A alienação parental é um tema presente nos debates jurídicos e que de tempos em tempos aparece em matérias jornalísticas ou outros produtos culturais, como filmes, séries, podcasts e afins. É impossível ignorar a sua existência e os apoios ou críticas que atrai.
A atração pelo tema, a meu ver, tem relação com a empatia que um momento crítico na parentalidade é capaz de gerar, aliado a percepções bastante subjetivas sobre quem agiu certo, errado, que é forte ou frágil na relação entre pais e/ou mães, afinal, falar sobre família é falar sobre os nossos pertencimentos nas nossas próprias famílias e sobre o projetamos como desejo a ser realizado. É, assim, um produto cultural com forte capacidade de persuasão e adesão.
No Brasil, a alienação parental foi disciplinada pela lei 12.318/2010 (e leis que parcialmente a modificaram) e é entendida como "a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este".
Trata-se da positivação de um pensamento proposto por Richard Gardner e pela manipulação de Gardner dos resultados de sua pesquisa e possível apoio a práticas pedófilas, a lei tem sofrido um profundo rechaço e movimentos para sua revogação tem aumentado. Ao lado disso, denúncias de utilização machista da lei tem sido cada mais frequentes, angariando apoios públicos a favor de sua revogação.
Todas as críticas feministas contra a lei são terrivelmente verdadeiras e a pesquisa de Helena Campos Refosco e Martha Maria Guida Fernandes é um excelente caminho para provar isso a partir de pesquisa empírica em tribunais de justiça da região sudeste.
A pergunta que remanesce sem ser feita (ou é feita por muitas poucas pessoas) é: a alienação parental é sobre pais e/ou mães?
Essa é a pergunta que, a despeito da minha concordância com todos os vieses machistas sobre a lei de alienação parental, me afastam e me fazem recusar a revogação da lei.
Infelizmente ainda vivemos num mundo em que a pessoa adulta é o centro de referência da subjetividade e de direitos. Mesmo com a Declaração Universal de Direitos Humanos e a Convenção sobre Direitos da Criança, não tivemos, de fato, o reconhecimento de crianças e adolescentes enquanto pessoas e sujeitos de direito. A falta dessa passagem teórica faz com que o Direito tenha como referência os adultos, no caso, pais e/ou mães, quando a questão inerente à alienação parental é a disfuncionalidade do exercício da autoridade parental perante crianças e adolescentes. Ou seja, o elemento central da alienação não são adultos, mas a criança e adolescentes que são filhos ou filhas.
Mais, a alienação parental envolve o exercício disfuncional e abusivo da autoridade parental, porque a pretexto de proteger a criança ou adolescente, se suprime deles a possibilidade de entender, avaliar e construir as suas próprias memórias sobre episódios de violência (aqui, usada em sentido amplo) e de decidir quais os papeis relevantes seus pais e/ou mães exerceram na sua vida. Essa substituição, me parece, está circunscrita na incapacidade de entender que o melhor interesse não se trata do que pessoas adultas acham melhor, mas da permissão em que crianças e adolescentes tenham "o caminho livre" para avaliar suas vidas e decidir sobre si e seu futuro.
Uma segunda importante consideração sobre a alienação parental é feita por Helena Campos Refosco e Martha Maria Guida Fernandes, para quem não basta olhar e “corrigir” o comportamento do(a) alinador(a), devendo a alienação ser tratada como fenômeno familiar que deve exigir intervenção judicial e psicoterápica que envolva toda a família, pois apenas assim será possível construir um ambiente socialmente adequado para o desenvolvimento de crianças e adolescentes.
A junção da proposta de Helena e Martha e da reformulação do sentido do princípio do melhor interesse vai ao encontro do direito à convivência familiar, previsto no art. 19 do Estatuto da Criança e do Adolescente, definido por Ana Carolina Brochado Teixeira e Marcelo de Mello Vieira como "um direito de toda população infantojuvenil, independentemente de origem, etnia ou classe social (princípio da não discriminação), à formação e manutenção de vínculos, buscando assegurar que as crianças e os adolescentes façam parte de uma família, o que não se resume a ter os nomes dos genitores na certidão de nascimento. É fazer com que eles sintam que pertencem àquele núcleo familiar, integrando e participando ativamente das rotinas e dos rituais da família, sendo, também, respeitados em sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento e sua autonomia (princípios da participação e da autonomia progressiva). É, também, o direito de viver em um ambiente saudável, livre de situações ou de pessoas que possam obstaculizar o seu processo de amadurecimento, incluindo a preservação do contato com os familiares e outras pessoas, desde que tal relação seja benéfica à criança. Excepcionalmente, a inserção em família substituta poderá ocorrer quando tal medida for necessária para a garantia da integridade biopsíquica e para o desenvolvimento sadio da personalidade e da autonomia (princípios da proteção à vida e ao desenvolvimento e do melhor interesse)".
Compreender o sentido do direito fundamental à convivência familiar e sua conexão com a alienação parental permite perceber que a revogação da lei não tem o impacto imaginado por determinados movimentos. No TJRJ e no TJSP, por exemplo, existem precedentes anteriores a lei de 2010 que fundamentavam as decisões no art. 19 do ECA. E, trazendo direito comparado, nos EUA, que não conta nem com diploma similar ao ECA nem é signatário da Convenção sobre Direitos da Criança, a alienação parental é um tema objeto de análise judicial por interferir no direito da criança em ter os pais e/ou mães como atores participantes do seu desenvolvimento.
Assim, é perceptível que nesse momento a alienação parental tem como pano de fundo um debate sobre a proteção de direitos de mulheres e de direitos de crianças. Qualquer resposta em casos concretos deve pender, como regra, em favor da criança, pois ela é destinatária de proteção integral e prioridade no atendimento de seus interesses, que, são diferentes dos interesses e direitos de sua mãe. Talvez seja essa a mais difícil percepção no campo jurídico e falha no conhecimento sobre o conteúdo do melhor interesse e da proteção integral: o interesse dos pais e/ou mães não se confunde com os dos filhos(as). A alteração da ordem de prioridade exige justificação forte no caso concreto, item que tem sido apontado como insuficiente nas decisões judiciais.
Em suma, o movimento de revogação da lei de alienação parental é importante para pautar a aplicação machista da lei, mas revela-se insuficiente para resolver o fenômeno do machismo e patriarcalismo no sistema judicial, até porque, o direito à convivência familiar supre de forma autônoma o fundamento jurídico de uma LAP revogada. O enfrentamento do machismo e patriarcalismo no sistema judicial envolve muito mais do que a revogação de uma lei, sendo essencial que os discursos feministas sejam apropriados e articulados judicialmente. De outro lado, são bem conhecidos os efeitos negativos no desenvolvimento psicossocial da alienação parental sobre crianças e adolescentes, de modo que a desconsideração completa do fenômeno não irá contribuir na proteção desse grupo de pessoas. Por isso, no confronto entre direitos de crianças e direitos de mulheres, é imprescindível se despir de pré-conceitos e tentar olhar cada caso como único e buscar em relação a cada um deles a melhor resposta, tendo como diretriz a maximização dos direitos de todos e todas os(as) envolvidos(as).