O ano é 2023, porém, poderíamos facilmente dizer que vivemos tempos que nos remetem ao período anterior a redemocratização e do alcance a direitos fundamentais e essenciais à vida em sociedade.
Tempos sombrios nos chocam, mas isso ainda é pior para uma parcela da população, que, para além da supressão de direitos, ainda se vê mais à margem da sociedade e em condições de riscos. Os dados estatísticos falam por si e demonstram quão frágeis são. Eles são vítimas e algozes, numa sociedade que não pensa políticas públicas que visem minimizar a desigualdade, o acesso e a permanência, seja na educação, na saúde ou no mercado de trabalho.
Retratando em números, o Levantamento do Anuário Brasileiro de Segurança Pública1 traça o perfil daqueles que mais sofrem com as violências, não somente advindas de agentes estatais, mas de uma sociedade que é preconceituosa, racista, aporofóbica etc. Não raro a arma que fere ou mata o adolescente periférico é a mesma que o faz vítima de sua violência, o agente estatal à serviço do Estado.
Este mesmo levantamento, aponta que nos casos de mortes violentas, as vítimas são negras (77,9%), possuem entre 12 e 29 anos (50%) e são predominantemente do sexo masculino (90%), ou seja, a letalidade incide sobre um mesmo segmento: negros, jovens e pobres que circulam ou residem nas periferias. É inegável dizer que há uma seletividade.
Neste viés, a letalidade e o recorte racial também são observados entre crianças e adolescentes. Entre os anos de 2016 e 2021, cerca de 35 mil crianças e adolescentes até 19 anos foram mortos de forma violenta no país, como aponta o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Cerca de 83,6% das vítimas são adolescentes negros e em sua maioria (87,8%), do sexo masculino; 88,4% foram vítimas de arma de fogo e 43,4% destes crimes ocorreram em vias públicas. Ou seja, em nada se difere do que ocorre com a população adulta. O alvo é sempre o mesmo.
Não bastassem os números absolutos em casos de mortes violentas, outro recorte que nos faz refletir recai sobre a população encarcerada no país. Os dados refletem não somente a questão racial, mas a desigualdade social que assola o país. No ano de 2021, de um total de 820.689 presos, cerca de 429.255 presos, um total de 67,5% eram negros; em detrimento de 184.682 (29%) brancos. Em relação à faixa etária, 46,4% correspondem à idade de 18 a 29 anos, o que equivale também a população que mais é vítima das violências estatais e sociais.
Por muito tempo, quiçá ainda hoje, a prisão e o Direito Penal desempenham esse papel de alojar os excluídos da dinâmica social e econômica. Os dados que demonstram o expressivo encarceramento de pessoas por crimes patrimoniais ou praticados sem violência ou grave ameaça à pessoa corroboram essa noção2. Essa lógica em nada se difere quando nos referimos aos adolescentes a quem se atribui a prática de ato infracional.
O Anuário Brasileiro de Segurança Pública, no ano de 2021, apontou que haviam 13.684 adolescentes internos e sob a égide do Sistema Socioeducativo, sendo 4.847 (34%) só no estado de São Paulo. Destes, segundo o Levantamento do SINASE, publicado em 2019, porém, com dados relativos a 2017, haviam sido apreendidos por: roubo (38,1%), seguido de tráfico de drogas e associação ao tráfico (26,5%) e homicídio (8,4%), ou seja, os crimes contra o patrimônio continuam sendo os principais responsáveis pela apreensão e internação de adolescentes.
Diante destes dados, é incontestável que a desigualdade econômica e social brasileira dificulta o pleno crescimento e o desenvolvimento de milhões de adolescentes, que se veem privados de oportunidades de inclusão social em seu contexto comunitário, vivendo em moradias inadequadas e à mercê de diversas problemáticas, como: restrições severas ao consumo de bens e serviços; estigmas e preconceitos; falta de qualidade no ensino; relações familiares e interpessoais fragilizadas; e violência em todas as esferas de convivência (Assis e Constantino, 2005).
Corroborando com as autoras, Volpi (2001) salienta que os adolescentes em conflito com a lei são meras vítimas de um sistema social, ou “produto do meio”, e o delito é uma estratégia de sobrevivência ou uma resposta mecânica a uma sociedade violenta e infratora em relação aos seus direitos.
A análise que fazemos é que o Sistema Socioeducativo, assim como o Sistema Penal, possui uma seletividade nata, abarcando adolescentes negros, periféricos e privados ou com pouco acesso às políticas públicas básicas, muitas vezes, desde o momento de seu nascimento e, os dados acima comprovam tal teoria.
E ressaltamos que, ainda que haja a possibilidade de meios alternativos para a responsabilização destes adolescentes, que não a medida de internação (para os casos que não correspondem ao art. 122, I, ECA), eles seguem sendo “encarcerados”, como resposta aos anseios da sociedade e que, não raramente, remete à política higienista e de exclusão marcada pelos dois códigos de menores que antecederam o ECA.
Por fim, frente à tamanha problemática, acredita-se que, enquanto houver inflexibilidade por parte do Estado, em especial, na garantia dos direitos fundamentais e constitucionais devidos a esta população, de maneira preventiva e na promoção desses direitos e da cidadania, haverá ainda mais o aumento da vulnerabilidade destes jovens negros, pobres e marginalizados, cabendo aos agentes estatais, um olhar mais humano a eles, maiores ofertas nos campos da educação e trabalho, podendo, no futuro, haver uma mudança nestas estatísticas, no quadro do encarceramento e na desigualdade social entre as raças.
Referências
ASSIS, S.G.; CONSTANTINO, P. 2005. Perspectivas de prevenção da infração juvenil masculina. Ciência & Saúde Coletiva, p. 81-90.
FORUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2022. Disponível aqui.
MONTEIRO, Felipe Mattos e CARDOSO, Gabriela Ribeiro. A seletividade do sistema prisional brasileiro e o perfil da população carcerária: Um debate oportuno. Civitas - Revista de Ciências Sociais [online]. 2013, v. 13, n. 1 [Acessado 12 Junho 2022] , pp. 93-117. Disponível aqui. Epub 01 Jul 2020. ISSN 1984-7289. https://doi.org/10.15448/1984-7289.2013.1.12592.
VOLPI, M. Sem Liberdade, Sem Direitos: A experiência de privação de liberdade na Percepção dos adolescentes em conflito com a lei. São Paulo: Cortez, 2001.
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1 Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Acesso aqui.
2 MONTEIRO, Felipe Mattos e CARDOSO, Gabriela Ribeiro. A seletividade do sistema prisional brasileiro e o perfil da população carcerária: Um debate oportuno. Civitas - Revista de Ciências Sociais [online]. 2013, v. 13, n. 1 [Acessado 12 Junho 2022] , pp. 93-117. Disponível aqui. Epub 01 Jul 2020. ISSN 1984-7289.