E&P, ao afretar uma embarcação de apoio marítimo por tempo, não exerce propriamente uma atividade de navegação, a qual continua a ser desempenhada pela EBN de apoio marítimo. A título exemplificativo, e com certo exagero, as empresas de E&P alegavam não ser necessário ter uma empresa de construção para alugar um imóvel, nem ser um taxista para pegar um táxi.
Por trás de ambos os exemplos, encontrava-se o firme propósito das empresas de E&P não serem obrigadas a constituírem EBNs "de papel", apenas para poderem afretar embarcações de apoio marítimo por tempo, nem continuarem a se sujeitar aos contratos de prestação de serviços, que, como exposto, atraíam a incidência do ISS, tornando a operação de E&P mais custosa e burocrática.
Esse cenário sofreu uma importante reviravolta recentemente. Por iniciativa do Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás – IBP e com o apoio da Associação Brasileira das Empresas de Apoio Marítimo – ABEAM, a Diretoria Colegiada da ANTAQ, após quase uma década de acalorados debates e estudos aprofundados, decidiu, por unanimidade, modificar a Resolução Normativa nº 1/2015 ("RN1/2015") para autorizar as empresas de E&P a afretarem embarcações nacionais de apoio marítimo por tempo, mesmo sem constituírem uma EBN.
A alteração normativa, ao permitir o afretamento de embarcações por tempo por empresas de E&P, exige que a gestão náutica da embarcação continue sendo realizada obrigatoriamente pela EBN de apoio marítimo, o que já é típico do afretamento por tempo. A nova redação da RN1/2015 também exige que a EBN de apoio marítimo seja a responsável por fazer o registro do afretamento no Sistema de Afretamento na Navegação Marítima e de Apoio – SAMA, ao qual somente as EBN’s possuem acesso.
Assim, não há mais necessidade de que o contrato de afretamento por tempo na navegação de apoio marítimo seja realizado entre duas EBNs, podendo uma empresa de E&P figurar como afretadora dessas embarcações, mesmo sem constituir uma EBN, desde que a gestão náutica da embarcação seja sempre realizada pela EBN de apoio marítimo, como, aliás, já ocorre normalmente nessa modalidade de afretamento por tempo.
Outra alteração na RN1/2005 diz respeito à vedação da empresa de E&P, após afretar a embarcação de apoio marítimo, prestar serviços a terceiros utilizando a embarcação afretada ou também subafretar a embarcação (art. 4º, § 7º, II), o que se mostra coerente com as alterações anteriormente mencionadas, pois a atividade de navegação é própria da EBN e não das empresas de E&P.
Por fim, deve ser destacada a autorização para que as EBN’s possam subafretar por tempo embarcações estrangeiras de apoio marítimo para empresas de E&P, alteração igualmente relevante, pois, muitas vezes, tais empresas demandam embarcações altamente especializadas e sofisticadas que ainda não estão disponíveis no país.
Os que eram contrários à modificação normativa promovida pela ANTAQ defendiam que, nos termos do art. 8º, caput¸ da lei 9.432/97 ("Lei de Transporte Aquaviário"), somente a EBN poderia afretar embarcações brasileiras, seja por viagem, tempo ou a casco nu, não havendo autorização para que empresas não-EBN’s, como as empresas de E&P, afretassem embarcações por tempo.
Embora tal interpretação tenha prevalecido na ANTAQ durante quase uma década, finalmente cedeu aos argumentos das empresas de E&P no sentido de que não haveria, no citado artigo 8º, uma vedação expressa para que outras empresas figurassem como afretadoras de embarcações, devendo ser prestigiada a autonomia contratual, a liberdade econômica e a competitividade do mercado aquaviário.
Por fim, os defensores da impossibilidade de empresas de E&P afretarem embarcações por tempo alegavam que, limitando-se somente às EBN’s a possibilidade de celebração de contratos de afretamento, haveria naturalmente a multiplicação dessas empresas, fomentando o mercado aquaviário, o que acabou não se concretizando na prática. Segundo a análise da ANTAQ, a vedação não fez com que um número expressivo de empresas de E&P constituíssem EBN’s, justamente porque, na grande maioria dos casos, esse não seria seu foco de negócios.
Por outro lado, espera-se que com a alteração normativa promovida pela ANTAQ, haja aumento na demanda de embarcações de apoio marítimo por empresas de E&P. Há também uma expectativa de que a decisão tomada pela ANTAQ possa servir de ponto de partida para discussões no sentido de flexibilizar o afretamento de embarcações de apoio marítimo por tempo por empresas que não sejam somente da área de E&P, de modo que outros usuários finais também possa afretar embarcações por tempo sem necessariamente ser uma EBN.
Caso isso venha a ocorrer, é provável que o leitor dessa coluna continue a constatar, nos anos vindouros, o aumento expressivo do número de embarcações no horizonte das zonas costeiras brasileiras.
* Luis Cláudio Furtado Faria é sócio da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados.
** Erick Faustino é advogado da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados.
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1 Disponível aqui.