No próximo dia 18 de maio, completará 50 anos do caso Araceli, que foi assassinada aos oito anos de idade, em Vitória, Espírito Santo. À época dos fatos, como é de conhecimento de toda sociedade, seu corpo foi encontrado seis dias após sua morte brutal, com sinais de violência, abuso sexual e desfigurado por uso de ácido. Os acusados, após reexame do processo, foram absolvidos pela Justiça. Nos anos 2000, a data tornou-se símbolo do Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes.
Mas por que recordar estes fatos em 2023? Simplesmente, porque em pleno ano de 2023 temos que mostrar o óbvio a toda sociedade a fim de evitar que mais casos brutais como o de Araceli continue acontecendo bem debaixo de nossos olhos.
Proteger crianças e adolescentes de qualquer forma de violência não é uma opção do governante, seja ele de qual partido for, é uma imposição da Constituição, que através do artigo 227, estabeleceu ser dever do Estado, Sociedade e Família tal obrigação.
É válido nos recordar que antes mesmo da Constituição Federal e do Estatuto da Criança e do Adolescente ser sancionado e ter entrado em vigor no país, a Declaração Universal dos Direitos da Criança de 1959, no princípio 9, trazia em seu texto que "A criança gozará proteção contra quaisquer formas de negligência, crueldade e exploração. Não será jamais objeto de tráfico, sob qualquer forma. Não será permitido à criança empregar-se antes da idade mínima conveniente; de nenhuma forma será levada a ou ser-lhe-á permitido empenhar-se em qualquer ocupação ou emprego que lhe prejudique a saúde ou a educação ou que interfira em seu desenvolvimento físico, mental ou moral", demonstrando o quão importante era proteger e prevenir quaisquer tipos de violências contra as crianças e os adolescentes.
Esse princípio, reiterado na Convenção dos Direitos da Criança, de 1989, cuja qual foi ratificada pelo Brasil em 24 de setembro de 1990, através de seu artigo 19, item 1, reforçou tal mandamento recomendando "Os Estados Partes devem adotar todas as medidas legislativas, administrativas, sociais e educacionais apropriadas para proteger a criança contra todas as formas de violência física ou mental, ofensas ou abusos, negligência ou tratamento displicente, maus-tratos ou exploração, inclusive abuso sexual, enquanto a criança estiver sob a custódia dos pais, do tutor legal ou de qualquer outra pessoa responsável por ela".
Entretanto, mesmo diante de legislações tidas progressistas e protecionistas, as violências, às quais crianças deveriam ser protegidas, seguem estampadas nas principais manchetes jornalísticas.
Não obstante, estas violências, traduzidas em números, nos mostram o quão falha é a rede de proteção existente.
Dados do último Anuário Brasileiro de Segurança Pública elucidam o aumento dos casos de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes no país. A cada hora, 4 meninas são vítimas de estupro no país. São 100 crianças violentadas por dia no país. E o perigo está dentro dos lares: 76,5% dos casos ocorrem no ambiente doméstico, sendo o abusador, conhecido da vítima.
A ineficiência das políticas públicas e o silêncio seguem perpetuados na sociedade, tal como há cinquenta anos atrás, quando Araceli foi vítima.
E por que o tema ainda segue sendo um tabu?
Justamente por ser tão difícil falar sobre educação sexual com crianças e adolescentes, muitas vezes, motivado por crenças familiares e interferência de líderes religiosos. E nós, adultos, responsáveis para que essas orientações e informações cheguem ao público alvo, no caso crianças e adolescentes, seguimos inertes, omissos, delegando tal tarefa à terceiros ou, no pior dos casos, às redes sociais.
Aí que mora o perigo.
Quem está de fato educando nossas crianças e adolescentes? Às vezes, e por que não afirmar, na maioria das vezes, pedófilos, que usam de meios ardilosos para atrair, corromper e violenta-los das mais diversas formas (como por exemplo, os casos de estupro virtual).
Estamos falhando. Não podemos negar.
As alterações legislativas que sucederam o Estatuto da Criança e do Adolescente, tal como a Lei Menino Bernardo1 e Lei Henry Borel2, vieram a criar novos mecanismos de punição aos indivíduos que praticam quaisquer tipos de violências contra crianças e adolescentes, porém, elas estão, de fato, responsabilizando quem de direito?
Diante de mais este questionamento, basta refletirmos sobre a Lei de Alienação Parental3, que por vezes, coloca as crianças e os adolescentes sob tutela dos abusadores. Neste sentido, é fato que enquanto o Sistema de Justiça também continuar violando os direitos das crianças, esse crime continuará entre nós.
Frente a tantas mazelas e desapontamentos, cumpre-nos por fim, aqui destacar as iniciativas que a sociedade civil, por intermédio de organizações não governamentais, que vem atuando de forma a promover a discussão sobre o tema, trazendo luz à problemática que segue vitimando crianças e adolescentes em todas as regiões do país, para que tenhamos, de fato, um Sistema de Garantia de Direitos de crianças e adolescentes que acolha, defenda e escute as infâncias.
Referências:
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em: 10 mai. 23. 23
_______. LEI 8.069 (1990). Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília, DF: Senado, 1990. Disponível aqui. Acesso em: 10 mai. 23
FORUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2022. Disponível aqui. Acesso em: 10 mai. 23.
ONU. Declaração dos Direitos das Crianças, 1959. Disponível aqui.
Acesso em 10 mai. 23.
____. Convenção dos Direitos da Criança e do Adolescente, 1989. Disponível aqui. Acesso em: 11 abr. 23.
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1 Lei 13.010 de 26 de junho de 2014 – Lei Menino Bernardo.
2 Lei 14.344 de 24 de maio de 2017 – Lei Henry Borel.
3 Lei 12.318 de 26 de agosto de 2010 – Lei de Alienação Parental.