A partir de 1990, com a instituição do Estatuto da Criança e do Adolescente, assim como, com a efetiva ruptura da Doutrina da Situação Irregular, instalou-se no país uma nova lógica para o atendimento e acompanhamento de adolescentes a quem se atribui a autoria de ato infracional. Esta substituição de paradigmas, representou a inclusão social do adolescente em conflito com a lei, que deixou de ser um mero objeto de intervenção como era no passado.
No Título III do ECA, entitulado “Da Prática de Ato Infracional”, a legislação, sem descrever o ‘modus operandi’ trouxe em seu escopo, normas para a apuração de ato infracional, tipificação do que é o ato infracional, direitos e garantias aos adolescentes e as medidas socioeducativas a serem aplicadas em caso de cometimento destes.
Passados 12 anos da concepção do ECA, dada a ausência de diretrizes quanto à execução das medidas socioeducativas, o CONANDA (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente), enquanto responsável por deliberar sobre a política de atenção à infância e a adolescência no país, e a SEDH/SPDCA (Secretaria Especial dos Direitos Humanos), em parceria com a ABMP (Associação Brasileira de Magistrados e Promotores da Infância e Juventude) e o FONACRIAD (Fórum Nacional de Organizações Governamentais de Atendimento à Criança e ao Adolescente) realizaram encontros nacionais, regionais e estaduais a fim de debater a respeito da Lei de Execução das Medidas Socioeducativas, a prática pedagógica a ser desenvolvida nas Unidades socioeducativas em todo país, e principalmente, a elaboração de parâmetros e diretrizes para a execução das medidas socioeducativas.
O resultado destas ações, foi a Resolução 119/2006, que dispõe sobre o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo e dá outras providencias, que em 2012, serviu de escopo para a Lei 12.594, de 18 de janeiro de 2012, que instituiu o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo e regulamentou a execução das medidas destinadas a adolescente que pratique ato infracional (art.1º).
E por que se faz importante a retrospectiva destes importantes marcos normativos? Primeiramente, para reforçar a importância dos parâmetros pedagógicos das medidas socioeducativas, os objetivos às quais estas se destinam, mas principalmente, reforçar a competência da União, dos Estados e dos Municípios enquanto responsáveis pela implementação dos programas de atendimento e financiamento destes, partindo da lógica da incompletude institucional descrita no artigo 86 do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Ocorre que, em meados do ano de 2019, um projeto entitulado “Novo Socioeducativo”, estruturado pela Caixa Econômica Federal, em conjunto com o então, Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH), a Secretaria Especial do Programa de Parcerias de Investimento do Ministério da Economia (SPPI), os governos estaduais, em parceria com o UNOPS (organismo das Nações Unidas especializado em infraestrutura e gestão de projetos), tendo por principal objetivo, a construção e manutenção de novos centros socioeducativos e a contratação de infraestrutura e gestão dos serviços realizada por meio de parceria público-privada, colocando em risco a efetiva proteção e garantia de direitos dos adolescentes e jovens em cumprimento de medidas socioeducativas de restrição e, ou privação de liberdade nos estados brasileiros.
Como é sabido, a medida socioeducativa de internação, prevista no art.121 do ECA, tem caráter excepcional, devendo ser aplicada somente nos casos dispostos na lei, com atenção aos princípios da brevidade, excepcionalidade e, fazendo prevalecer desta forma, o direito à liberdade e de convivência familiar e comunitária, cabendo ao Estado, como segue no disposto do art.125, do mesmo mandamento legal, zelar pela integridade física e mental dos internos.
É importante salientar que, a par deste mandamento, o Supremo Tribunal Federal, no âmbito do Habeas Corpus Coletivo nº 143.9881, em consonância com o previsto nas legislações nacionais e internacionais, reforçou ser o Estado o responsável pela garantia dos direitos desses adolescentes, tornando ainda mais equivocada a parceria firmada e disposta no Decreto supracitado.
Aqui, importante abrir um parêntese, para mencionar que no Levantamento Nacional de Atendimento Socioeducativo2 publicado em novembro de 2023, foi demonstrada a queda no número de adolescentes e jovens nas medidas socioeducativas restritivas e de privação de Liberdade, o que não justifica a construção de novos centros educacionais, proposta nesta parceria firmada e que já vem sendo efetivada em alguns estados, como no caso de Minas Gerais, que, em pouco tempo de Cogestão, já conta com histórico de denúncias de violações de direitos, como restou explicitado na Nota Técnica nº 10/20223, do Mecanismo Nacional de Combate à Tortura.
Fica demonstrado que a lógica adotada por este “Novo Socioeducativo” é perversa e implica na perda de direitos já garantidos nas legislações nacionais e internacionais aos adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas de semiliberdade e, ou, internação. Não diz respeito só ao orçamento público ou corte de gastos, implica em retrocessos, de tornar o adolescente mero objeto de ‘per capitas’ recebidas, de sucatear as politicas públicas voltadas ao atendimento devido aos adolescentes em conflito com a lei, como no caso da educação, da capacitação ao mundo do trabalho, esportes, cultura, dente outras.
Para além da questão orçamentária, a proposta deixa explicitada a tentativa de aproximação do sistema socioeducativo às práticas já existentes no sistema penal brasileiro, de reforçar os estigmas e a seletividade que há tempos resta demonstrada nos relatórios oficiais, ou seja, criminalizando ainda mais a adolescência negra, periférica, de baixa renda, na perspectiva de “Quanto vale? Ou é por quilo?”, metaforicamente, fazendo alusão ao filme de Sérgio Bianchi, de 2005.
Jus aqui mencionar que o CONANDA, em 27 de junho de 2023, emitiu uma Nota Técnica4, manifestando-se contrário ao Projeto “Novo Socioeducativo”, salientando que, em caso de aprovação deste, deve-se prever formas de redução de danos em relação às possíveis perdas nos direitos dos adolescentes, enumerando as seguintes recomendações: a) A garantia e proteção dos direitos de adolescentes e jovens inseridos no sistema socioeducativo brasileiro em conformidade com a Lei do SINASE; b) A redução do tempo previsto de 30 para 5 anos da proposta, no que se refere à operacionalização e funcionamento das unidades socioeducativas, após a construção das unidades, bem como que não sejam propostas novas experiências antes da finalização da avaliação das presentes, caso sejam implementavas; c) Recomenda-se a revogação do Decreto 10.005/19, de forma a se fazer cessar as possibilidades de novas experiências neste sentido; d) Recomenda-se a produção de um plano educacional que seja implementado apenas pelo poder público nas unidades geridas pelo setor privado para manutenção do caráter pedagogicamente da medida conforme estabelecido pelo ECA, no SINASE, e na Resolução CNE/CEB nº 3, de 13 de maio de 2016, do MEC; e) A garantia da manutenção dos agentes socioeducativos e das equipes técnicas como corpo prioritário dentro das unidades socioeducativas sem transformá-los em agentes de segurança.
Cabe neste momento, uma franca reflexão acerca deste movimento contrário às garantias de direitos de adolescentes inseridos ou não no sistema socioeducativo, uma vez que, aqueles que já se encontram ingressos no sistema, sofrerão com as consequências desta politica orçamentária neoliberal que assombra a politica socioeducativa e, aqueles que porventura não adentraram o sistema, caso venha a ser apreendido, já serão acometidos por uma série de violações e desrespeito aos seus direitos antes mesmo da elaboração do seu PIA (Plano individual de Atendimento).
Não se trata somente de uma parceria ou uma cogestão, se trata de uma expressa incompatibilidade com os parâmetros e diretrizes pedagógicas previstas pelo SINASE (2006), de descumprimento dos dispostos no ECA e na Lei do SINASE, e principalmente, uma negação ao previsto no artigo 227 da CF, que declara ser dever do Estado, da Sociedade e da Família, a proteção integral aos direitos de crianças e adolescentes.
Permitir o avanço desta proposta, é romper com todos os avanços alcançados até aqui, é aceitar que a vida de um adolescente é medida pelo lucro que o setor privado vai obter, e, deste modo, negar a doutrina da Proteção Integral.
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1 HC 143988/ES. Supremo Tribunal Federal. Julgado em 24.08.2020.
2 BRASIL. MDHC. Levantamentos Nacionais do SINASE.
3 MPCT. Nota Técnica nº 10, 2022, Sistema de Cogestão de unidades de internação e APAC juvenil no Sistema Socioeducativo do estado de Minas Gerais.
4 Nota Técnica nº 21/2023/CONANDA/GAB.SNDCA/SNDCA/MDHC.