O encalhe do navio Ever Given no Canal de Suez demonstrou como a logística do transporte marítimo embora seja eficiente pode ser frágil. Mostrou, ainda, como os impactos de um incidente como este podem repercutir não apenas na relação contratual entre o transportador marítimo e as cargas que se encontravam – e ainda se encontram – a bordo do referido navio, mas também em outras esferas e relações, como no contrato de fretamento existente sobre o navio Ever Given; em outras demandas de fretamento e transporte relativas às embarcações que ficaram retidas, impossibilitadas de navegar pelo canal; nas relações de seguros marítimos; em demandas de limitação de responsabilidade, como aquela manejada pelo armador do navio perante a corte de Londres; em relações de salvamento e todos os esforços que foram realizados para liberar o navio e desobstruir o canal; na ocorrência da avaria grossa declarada; no arresto e indenizações pleiteadas, como aquelas perseguidas pela autoridade do canal; na relação da tripulação do navio, que se encontra impossibilitada de retornar às suas casas; nas investigações pelas autoridades locais e pela autoridade da bandeira acerca das reais causas do acidente; entre diversos outros temas específicos de direito marítimo.
Um incidente como este, aliás, é capaz não apenas de preencher o espaço em diversas futuras edições desta coluna, cada uma focando num aspecto distinto do direito marítimo, como também de tomar corpo em fóruns, seminários e congressos relacionados à matéria pelos anos que se sucederão. Afinal, é frutífero o debate de forma não apenas a que os institutos típicos do direito marítimo possam ser vistos na prática, mas também que os elementos pedagógicos e as lições aprendidas com esse evento ajudem a moldar normas e procedimentos capazes de promover maior segurança à tão importante navegação marítima.
Não obstante toda a gama de assuntos marítimos acima comentados, o objeto desse breve artigo será tratar da relação do transporte das cargas a bordo de uma embarcação e os limites nos quais poderá se verificar a eventual responsabilidade do transportador pelo atraso na entrega de mercadorias em seu destino. E, não obstante o fato de que o navio Ever Given trafegava num trajeto Ásia-Europa, trataremos do caso, num exercício hipotético, sob a ótica da legislação brasileira.
Considerado individualmente, o encalhe do Ever Given já impactaria centenas de players, desde os proprietários das cargas aos fornecedores de insumos para embarcação, passando por agentes de carga, agências marítimas, seguradores, operadores portuários, entre outros. Entretanto, o encalhe ocorreu em uma das mais importantes rotas marítimas mundiais, cuja obstrução causou retardo a centenas de ouras embarcações que ficaram impossibilitadas de trafegar pelo canal e se viram forçadas a optar pela espera de uma liberação do tráfego ou alterar os rumos e traçar nova derrota contornando o continente Africano. Qualquer das opções naturalmente implicava atrasos e custos adicionais não inicialmente esperados.
Cabe lembrar que as embarcações não navegam aleatoriamente de portos em portos. A segurança da navegação, o aproveitamento energético, as condições das marés e os fatores econômicos tornaram conveniente a estipulação de rotas habituais, especialmente no que tange ao transporte de carga containerizada, como no caso dos 20 mil TEUS (vinte mil unidades de carga de vinte pés) suportados pelo ultra grande porta-containeiro (ULCV) Ever Given. Normalmente os navios porta-container operam no mercado liner, seguindo linhas regulares e itinerários repetitivos, com portos e escalas fixos. Essas rotas habituais permitem o cálculo do tempo estimado de cada viagem.
Contudo, nem sempre o tempo estimado de viagem pode ser cumprido à risca e o atraso no transporte das cargas pode afetar direta ou indiretamente diversos players da cadeia. Mas como fica a responsabilidade do transportador no caso de atrasos decorrentes de um evento como no caso Ever Given?
De antemão, cumpre destacar que não se objetiva aqui discutir os atrasos na entrega das mercadorias transportadas no próprio Ever Given, pois para isso seria necessário tratar dos pedidos de limitação de responsabilidade e a declaração de avaria grossa, situações que alterariam de forma basilar o regime de responsabilidades. O objetivo é tratar genericamente sobre atrasos na entrega de mercadorias objeto de um transporte marítimo e o regime de responsabilidades.
Não há um regime internacional uniforme que discipline o atraso no transporte marítimo. O maior esforço nesse sentido são as Regras de Hamburgo, as quais estão em vigor apenas em 35 países e o Brasil, apesar de ter sido um dos signatários das referidas Regras, não as ratificou.
As Regras de Hamburgo definem que o atraso é constatado quando a carga não é entregue no destino no tempo acordado ou, na ausência de uma previsão expressa de um prazo no contrato de transporte, em um período que poderia ser razoavelmente esperado para tanto. As Regras de Hamburgo limitam a indenização a duas vezes e meio o valor do frete da carga atrasada, não podendo esse valor exceder o frete total. Todavia, o que mais interessa no caso em análise, é que as Regras disciplinam que o transportador não será responsável por atrasos decorrentes de eventos que não estejam sob sua responsabilidade.
No Direito Brasileiro aplica-se à hipótese de atraso na entrega de mercadorias, o regime geral de responsabilidade civil por danos. O Código de Processo Civil de 1939 previa, em seu artigo 756, o prazo de 15 dias para que o consignatário da carta apresentasse eventual “reclamação por motivo de atraso”, mas, no entanto, não trazia uma definição do que seria considerado "atraso" e a regra tampouco foi acolhida pelos Códigos Processuais posteriores.
A Lei Civil, por sua vez, disciplina, no artigo Art. 733, § 1° que "o dano, resultante do atraso ou da interrupção da viagem, será determinado em razão da totalidade do percurso". Tal previsão ainda deixa margem para interpretação sobre o que seria considerado um excesso de tempo capaz de configurar um atraso, não obstante trazer o critério da comparação com o percurso realizado.
Sob a ótica contratual, o prazo de cumprimento de uma obrigação e as penalidades contratuais em caso de atraso podem ser inseridos nas cláusulas do contrato e regulados conforme a vontade das partes, desde que a redação da cláusula não seja abusiva ou contrária a ordem pública. Entretanto, os contratos de transporte marítimo, em regra, não estipulam datas precisas de chegada das embarcações ou entrega das mercadorias no destino, mas sim previsões ou estimativas, que não implicam certeza ou exatidão. Por vezes, há inclusive a inserção de cláusulas dentro das condições gerais do conhecimento de transporte prevendo expressamente que o transportador não garante ou se compromete a carregar, transportar ou descarregar as mercadorias em data determinada. Tal imprecisão, conhecida de antemão pelos embarcadores, consignatários e seguradores de carga, não permite uma apuração categórica sobre o termo "a quo" de eventual atraso.
Tal questão inclusive já foi palco de exame pelos nossos tribunais:
(...) Da análise dos autos constata-se que inexiste qualquer prova de ter a primeira ré se comprometido junto à autora a entregar o bem transportado exatamente no dia 16 de abril de 2004, contrariando, assim, a narrativa constante da exordial. (...) Sabe-se, todavia, que previsão não significa certeza, exatidão, não sendo apta a gerar pretensão. (...). De outra maneira, o contrato de conhecimento celebrado entre as partes contratantes (...), não estipula datas de chegada da mercadoria adquirida pela parte autora, ao contrário, dispõe na cláusula 13 que "A transportadora não garante as datas de chegada. A Transportadora não se responsabiliza pelo atraso..." Nestas condições, não restou evidenciado ter a parte ré agido de má-fé ou mesmo descumprido o quanto se obrigou mediante ajuste. (...) apenas forneceu à contratante/autora uma data provável de execução total do contrato. De outro modo, a data prevista de entrega do bem foi frustrada por razões alheias à vontade da empresa acionada, conforme restou demonstrada através da prova carreada aos autos (...) (TJBA, Proc. 644289-8/2005, Juíza Maria De Fátima Silva Carvalho, 2ª Vara Cível, j. 30/09/2008)
E, tirando o foco do contrato de transporte, o julgado abaixo, proferido pelo E. Tribunal de Justiça do estado de São Paulo, serve como um alerta para que tais circunstâncias sejam devidamente tratadas na seara do contrato de compra e venda internacional de mercadorias pactuado entre o exportador/embarcador e o importador/consignatário, no âmbito da relação comercial entre os mesmos, especialmente em casos nos quais existe a necessidade de que a carga chegue ao destino a tempo de uma determinada ocasião.
(...) TRANSPORTE MARÍTIMO QUE POSSUI PECULIARIDADES PRÓPRIAS E ESTÁ SUJEITO A VÁRIOS FATORES CAPAZES DE ALTERAR SUA EXECUÇÃO. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DO AJUSTE DE DATA CERTA E DEFINIDA PARA A CHEGADA DO PRODUTO EXPORTADO AO PORTO DE DESTINO (...) o transporte contratado possui natureza distinta dos demais contratos de transporte, além de peculiaridades próprias, especialmente porque sujeito a vários fatores capazes de alterar sua execução, que vão desde às condições climáticas e ao congestionamento dos portos até os mais variados problemas de ordem operacional. No conhecimento de transporte objeto desta lide, vale ressaltar, não se encontra data certa e definida para a chegada. As previsões lançadas ao longo da viagem estão sujeitas a alteração, sendo que a cláusula oito das condições gerais do contrato prevê a isenção de responsabilidade do transportador por atraso nas chegadas programadas, com menção expressa de que o transportador não garante ou se compromete a carregar, transportar ou descarregar mercadoria em determinada data. E mais: “Saídas e chegadas anunciadas são apenas datas estimadas e tais itinerários poderão ser adiantados, atrasados ou cancelados sem aviso”. Quanto aos métodos e rotas de transporte, a cláusula 9.1 faculta ao transportador a transferência da carga para outro navio, inclusive com transbordo, prosseguir por qualquer rota. A transportadora comprovou a necessidade de transbordo (...), da alteração de rotas e de portos, sendo certo que o navio não está obrigado a partir sem que se tenha carregado uma carga mínima. Não se comprovou, assim, a ação ou omissão involuntária, negligência ou imprudência pela ré ou pela denunciada a justificar a responsabilização delas pela entrega das mercadorias em data posterior ao Natal. (...) E, uma vez que “o ramo de atividade da autora está ligado à exportação e importação de vários produtos alimentícios, estando, por isso, invariavelmente afeita ao comércio que explora e habituada aos meandros da importação e do transporte marítimo”, o “risco pela falta de entrega da mercadoria ao comprador no prazo acordado entre a autora e o último, assim, deve ser assumido somente pela autora que elegeu o transporte marítimo que, sabidamente, não contém garantia de prazo de entrega.” Desse modo, nada há nos autos a comprovar ter a ré assumido a obrigação de entrega dos produtos exportados antes das festividades natalinas (...). (TJSP, Apelação 1077648-79.2013.8.26.0100, Des. Alfredo Attié, 26ª Câm. de Direito Privado, j. 23/11/2017)
Vale lembrar que a atividade de transporte marítimo é recheada de intempéries e circunstâncias internas e externas que as influenciam, riscos estes que se consubstanciam na expressão internacionalmente consagrada ‘aventura marítima’. Sob essa ótica e considerando-se que em nosso ordenamento jurídico, o atraso seria a extrapolação de um prazo expressamente acordado – e já se viu não ser a prática nos contratos de transporte marítimo de mercadorias a definição de prazos fixos para entrega - ou de um prazo razoável, considerando-se o percurso realizado, será necessário apurar concretamente, caso a caso, transporte a transporte, se houve efetivamente algum excesso de tempo, fora do que seria razoável estimar, entre o início e o término do transporte realizado, que pudesse ter causado um dano à carga ou ao consignatário, capaz de ocasionar responsabilização do transportador.
A esse respeito, a Resolução Normativa N° 18-ANTAQ da Agência Nacional de Transportes Aquaviários1 prevê, no seu art. Art. 17, § 1º2, a ocorrência de um atraso quando, na ausência de prazo acordado, a carga não for entregue dentro de um prazo razoavelmente exigível, tomando-se em consideração as circunstâncias do caso.
E, para trazer parâmetros mais concretos ao que seria um "prazo razoavelmente exigível", a prática internacional entende que um atraso passa a ser indenizável quando extrapola em mais de 50% o tempo estimado da viagem3.
Todavia, nem todo excesso de tempo na jornada marítima acima de tal limite gera, por si só, uma responsabilização por atraso, na medida em que se admite a ocorrência de hipóteses que justifiquem determinado atraso e, consequentemente, servem como excludentes da responsabilidade do transportador.
Nesse ponto, novamente a Resolução Normativa N° 18-ANTAQ prevê, agora no parágrafo 2º do art. 17, que "o atraso decorrente de caso fortuito ou de força maior não configura descumprimento do critério de pontualidade".
Seguindo-se esta linha, eventos da natureza que se enquadrem no conceito de força maior4, fatos do príncipe e até mesmo fatos de terceiro desconexos ao contrato de transporte, que fujam aos limites das cautelas e precauções a que o transportador está obrigado5, podem ser enquadrados no conceito de fortuito externo e, consequentemente, exonerar eventual responsabilidade por atrasos, como no caso a seguir julgado pelo E. Tribunal de Justiça do Pará:
Apelação cível - ação de indenização por danos morais - transporte marítimo - atraso ao destino designado - responsabilidade civil - hipóteses de exclusão. Caso fortuito ou força maior. 1. A empresa prestadora de serviços de transportes marítimos não pode ser responsabilizada se o fato ocorrera de forma alheia a sua vontade. 2. Defeito oriundo de fatos naturais e extremamente corriqueiros desta atividade comercial. 3. Não caracterização da culpabilidade da empresa prestadora do serviço. (TJPA, AC: 2004300-24302, Relatora: Des Maria Rita Lima Xavier, Pub: 27/09/2004)
Com isso, cumpriria, no caso concreto, analisar não só a existência de dano, como também a causa do atraso. E, no exemplo do incidente no canal de Suez, para as cargas a bordo da embarcação Ever Given, a definição legal de eventuais responsabilidades sobre as cargas transportadas estará atrelada ao desfecho das investigações e a fixação das causas que geraram o incidente, especialmente se houver eventual constatação de força maior. Já para as cargas transportadas nas centenas de outras embarcações que ficaram impossibilitadas de trafegar pelo canal durante os dias que se sucederam, provavelmente, sob a ótica da lei brasileira, seria justificável o atraso ante a circunstância fortuita que viria a causar o acréscimo de mais alguns dias àquela jornada marítima. O cenário, no entanto, seria diferente para os transportes pactuados após a ocorrência do encalhe, pois, em tais casos, a situação já seria previsível e a logística poderia ser reajustada de antemão.
Por óbvio, cada caso concreto pode guardar especificidades aqui não vislumbradas, mas situações como estas exigem ponderação de todas as partes envolvidas, além da manutenção de um canal de comunicação, na medida em que, tanto o transportador como os proprietários de cargas podem trocar informações acerca do transcurso da jornada e eventuais ajustes de previsão de chegada do navio ao destino.
Questões decorrentes de atraso, ainda que com maior ou menor intensidade, repercutem e afetam todos os envolvidos na logística do transporte, Razão pela qual seria mais adequado, sempre que possível, que eventuais controvérsias sejam resolvidas por meio de negociações entre as partes, preservando-se a parceria comercial existente, do que na judicialização de um litígio6.
*Lucas Leite Marques é sócio do escritório Kincaid | Mendes Vianna Advogados.
**Paulo Henrique Reis de Oliveira é advogado do escritório Kincaid | Mendes Vianna Advogados.
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1 Cartilha de Direitos e Deveres dos Usuários da Navegação Marítima e de Apoio.
2 Art. 17, § 1º O atraso ocorre quando a carga não for entregue dentro do prazo expressamente acordado entre as partes, ou, na ausência de tal acordo, dentro de um prazo que possa, razoavelmente, ser exigido do transportador marítimo, tomando-se em consideração as circunstâncias do caso.
3 Como afirma John F. Wilson em "WILSON, John F.; "Carrige of Goods by Sea"; Harlow, Inglaterra: Pearson, 2010".
4 RESPONSABILIDADE CIVIL – Transporte marítimo – Regressiva de seguradora sub-rogada – Perda de carga em razão de caso fortuito (furacão) – Incidência dos arts. 102 do Código Comercial e 1.058 do Código Civil, excluindo a responsabilidade do transportador – Improcedência da ação em 1º grau – Apelação não provida. "(...) O caso fortuito restou devidamente comprovado, presentes os requisitos da necessariedade e da inevitabilidade. O primeiro conceituado como o acontecimento que impossibilita cumprimento da obrigação e, o segundo, como a inexistência de meios para evitar ou impedir os efeitos do evento extraordinário. (...) A previsibilidade, a que se apegam os apelantes, era dispensável, desde que "se surgiu como força indomável e inarredável, e obstou o cumprimento da obrigação, o devedor não responde pelo prejuízo (...)". (TJSP, Apelação nº 604283-7, Relator Des. Jorge Farah, 1º Tribunal De Alçada Civil, j. 31/07/93).
5 O C. STJ já reconheceu que fato de terceiro e as circunstâncias estranhas que não guardam conexidade com o transporte em si podem ser equiparáveis a fortuito externo apto a excluir responsabilidades, conforme EREsp 1.431.606 ; REsp: 38891 (Relator: Ministro Claudio Santos, pub. 28/03/1994); AgRg no REsp: 1285015 (Relator: Ministro Antonio Carlos Ferreira, DJe 18/06/2013) e; REsp: 70393 (Relator: Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, j. 10/03/1997).
6 Os julgados referidos no presente artigo, além de muitos outros proferidos pelas cortes brasileiras acerca de temas relacionados ao direito marítimo podem ser verificados no Livro de Jurisprudência Marítima disponível aqui.