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Mudando o olhar: Alienação familiar como disfuncionalidade na convivência familiar

A alienação parental é um tema presente nos debates jurídicos e que de tempos em tempos aparece em matérias jornalísticas ou outros produtos culturais, como filmes, séries, podcasts e afins. É impossível ignorar a sua existência e os apoios ou críticas que atrai.

21/3/2023

A alienação parental é um tema presente nos debates jurídicos e que de tempos em tempos aparece em matérias jornalísticas ou outros produtos culturais, como filmes, séries, podcasts e afins. É impossível ignorar a sua existência e os apoios ou críticas que atrai.

A atração pelo tema, a meu ver, tem relação com a empatia que um momento crítico na parentalidade é capaz de gerar, aliado a percepções bastante subjetivas sobre quem agiu certo, errado, que é forte ou frágil na relação entre pais e/ou mães, afinal, falar sobre família é falar sobre os nossos pertencimentos nas nossas próprias famílias e sobre o projetamos como desejo a ser realizado. É, assim, um produto cultural com forte capacidade de persuasão e adesão.

No Brasil, a alienação parental foi disciplinada pela lei 12.318/2010 (e leis que parcialmente a modificaram) e é entendida como "a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este".

Trata-se da positivação de um pensamento proposto por Richard Gardner e pela manipulação de Gardner dos resultados de sua pesquisa e possível apoio a práticas pedófilas, a lei tem sofrido um profundo rechaço e movimentos para sua revogação tem aumentado. Ao lado disso, denúncias de utilização machista da lei tem sido cada mais frequentes, angariando apoios públicos a favor de sua revogação.

Todas as críticas feministas contra a lei são terrivelmente verdadeiras e a pesquisa de Helena Campos Refosco e Martha Maria Guida Fernandes é um excelente caminho para provar isso a partir de pesquisa empírica em tribunais de justiça da região sudeste.

A pergunta que remanesce sem ser feita (ou é feita por muitas poucas pessoas) é: a alienação parental é sobre pais e/ou mães?

Essa é a pergunta que, a despeito da minha concordância com todos os vieses machistas sobre a lei de alienação parental, me afastam e me fazem recusar a revogação da lei.

Infelizmente ainda vivemos num mundo em que a pessoa adulta é o centro de referência da subjetividade e de direitos. Mesmo com a Declaração Universal de Direitos Humanos e a Convenção sobre Direitos da Criança, não tivemos, de fato, o reconhecimento de crianças e adolescentes enquanto pessoas e sujeitos de direito. A falta dessa passagem teórica faz com que o Direito tenha como referência os adultos, no caso, pais e/ou mães, quando a questão inerente à alienação parental é a disfuncionalidade do exercício da autoridade parental perante crianças e adolescentes. Ou seja, o elemento central da alienação não são adultos, mas a criança e adolescentes que são filhos ou filhas.

Mais, a alienação parental envolve o exercício disfuncional e abusivo da autoridade parental, porque a pretexto de proteger a criança ou adolescente, se suprime deles a possibilidade de entender, avaliar e construir as suas próprias memórias sobre episódios de violência (aqui, usada em sentido amplo) e de decidir quais os papeis relevantes seus pais e/ou mães exerceram na sua vida. Essa substituição, me parece, está circunscrita na incapacidade de entender que o melhor interesse não se trata do que pessoas adultas acham melhor, mas da permissão em que crianças e adolescentes tenham "o caminho livre" para avaliar suas vidas e decidir sobre si e seu futuro.

Uma segunda importante consideração sobre a alienação parental é feita por Helena Campos Refosco e Martha Maria Guida Fernandes, para quem não basta olhar e “corrigir” o comportamento do(a) alinador(a), devendo a alienação ser tratada como fenômeno familiar que deve exigir intervenção judicial e psicoterápica que envolva toda a família, pois apenas assim será possível construir um ambiente socialmente adequado para o desenvolvimento de crianças e adolescentes.

A junção da proposta de Helena e Martha e da reformulação do sentido do princípio do melhor interesse vai ao encontro do direito à convivência familiar, previsto no art. 19 do Estatuto da Criança e do Adolescente, definido por Ana Carolina Brochado Teixeira e Marcelo de Mello Vieira como "um direito de toda população  infantojuvenil,  independentemente de origem,  etnia  ou  classe  social (princípio da não discriminação), à formação e manutenção de vínculos, buscando assegurar que as crianças e os adolescentes façam parte de uma família, o que não se resume a ter os nomes dos genitores na certidão de nascimento. É fazer com que eles sintam que pertencem àquele núcleo familiar, integrando e participando ativamente das rotinas e dos rituais da família, sendo, também, respeitados em sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento e sua autonomia (princípios da participação e da autonomia progressiva). É, também, o direito de viver em um ambiente saudável, livre de situações ou de pessoas que possam obstaculizar o seu processo de amadurecimento, incluindo a preservação do contato com os familiares e outras pessoas, desde que tal relação seja benéfica à criança. Excepcionalmente, a inserção em família substituta poderá ocorrer quando tal medida for necessária para a garantia da integridade biopsíquica e para o desenvolvimento sadio da personalidade e da autonomia (princípios da proteção à vida e ao desenvolvimento e do melhor interesse)".

Compreender o sentido do direito fundamental à convivência familiar e sua conexão com a alienação parental permite perceber que a revogação da lei não tem o impacto imaginado por determinados movimentos. No TJRJ e no TJSP, por exemplo, existem precedentes anteriores a lei de 2010 que fundamentavam as decisões no art. 19 do ECA. E, trazendo direito comparado, nos EUA, que não conta nem com diploma similar ao ECA nem é signatário da Convenção sobre Direitos da Criança, a alienação parental é um tema objeto de análise judicial por interferir no direito da criança em ter os pais e/ou mães como atores participantes do seu desenvolvimento.

Assim, é perceptível que nesse momento a alienação parental tem como pano de fundo um debate sobre a proteção de direitos de mulheres e de direitos de crianças. Qualquer resposta em casos concretos deve pender, como regra, em favor da criança, pois ela é destinatária de proteção integral e prioridade no atendimento de seus interesses, que, são diferentes dos interesses e direitos de sua mãe. Talvez seja essa a mais difícil percepção no campo jurídico e falha no conhecimento sobre o conteúdo do melhor interesse e da proteção integral: o interesse dos pais e/ou mães não se confunde com os dos filhos(as). A alteração da ordem de prioridade exige justificação forte no caso concreto, item que tem sido apontado como insuficiente nas decisões judiciais.

Em suma, o movimento de revogação da lei de alienação parental é importante para pautar a aplicação machista da lei, mas revela-se insuficiente para resolver o fenômeno do machismo e patriarcalismo no sistema judicial, até porque, o direito à convivência familiar supre de forma autônoma o fundamento jurídico de uma LAP revogada. O enfrentamento do machismo e patriarcalismo no sistema judicial envolve muito mais do que a revogação de uma lei, sendo essencial que os discursos feministas sejam apropriados e articulados judicialmente. De outro lado, são bem conhecidos os efeitos negativos no desenvolvimento psicossocial da alienação parental sobre crianças e adolescentes, de modo que a desconsideração completa do fenômeno não irá contribuir na proteção desse grupo de pessoas. Por isso, no confronto entre direitos de crianças e direitos de mulheres, é imprescindível se despir de pré-conceitos e tentar olhar cada caso como único e buscar em relação a cada um deles a melhor resposta, tendo como diretriz a maximização dos direitos de todos e todas os(as) envolvidos(as).

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Colunistas

Angélica Ramos de Frias Sigollo é promotora de Justiça em São Paulo. Mestre em Direito pela USP. Pós-graduada pela FGV Direito SP. Integrante do Proinfancia - Fórum Nacional dos membros do Ministério Público da Infância e Adolescência. Professora de Infância e Juventude no CERS - Centro Educacional Renato Saraiva. Professora colaboradora no Law in Action.

Elisa Cruz defensora pública no Rio de Janeiro. Doutora em Direito Civil pela UERJ. Professora na FGV Direito Rio.

Hugo Gomes Zaher é juiz de Direito na Paraíba. Mestre em Direito. 1° vice-presidente da Associação Brasileira de Magistrados da Infância e da Juventude (ABRAMINJ).

Marília Golfieri Angella é advogada atuante em Direito de Família e Social, com ênfase em Infância e Juventude. Professora Colaboradora do FGV Law. Mestranda em Processo Civil pela Faculdade de Direito da USP. Pós-graduada em Direito das Famílias e Sucessões na Universidade Cândido Mendes/IBDFAM. Membro da Comissão de Infância e Juventude no IBDFAM e na OAB/SP.