No dia 15 de junho de 2023 o site do Superior Tribunal de Justiça divulgou julgado no qual a Corte entendeu pela possibilidade do filho atuar como testemunha no processo de divórcio de seus pais1, cujo número não foi divulgado em razão do sigilo processual. Do que se lê da notícia, o STJ interpretou o artigo 447, § 2º, inciso I, do Código de Processo Civil, cujo texto diz: “Art. 447. Podem depor como testemunhas todas as pessoas, exceto as incapazes, impedidas ou suspeitas. (...) § 2º São impedidos: I - (...) o ascendente (...) salvo se o exigir o interesse público ou, tratando-se de causa relativa ao estado da pessoa, não se puder obter de outro modo a prova que o juiz repute necessária ao julgamento do mérito”. Pela literalidade da lei, como se vê, os filhos (ascendentes em primeiro grau) são impedidos de depor como testemunha. O STJ, contudo, entendeu que tal regra de impedimento só é válida quando o filho presta depoimento como testemunha em processo no qual o seu pai e/ou a sua mãe litiga contra uma terceira pessoa, não incidindo, porém, nos casos em que a demanda é proposta pelo pai em desfavor da mãe, ou vice-versa. Para o STJ, nas hipóteses em que a pessoa que presta depoimento possui idêntico vínculo com ambas as partes não há presunção de parcialidade e a regra não tem razão para se aplicar.
A notícia divulgada no portal eletrônico do Superior Tribunal de Justiça não esclarece se o filho ouvido como testemunha é maior ou menor de idade. De todo modo, a idade não parece ter sido o objeto da divergência levada à apreciação pelo Tribunal Superior, e sim o alcance da regra objetiva que impede o ascendente de atuar como testemunha. Sem embargo, com a resposta positiva do STJ, que confirmou que o filho pode sim atuar como testemunha no processo de divórcio dos pais, uma nova questão se abre no horizonte: o filho menor de 18 (dezoito) anos de idade pode atuar como testemunha no processo de divórcio dos pais?
O mesmo artigo 447 do Código de Processo Civil prescreve, no § 1º, inciso III, que "§ 1º São incapazes: (...) III - o que tiver menos de 16 (dezesseis) anos". Trata-se de reprodução do artigo 405, § 1º, inciso III, do Código de Processo Civil de 1973.
De acordo com o texto literal do CPC, portanto, as crianças (pessoas até doze anos de idade incompletos) e os adolescentes que tenham entre doze e dezesseis anos incompletos não poderão ser ouvidos como testemunhas. São incapazes de testemunhar. A ratio da regra está indisfarçavelmente conectada ao artigo 3º, caput, do Código Civil (antigo art. 3º, inciso I, na redação anterior à lei 13.146/2015), que dispõe: "São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos". A propósito, a mesma previsão estava contida no artigo 5º, inciso I, do Código Civil de 1916. Logo, toda pessoa com menos de dezesseis anos de idade é considerada pela legislação civil brasileira, material e processual, como incapaz. Incapaz de exercer pessoalmente os atos da vida civil. Incapaz de testemunhar.
Assim sendo, levando em conta apenas e tão somente a literalidade da lei em cotejo com a recente decisão do STJ, concluiríamos que o filho pode atuar como testemunha no processo de divórcio de seus pais, mas, desde que tenha mais de 16 (dezesseis) anos de idade.
Entretanto, desprendendo-se da letra “fria” da lei, a conclusão deixa uma inquietante lacuna e uma dúvida que carece de adequada solução: o filho menor de 16 (dezesseis) anos não poderá prestar depoimento como testemunha no processo de divórcio dos pais?
A nosso ver, ainda que não venha a ser admitida formalmente como testemunha, a criança e/ou o adolescente que tiver menos de 16 (dezesseis) anos de idade poderá ser ouvida no processo de divórcio de seus pais, mesmo que a título de "informantes".
Em primeiro lugar porque ser ouvido e manifestar os seus pontos de vista e as suas opiniões é um direito que é reconhecido a toda criança e a todo adolescente pelo artigo 12 da Convenção das Nações Unidas Sobre os Direitos da Criança, que diz ser assegurado “à criança que estiver capacitada a formular seus próprios juízos o direito de expressar suas opiniões livremente sobre todos os assuntos relacionados com a criança, levando-se devidamente em consideração essas opiniões, em função da idade e maturidade da criança” e que, por consequência, deve ser proporcionado à criança “a oportunidade de ser ouvida em todo processo judicial ou administrativo que afete a mesma” (BRASIL, 1990).
A doutrina especializada aponta que o artigo 12 da Convenção da ONU agasalha o direito à participação, conceito que projeta a criança como sujeito pleno de direitos, "capaz de formar e expressar opiniões, participar de processos decisórios e influenciar soluções"2 (PAIS, 2000, p. 93). Ou seja, a criança e o adolescente têm o direito de participar de todos os processos judiciais que sejam de seu interesse ou que tenham o condão de afetar as suas vidas, como é o caso da ação de divórcio, na qual pode ser decidido, por exemplo, a qual dos genitores será concedida a guarda da criança ou do adolescente.
Porém, lamentavelmente, "muitos são os processos judiciais nas Varas de Família e nas Varas da Infância e da Juventude que trazem a criança e o adolescente não como sujeitos a serem ouvidos, mas sim como objetos de disputa acirrada entre os familiares" (BRETZ, 2023, p. 89). É preciso mudar esse cenário, de exclusão, em que os rumos da vida dos filhos são tomados à sua revelia, como se fossem meros objetos de intervenção, e não sujeitos de direitos cuja vida pode ser sensivelmente impactada pela decisão tomada pelos adultos.
Noutras palavras, é preciso dar voz às crianças, ouvindo-as. E mais: é insuficiente apenas tomar os seus depoimentos, pois "não basta apenas dar às crianças o direito de serem ouvidas. Também é importante levar a sério o que eles têm a dizer"3 (LANSDOWN, 2005, p. 03), sem que isso signifique que o juiz deva acatar, necessariamente, o desejo da criança. Não. Mas, deve levá-lo em conta no momento de decidir, devendo fundamentar as razões por que entende ser mais prudente e benéfico à criança decisão contrária à sua manifestação.
Em segundo lugar porque a oitiva da criança ou do adolescente, de modo irrestrito, em laudos e estudos psicossociais, por meio do setor técnico do juízo (assistentes sociais e psicólogos judiciários), pode não ser a solução mais consentânea com o direito à participação em todo e qualquer caso. Nesse sentido, aliás, a lei 13.431/2017 deixou claro que deve se assegurar à criança e ao adolescente também o protagonismo para decidir sobre a forma de sua participação. A criança e o adolescente têm o direito de prestar depoimento, seja através de métodos adaptados de inquirição (depoimento especial), seja diretamente ao magistrado.
Inclusive, é preciso deixar claro que a criança e o adolescente têm o direito de depor, mas não o dever. A participação é um direito a eles assegurado e não uma obrigação imposta. Foi o que reconheceu a Diretriz 46 do Comitê de Ministros do Conselho da Europa sobre a justiça adaptada às crianças: "O direito a ser ouvido é um direito, e não um dever, da criança".
Como consequência, algumas regras formais devem ser flexibilizadas e não há que se falar em condução coercitiva da criança ou adolescente arrolada como testemunha e que não comparece para depor (CARVALHO, 2021) e tampouco deve ser tomado o compromisso da criança ou adolescente de dizer a verdade sob juramento (nesse sentido, aliás, o artigo 22 da Lei Modelo para a Justiça em Matérias que envolvam Crianças Vítimas e Testemunhas de Crimes prevê que "crianças testemunhas recebam total imunidade de processo criminal por prestar falso testemunho"4 (UNODC/UNICEF, 2009, p. 51).
Em terceiro lugar porque depor em juízo, seja como testemunha ou um informante, confere agência às crianças e adolescentes e podem trazer-lhes benefícios. De fato, dentre as vantagens da participação, MILLER (2009) indica que as crianças aprendem a expressar os seus próprios interesses, desenvolvem habilidades de cooperação, negociação e resolução de problemas e assimilam que contribuíram para a decisão, o que aumenta seu compromisso em efetivá-las. Além disso, "as percepções obtidas das crianças ajudam os adultos a trabalhar com mais eficiência e garantem que os serviços prestados sejam relevantes para as necessidades das crianças"5 (MILLER, 2009, p. 05).
À vista do que foi dito, respondendo à pergunta lançada acima, é forçoso concluir que, nada obstante a literalidade do texto do Código Civil e do Código de Processo Civil (cujo teor se assentam em bases adultocêntricas que se baseiam no critério exclusivo da idade, desconsiderando as competências infantojuvenis e que, por isso, merecem urgente revisão, assunto que ultrapassa os limites desse artigo), o filho menor de 16 (dezesseis) anos poderá sim prestar depoimento como testemunha no processo de divórcio dos pais, notadamente quanto às questões existenciais envolvidas na lide e que estejam diretamente envolvidas, como a guarda e o regime de visitação, excluídas, portanto, questões meramente patrimoniais como a disputa por bens.
Nesse sentido, diz o Enunciado nº 138 da III Jornada de Direito Civil do CJF: "A vontade dos absolutamente incapazes, na hipótese do inc. I do art. 3º é juridicamente relevante na concretização de situações existenciais a eles concernentes, desde que demonstrem discernimento bastante para tanto".
Assentado o direito das crianças e dos adolescentes de participarem dos processos de divórcio de seus, sendo ouvidas como testemunhas, é preciso salientar, por derradeiro, que nem sempre será recomendável a oitiva em todo e qualquer hipótese. Pelo contrário, é recomendável que, previamente à escuta, seja feita avaliação preliminar, pelo setor técnico, a fim de averiguar o impacto da entrevista para a criança e o adolescente. Afinal, não se olvida que “os acirrados embates entre os genitores, em disputas judiciais, acabam por tornar a vida das crianças e dos adolescentes um campo de batalha minado, em que não raro há conflitos de lealdade dos filhos em relação aos genitores” (BRETZ, 2023, p. 90), razão pela qual é preciso perquirir (e a avaliação preliminar é ideal para tanto) até que ponto depor em juízo pode colocar a criança ou o adolescente num conflito de lealdade que, ao fim e ao cabo, viola o seu interesse de manter uma boa e harmoniosa convivência com ambos os pais.
Justamente por isso, é preciso que a criança e o adolescente sejam informados das possíveis consequências de seu depoimento e que se colha o seu consentimento informado para participação voluntária. Em outras palavras, é preciso que, previamente ao depoimento, crianças e adolescentes sejam consultados acerca de sua participação como testemunhas, momento no qual devem ser repassadas informações importantes acerca de tal participação. E é preciso se pensar, inclusive, o modo como deve ser feita tal consulta. Nas palavras de MELO (2021, p. 29), "para garantir o livre exercício do direito de ser ouvido, é importante não apenas proporcionar um contexto institucional onde ele se sinta confortável e seguro para entender o significado e o impacto da participação, mas também que essa consulta possa ser significativa e compreensivo"6. Não se admite, pois, que as partes (no caso, o ex-casal que litiga em juízo, genitores das crianças e adolescentes) arrolem a prole como testemunhas e o magistrado simplesmente defira o pedido e designe audiência. Não. É imprescindível cautela: as crianças e os adolescentes devem ser consultados e se recomenda a avaliação preliminar.
Em suma, “antes de decidir se os filhos devem testemunhar em questões familiares, deve-se levar em consideração a sua posição vulnerável na família e o efeito que tal testemunho pode ter nos relacionamentos presentes e futuros. As crianças devem ser informadas das consequências de testemunhar ou não” (IAYFJM, 2017, p. 81).
Por fim e finalmente, caso se decida pela oitiva da criança e/ou do adolescente como testemunhas em ações de divórcio, é fundamental que se pense como ocorrerá, na prática, essa escuta. De fato, o depoimento deve ser prestado em ambiente e em formato que mais favoreça o exercício das competências da criança ou do adolescente, portanto, em ambiente adaptado e amigável (child-friendly), sendo recomendável que seja tomado em sala especial, com a intermediação de entrevistador forense e seguindo-se protocolos específicos7.
O divórcio dos pais é uma matéria que perpassa por uma série de questões que afetam diretamente os filhos e, por isso, nos termos do artigo 12 da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança (1989), mesmo sendo crianças e adolescentes têm o direito de serem ouvidos como testemunhas, observadas as cautelas necessárias. É chegada a hora de trazer as crianças como participantes dos processos, como sujeitos de direitos, que têm voz e não como meros objetos a quem se imporão os efeitos práticos das decisões judiciais.
Referências bibliográficas
BRASIL. Decreto 99.710, de 21 de novembro de 1990. Promulga a Convenção sobre os Direitos da Criança. Brasília, DF: Presidência da República, 1990. Disponível aqui. Acesso em: 24 jun. 2023.
BRETZ, Talita. Os conflitos familiares na justiça: desafios da atuação integrada e protetiva da infância. Revista IBDFAM: Famílias e Sucessões, v. 56, Belo Horizonte, MG, IBDFAM, mar./abr. 2023, p. 86-122.
CARVALHO, Sandro Carvalho Lobato de. A impossibilidade da condução coercitiva de criança e adolescente, vítima ou testemunha de violência, no Processo Penal brasileiro. Revista do CNMP, n. 9, Brasília, DF, CNMP, 2021. Disponível aqui. Acesso em: 21 jun. 2023.
IAYFJM. International Association of Youth and Family Judges and Magistrates. Diretrizes: crianças em contacto com o Sistema de Justiça. IAYFJM, 2017. Disponível aqui. Acesso em: 20 jun. 2023.
LANSDOWN, Gerison. Can You Hear Me? The right of young children to participate in decisions affecting them. Working Papers in Early Childhood Development, No. 36. Bernard van Leer Foundation, The Hague, The Netherlands, 2005. Disponível aqui. Acesso em: 23 jun. 2023.
MILLER, Judy. Never too young. How young children can take responsibility and make decisions. London, Save the Children, 2003.
MELO, Eduardo Rezende. Child participation in family and protection matters: an AIMJF’s collaborative research. AIMJF 's Chronicle, vol. 1, No. 1, 2021b. Disponível aqui. Acesso em: 23 jun. 2023.
PAIS, Marta Santos. Child Participation. Documentação e Direito Comparado, nos 81/82. Lisboa, Portugal, 2000, p. 92-101. Disponível aqui. Acesso em: 20 jun. 2023.
UNODC. United Nations Office on Drugs and Crime; UNICEF. United Nations Children’s Fund. Justice in Matters involving Child Victims and Witnesses of Crime. Model Law and Related Commentary. United Nations: New York, 2009. Disponível aqui. Acesso em: 24 jun. 2023.
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1 Disponível aqui. Acesso em: 19 jun. 2023.
2 Tradução livre. No original: "the child is envisaged as a subject of rights, who is able to form and express opinions, to participate in decision-making processes and influence solutions".
3 Tradução livre. No original: "It is not sufficient just to give children the right to be listened to. It is also important to take what they have to say seriously".
4 Tradução livre. No original: "child witnesses be given complete immunity from criminal prosecution for giving false testimony".
5 Tradução livre. No original: "Insights gained from children help adults to work more effectively and ensure that services provided are relevant to children’s needs".
6 Tradução livre. No original: "To grant a free exercise of the right to be heard, it is important not only to provide an institutional context where he or she will feel comfortable and secure to understand the meaning and impact of the participation, but also that this consultation could be meaningful and comprehensive".
7 A Portaria nº 359, de 11 de outubro de 2022, do CNJ, instituiu Grupo de Trabalho para debater e propor protocolo para a escuta especializada e depoimento especial de crianças e adolescentes em ações de família.