O abuso sexual contra crianças em ambiente digital transcende fronteiras. Na medida em que a tecnologia avança, as modalidades para o cometimento dos crimes em meio virtual fortalecem a possibilidade do anonimato dos autores, necessitando de uma grande rede de proteção para combater e prevenir os atos criminosos em face desse grupo tão vulnerável que, no Brasil, representa um terço da população.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, lei 8.069/90, prevê os crimes de abuso sexual infantil em meio virtual entre os artigos 240 e 241-E, quando especifica as condutas de produção, comercialização, transferência e armazenamento do conteúdo ilícito por qualquer meio de comunicação.
Importante destacar que a terminologia “Pornografia Infantil”, conforme as Diretrizes de Luxemburgo (2016), deve ser substituída por “Abuso Sexual”, a fim de que sejam abarcadas as condutas criminosas de produzir, possuir e/ou compartilhar os materiais ilícitos em desfavor de crianças e colocando-as devidamente como vítimas, haja vista a impossibilidade de consentimento em situação de abuso.
Não custa lembrar que o art. 227 da Constituição Federal do Brasil de 1988 prevê que
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Exige-se, portanto, uma cooperação efetiva não só entre os Estados, mas entre a sociedade como um todo, bem como aos membros das famílias, a fim de que sejam garantidos os direitos fundamentais às crianças e aos adolescentes, com a absoluta prioridade que preconiza a nossa Carta Magna.
Assim, em que pesem os riscos oferecidos pelas ferramentas tecnológicas que podem inserir as crianças em situação de risco e vulnerabilidade, necessário se faz o uso dessas mesmas ferramentas para combater o abuso sexual contra elas no ambiente virtual.
Nesse sentido, importante frisar o papel crucial das plataformas digitais para a cooperação internacional na transferência de dados às autoridades locais, a fim de apurar os fatos a partir de conteúdos suspeitos, bem como para identificar a autoria que se busca esconder através do anonimato na internet, a fim de cessar a conduta criminosa e punir os agentes.
O NCMEC - National Center for Missing & Exploited Children, por exemplo, é uma organização não governamental e sem fins lucrativos que recebeu apoio do Governo norte-americano para estabelecer mecanismo centralizado de recebimento indicativos de materiais de abuso sexual infantil.
No Brasil, a ONG SaferNet oferece um canal de denúncias para crimes identificados em meio virtual. Neste ano de 2023, as denúncias relacionadas às imagens de abuso e exploração sexual infantil online compartilhadas pela plataforma com as autoridades aumentaram 70% no primeiro quadrimestre.
A empresa Google, uma das principais big techs, consegue filtrar em suas plataformas como Gmail, Photos e Drive, e identificar material com suspeita de conteúdo ilícito. A partir dessa ferramenta, é feita a procurar de hashes, identificador numérico, a fim de verificar se as imagens já fazem parte de algum acervo que visa o combate ao abuso sexual infantil ou, através do uso de machine learning, se trata de produção nova.
A partir dessas informações, as empresas passam a compartilhar os dados dos usuários suspeitos às autoridades competentes, para que sejam identificados os agentes criminosos e apurada a conduta ilícita para promover a proteção às vítimas.
Conforme abordado acima, o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê os crimes de abuso sexual infantil em meio virtual entre os artigos 240 e 241-E, quando especifica as condutas de produção, comercialização, transferência e armazenamento do conteúdo ilícito por qualquer meio de comunicação.
No que tange à tipificação das condutas previstas nos artigos 241-A e 241-B do Estatuo da Criança e do Adolescente, recente informativo do Superior Tribunal de Justiça (n. 782) aponta a autonomia das condutas e inaplicabilidade do princípio da consunção, o que indica, portanto, a possibilidade de reconhecimento de concurso material dos crimes, fortalecendo os mecanismos de combate a ações conflitantes com a lei que resultam nas vulnerabilidades ora tratadas ao público infantoadolescente.
Assim, é de suma importância o compartilhamento das informações detalhadas trazidas pelas instituições que recebem as denúncias pelas plataformas digitais, a fim de enriquecer o arcabouço probatório para configurar as condutas criminosas praticadas.
Com efeito, é sabido que o Brasil é signatário da Convenção Internacional sobres os Direitos da Criança, conforme o Decreto n° 99.710/90. O art. 34 da referida Convenção prevê que os Estados Partes se comprometem a proteger a criança contra todas as formas de exploração e abuso sexual, e tomarão, em especial, todas as medidas de caráter nacional, bilateral e multilateral que sejam necessárias para impedir a exploração sexual infantil.
Dessa forma, imperiosa se faz a observância quanto à legalidade do compartilhamento de informações entre as empresas e instituições internacionais que se dispõe a reportar os materiais ilícios e os dados dos usuários que praticam as condutas ilegais para fins de apuração pelas autoridades do Brasil.
Ademais, como mencionado acima, o art. 227 da Constituição Federal prevê o dever não só estatal, mas social, com prioridade absoluta, em proteger as crianças e adolescentes de toda forma de abuso, principalmente considerando a hipervulnerabilidade desse grupo social.
Por fim, vê-se inquestionável a necessidade em utilizar as ferramentas tecnológicas disponíveis para prevenir e denunciar os abusos sexuais infantojuvenis sofridos em ambiente virtual, a fim de tornar o meio virtual um ambiente seguro paras as crianças e adolescentes do nosso país.
Referências
BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível aqui. Acesso em: 13/08/2023.
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Disponível aqui. Acesso em: 13/08/2023.
BRASIL. Decreto n. 99.710, de 21 de novembro de 1990. Promulga a Convenção sobre os Direitos da Criança. Disponível aqui. Acesso em: 20/08/2023.
HENRIQUES, Isabella. Direitos Fundamentais da Criança no Ambiente Digital: o dever de garantia da absoluta prioridade. São Paulo, Thomson Reuters Brasil – Revista dos Tribunais, Ano 2023.
FEAC. ‘’Combater abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes é uma luta de todos’’. Disponível aqui. Acesso em: 13/08/2023.
SAFERNET. ‘’Denúncias de imagens de exploração sexual infantil online compartilhadas pela SaferNet com as autoridades tem aumento de 70% em 2023’’. Disponível aqui. Acesso em: 20/08/2023.