Uma dúvida comum que surge, usualmente quando há a separação de genitores que possuem diferentes religiões, inclusive, é como agir em relação aos filhos. Na constância da união, um diálogo respeitoso se torna possível, fazendo com que a convivência da criança com diferentes religiões seja um processo equilibrado e natural, alternando-se a participação da criança com ambos os genitores para na vida religiosa, por exemplo.
Mas quando a separação acontece, a situação pode se inverter, ocasionando até mesmo crimes de intolerância religiosa. Importante lembrar que desde 1997 é crime qualquer atitude que resulte em discriminação ou preconceito em relação à religião, inclusive ações que induzam ou incitem tal ato. Assim, para além da empatia e conhecimento sobre a lei, é necessário respeito ao próximo e um cuidado de pais e responsáveis na condução da questão junto aos infantes.
Nesta coluna, abordaremos algumas considerações sobre religião e infância.
O ECA garante à criança e ao adolescente o direito à liberdade religiosa. Este direito é, inclusive, independente dos pais e/ou de seus responsáveis. O Art. 16, inserido no capítulo sobre liberdade, respeito e dignidade, garante à criança o direito à crença e ao culto religioso, tanto quanto garante o direito da criança de brincar, praticar esporte e se divertir, dada a relevância do tema na proteção e desenvolvimento integral infantojuvenil.
Contudo, um levantamento feito pelo movimento Agenda 227, indica que somente na internet os crimes de ódio ligados à intolerância religiosa aumentaram em 456% em 2022, segundo dados coletados da Central Nacional de Denúncias. O movimento também relembra os ataques contra as religiões de matriz africana ocorridos na época da publicação do livro infantil "AMORAS", do cantor e escritor Emicida, o qual trata do tema, fazendo com que a intolerância religiosa esteja presente no cotidiano de vários meninos e meninas, principalmente indígenas, quilombolas, de comunidades tradicionais e praticantes de religiões de matriz africana, como nos provam tristes reportagens encontradas nos noticiários sobre crianças serem alvo de ataques violentos por intolerância religiosa.
O livro “Nascer do Rio”, de Paola Odònílé, disponível online na íntegra, discute o direito à liberdade religiosa da criança e do adolescente em terreiros de candomblé. Em seus estudos, a autora aponta que a introdução de crianças no candomblé ocorre com ativa participação das famílias, quando “ensinamentos são transmitidos, a fé é estimulada, as regras são instituídas, os limites são postos, para que encontrem o discernimento de vivenciar ou não essa prática religiosa” (p. 105).
Da mesma forma ocorre com outras religiões, a família ocupa um importante papel na garantia do apoio religioso às crianças, garantindo-se sua introdução na comunidade religiosa de forma respeitosa e compatível com a idade, o que também encontra reflexo na responsabilidade legal que a família tem de zelar integralmente pela garantia de direitos de crianças e adolescentes, como preconiza o Art. 227 da Constituição Federal e o Art. 4º do ECA.
Em artigo publicado no site da CNBB, a psicóloga Aline Rodrigues indica a importância da prática religiosa para o desenvolvimento de comportamentos humanizados, tais como compaixão, solidariedade, respeito, amor e clareza do certo e do errado em diversas situações. A participação das crianças em comunidades religiosas é comumente retratada a partir da alegria e da diversão, com simbolismos comuns atrelados à infância, como ocorre nas festas de Cosme e Damião, normalmente realizadas pelo catolicismo e também pela umbanda, representando os Orixá Ibeji, filhos de Inhançã e Xangô, e outras celebrações voltadas à religiosidade infantojuvenil.
Igualmente, o aprendizado religioso se dá normalmente pela vivência e prática nas comunidades religiosas, com atividades lúdicas. Nesse sentido, o Ministério Infantil da Catedral Evangélica explica que a introdução da criança na crença religiosa deve garantir seu desenvolvimento com segurança adequada à cada idade, o que também tem previsão legal, vez que devem ser respeitada a “condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento” (ECA, Art. 6º).
No mesmo sentido, o Portal Lunetas traz uma fala da pedagoga Ana Paula Ramos, a qual informa que a umbanda é um ambiente de formação, construção de valores e compreensão de mundo para as crianças que dela participam, demonstrando que, independentemente da religião, a preocupação com a formação da criança recebe uma atenção especial, o que lhe garante os direitos fundamentais à vida, à saúde, física e psíquica, bem como à educação, ao lazer, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, tão presentes na vivência religiosa.
Esses breves apontamentos, assim, nos mostram que há uma coesão das religiões no tocante à participação e ao papel da criança na vida religiosa, devendo ela ser tratada como sujeito de direitos, merecedora de especial atenção por seu estágio de desenvolvimento ainda em formação. Ainda, pode a criança ocupar lugares de destaque dentro das celebrações, atuando de forma ativa junto à sua comunidade religiosa, quando há atenção e cuidado dos pais ou responsáveis em relação à sua maturidade, necessitando que estas ações estejam em consonância com os direitos previstos no ECA, em especial a atenção ao desenvolvimento pleno com respeito e liberdade.
Na lei, portanto, não há qualquer óbice à participação religiosa da criança junto à sua comunidade e nem tampouco proibição que faça com que a criança precise escolher apenas uma religião ou aquela que é professada por seus pais ou responsáveis, já que se trata de direito autônomo da criança previsto no ECA. A chave do êxito é o diálogo e respeito, ao outro, à criança e à sociedade.
Estamos avançando nas discussões sobre uma educação crítica, inclusive de ordem religiosa, que permita que as pessoas possam compreender e combater atos de discriminação de qualquer espécie, uma vez que vivemos em um país plural, democrático e livre. Com isso, promoveremos cada vez mais um ambiente livre de violências na infância, respeitando-se os direitos previstos no ECA, com uma atuação coordenada e coesa por parte do Estado, da sociedade e da família, como determina a lei.