Falar da exploração do trabalho infantil no Brasil, nos remete a tempos anteriores até mesmo do Código de Menores de 27. E mais, nos faz trazer para pauta, um histórico de trabalho forçado, desumano, violento e cruel para uma parcela da população infanto-juvenil.
No Brasil, o período de escravização negra perdurou por aproximadamente 388 anos, sendo o último país a abolir o regime de escravização. Milhares de crianças e adolescentes foram trazidos do continente africano para o trabalho nas “Casas Grandes”, mas também nas atividades agrícolas.
Mary Del Priore, no texto “A criança negra no Brasil” (2012)1, aponta que dos escravos desembarcados no Brasil, cerca de 4% eram crianças, destas, apenas 1/3 chegava a completar 10 anos e, na maioria das famílias, aos 4 anos, já começavam a trabalhar sozinhas ou com os pais.
Com o fim do período de escravização, a situação das crianças negras tornou-se ainda mais invisibilizada, sem quaisquer tipos de proteção social na legislação brasileira. Assim como seus pais, ficaram à margem.
Há aqui de se mencionar que, registros históricos, como os descritos nas obras de Irene Rizzini, Irma Rizzini e da já aqui mencionada, Mary Del Priore, apontam que muitas destas crianças, se alocavam em trabalhos como jornaleiras, engraxates, sem mencionar as atividades perigosas, como nas fábricas.
Em 1917, em decorrência das inúmeras violações de direitos, de crianças e mulheres, que eram a maioria da mão de obra em trabalhos exaustivos e perigosos, houve uma grande greve, tendo por pauta a abolição do trabalho infantil.
Com a criação da OIT – Organização Internacional do Trabalho, em 1919, após a Primeira Guerra Mundial, surgiram as primeiras leis trabalhistas, que objetivavam a proteção de crianças e mulheres no trabalho. Entretanto, foi apenas com a edição do primeiro Código de Menores que foi estabelecida a proibição do trabalho em todo território nacional para crianças e adolescentes com menos de 12 anos.
Muito embora dispusesse sobre a proibição do trabalho, o referido Código, permitia o trabalho nas ruas, punindo e estigmatizando as crianças que denominava como “menores”, que em sua maioria, eram crianças negras, filhas de escravizados libertos. Ali, começava a ser delineado um longo e cruel percurso de uma história de estigmatização, preconceito, discriminação e exclusão social. Para as crianças das famílias abastadas, o bom e melhor, para as crianças negras, o trabalho e a correção por suas condutas.
As Constituições Federais que sucederam o Código de Menores de 27, previram em seu escopo a proibição do trabalho infantil, aumentando a faixa etária para o ingresso no mercado de trabalho, de certa forma, protegendo a população infanto-juvenil.
A Constituição de 1934, previu a idade de 14 anos, a de 46 – 16 anos, mas em plena ditadura, isso retrocedeu e estipulou-se a idade mínima de 12 anos. Foi a Constituição de 1988, a “Constituição Cidadã”, como fora denominada, que por fim, em seu artigo 7º que delimitou as condições para o ingresso de adolescentes no mercado de trabalho, que foi estendido ao art.403 da CLT e ao artigo 60 do ECA.
Mas qual a importância deste resgate histórico para falar sobre o trabalho infantil no Brasil? Para falar que, muito embora tenhamos no artigo 227 da Constituição Federal a previsão de Proteção Integral aos direitos de crianças e adolescentes, este princípio está muito longe de ser alcançado. Não raro, nos deparamos, em pleno 2024, com situações de exploração em nossa sociedade.
Segundo o PnadC2, 2019, IBGE, quase dois milhões de crianças e adolescentes, entre 5 e 17 anos, em sua maioria negra, continuavam a trabalhar, muitas delas, nas piores formas de trabalho infantil enumeradas na Lista TIP da OIT3, sujeitas a todos os tipos de violência, acidentes, prejuízos no seu desenvolvimento físico e psicossocial.
E aqui, oportunamente, abro um parêntese para abordar a questão do tráfico de drogas que, muito embora considerado uma das piores formas de trabalho infantil pelas leis nacionais e internacionais, é causa ainda de responsabilização de adolescentes que, ao invés de serem reconhecidos como vítimas de sua exploração, são apreendidos e, não raramente, inseridos em medida socioeducativa em meio fechado.
Mas, retornando aos números, dados recentes da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Continua Trimestral (Pnad Continua), apontam que entre os 1,40 milhão de adolescentes brasileiros de 14 a 17 anos ocupados no primeiro trimestre de 2024, 1, 12 milhão estavam envolvidos em trabalho infantil. Em um levantamento da Fundação Abrinq, 44% destes adolescentes, estavam inseridos nas piores formas de trabalho infantil.
Frente a esta situação, não podemos deixar de mencionar que o Brasil foi condenado em uma decisão (2020) da Corte Internacional de Direitos Humanos4 no caso de trabalho infantil numa fábrica de fogos de artificio no município de Santo Antônio de Jesus/BA, após a morte de 64 pessoas, dentre elas, 22 crianças e adolescentes, com idade de 9 a 17 anos.
Estas informações e dados numéricos reforçam um estigma perpetuado em nossa sociedade, que há tempos naturalizou a presença de crianças e adolescentes em condições de exploração de trabalho infantil, tanto que não é raro, numa roda de debates nos deparar com falas do tipo: “O trabalho da criança/adolescente ajuda na formação do caráter”, ou “É melhor trabalhar do que roubar”, ou “O trabalho da criança/adolescente ensina regras e disciplinas”.
Sendo assim, compete-nos lembrar que, para além destas colocações retrogradas, devemos coibir tais práticas, pois é direito de toda criança e adolescente, realizar atividades próprias da sua idade, ter seu desenvolvimento pleno, estar em um ambiente seguro, que lhe permita o alcance a todos seus direitos fundamentais.
Devemos enquanto sociedade, ter a consciência de que combater o trabalho infantil é romper com a perpetuação dos ciclos de exclusão social, oportunizando às crianças e adolescentes, o acesso às políticas públicas setoriais, respeitando os preceitos constitucionais e normativas internacionais das quais o Brasil é signatário, garantindo a proteção integral das mais diversas infâncias e adolescências brasileiras que seguem excluídas e invisibilizadas.
Lembrando que, em caso de trabalho infantil, denuncie: Disque 100 ou acesse www.mpt.mp.br e http://http://ipetrabalhoinfantil.trabalho.gov.br
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