Migalhas Infância e Juventude

Combate ao abuso sexual Infantil em meio virtual: Dever social no Brasil e legalidade da cooperação internacional na transferência de dados às autoridades

Vê-se inquestionável a necessidade em utilizar as ferramentas tecnológicas disponíveis para prevenir e denunciar os abusos sexuais infantojuvenis sofridos em ambiente virtual, a fim de tornar o meio virtual um ambiente seguro paras as crianças e adolescentes do nosso país.

22/8/2023

O abuso sexual contra crianças em ambiente digital transcende fronteiras. Na medida em que a tecnologia avança, as modalidades para o cometimento dos crimes em meio virtual fortalecem a possibilidade do anonimato dos autores, necessitando de uma grande rede de proteção para combater e prevenir os atos criminosos em face desse grupo tão vulnerável que, no Brasil, representa um terço da população.

O Estatuto da Criança e do Adolescente, lei 8.069/90, prevê os crimes de abuso sexual infantil em meio virtual entre os artigos 240 e 241-E, quando especifica as condutas de produção, comercialização, transferência e armazenamento do conteúdo ilícito por qualquer meio de comunicação.

Importante destacar que a terminologia “Pornografia Infantil”, conforme as Diretrizes de Luxemburgo (2016), deve ser substituída por “Abuso Sexual”, a fim de que sejam abarcadas as condutas criminosas de produzir, possuir e/ou compartilhar os materiais ilícitos em desfavor de crianças e colocando-as devidamente como vítimas, haja vista a impossibilidade de consentimento em situação de abuso.

Não custa lembrar que o art. 227 da Constituição Federal do Brasil de 1988 prevê que

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão

Exige-se, portanto, uma cooperação efetiva não só entre os Estados, mas entre a sociedade como um todo, bem como aos membros das famílias, a fim de que sejam garantidos os direitos fundamentais às crianças e aos adolescentes, com a absoluta prioridade que preconiza a nossa Carta Magna.

Assim, em que pesem os riscos oferecidos pelas ferramentas tecnológicas que podem inserir as crianças em situação de risco e vulnerabilidade, necessário se faz o uso dessas mesmas ferramentas para combater o abuso sexual contra elas no ambiente virtual.

Nesse sentido, importante frisar o papel crucial das plataformas digitais para a cooperação internacional na transferência de dados às autoridades locais, a fim de apurar os fatos a partir de conteúdos suspeitos, bem como para identificar a autoria que se busca esconder através do anonimato na internet, a fim de cessar a conduta criminosa e punir os agentes.

O NCMEC - National Center for Missing & Exploited Children, por exemplo, é uma organização não governamental e sem fins lucrativos que recebeu apoio do Governo norte-americano para estabelecer mecanismo centralizado de recebimento indicativos de materiais de abuso sexual infantil.

No Brasil, a ONG SaferNet oferece um canal de denúncias para crimes identificados em meio virtual. Neste ano de 2023, as denúncias relacionadas às imagens de abuso e exploração sexual infantil online compartilhadas pela plataforma com as autoridades aumentaram 70% no primeiro quadrimestre.

A empresa Google, uma das principais big techs, consegue filtrar em suas plataformas como Gmail, Photos e Drive, e identificar material com suspeita de conteúdo ilícito. A partir dessa ferramenta, é feita a procurar de hashes, identificador numérico, a fim de verificar se as imagens já fazem parte de algum acervo que visa o combate ao abuso sexual infantil ou, através do uso de machine learning, se trata de produção nova.

A partir dessas informações, as empresas passam a compartilhar os dados dos usuários suspeitos às autoridades competentes, para que sejam identificados os agentes criminosos e apurada a conduta ilícita para promover a proteção às vítimas.

Conforme abordado acima, o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê os crimes de abuso sexual infantil em meio virtual entre os artigos 240 e 241-E, quando especifica as condutas de produção, comercialização, transferência e armazenamento do conteúdo ilícito por qualquer meio de comunicação.

No que tange à tipificação das condutas previstas nos artigos 241-A e 241-B do Estatuo da Criança e do Adolescente, recente informativo do Superior Tribunal de Justiça (n. 782) aponta a autonomia das condutas e inaplicabilidade do princípio da consunção, o que indica, portanto, a possibilidade de reconhecimento de concurso material dos crimes, fortalecendo os mecanismos de combate a ações conflitantes com a lei que resultam nas vulnerabilidades ora tratadas ao público infantoadolescente.

Assim, é de suma importância o compartilhamento das informações detalhadas trazidas pelas instituições que recebem as denúncias pelas plataformas digitais, a fim de enriquecer o arcabouço probatório para configurar as condutas criminosas praticadas.

Com efeito, é sabido que o Brasil é signatário da Convenção Internacional sobres os Direitos da Criança, conforme o Decreto n° 99.710/90. O art. 34 da referida Convenção prevê que os Estados Partes se comprometem a proteger a criança contra todas as formas de exploração e abuso sexual, e tomarão, em especial, todas as medidas de caráter nacional, bilateral e multilateral que sejam necessárias para impedir a exploração sexual infantil.

Dessa forma, imperiosa se faz a observância quanto à legalidade do compartilhamento de informações entre as empresas e instituições internacionais que se dispõe a reportar os materiais ilícios e os dados dos usuários que praticam as condutas ilegais para fins de apuração pelas autoridades do Brasil.

Ademais, como mencionado acima, o art. 227 da Constituição Federal prevê o dever não só estatal, mas social, com prioridade absoluta, em proteger as crianças e adolescentes de toda forma de abuso, principalmente considerando a hipervulnerabilidade desse grupo social.

Por fim, vê-se inquestionável a necessidade em utilizar as ferramentas tecnológicas disponíveis para prevenir e denunciar os abusos sexuais infantojuvenis sofridos em ambiente virtual, a fim de tornar o meio virtual um ambiente seguro paras as crianças e adolescentes do nosso país.

Referências

BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível aqui. Acesso em: 13/08/2023.

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Disponível aqui. Acesso em: 13/08/2023.

BRASIL. Decreto n. 99.710, de 21 de novembro de 1990. Promulga a Convenção sobre os Direitos da Criança. Disponível aqui. Acesso em: 20/08/2023.

HENRIQUES, Isabella. Direitos Fundamentais da Criança no Ambiente Digital: o dever de garantia da absoluta prioridade. São Paulo, Thomson Reuters Brasil – Revista dos Tribunais, Ano 2023.

FEAC. ‘’Combater abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes é uma luta de todos’’. Disponível aqui. Acesso em: 13/08/2023.

SAFERNET. ‘’Denúncias de imagens de exploração sexual infantil online compartilhadas pela SaferNet com as autoridades tem aumento de 70% em 2023’’. Disponível aqui. Acesso em: 20/08/2023.

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Colunistas

Angélica Ramos de Frias Sigollo é promotora de Justiça em São Paulo. Mestre em Direito pela USP. Pós-graduada pela FGV Direito SP. Integrante do Proinfancia - Fórum Nacional dos membros do Ministério Público da Infância e Adolescência. Professora de Infância e Juventude no CERS - Centro Educacional Renato Saraiva. Professora colaboradora no Law in Action.

Elisa Cruz defensora pública no Rio de Janeiro. Doutora em Direito Civil pela UERJ. Professora na FGV Direito Rio.

Hugo Gomes Zaher é juiz de Direito na Paraíba. Mestre em Direito. 1° vice-presidente da Associação Brasileira de Magistrados da Infância e da Juventude (ABRAMINJ).

Marília Golfieri Angella é advogada atuante em Direito de Família e Social, com ênfase em Infância e Juventude. Professora Colaboradora do FGV Law. Mestranda em Processo Civil pela Faculdade de Direito da USP. Pós-graduada em Direito das Famílias e Sucessões na Universidade Cândido Mendes/IBDFAM. Membro da Comissão de Infância e Juventude no IBDFAM e na OAB/SP.