Migalhas Infância e Juventude

A tragédia yanomami tem raça, gênero e idade: O protagonismo às avessas da infância indígena feminina marcada por abusos, fome e mortes

O texto pretende chamar atenção para os indicadores deste drama, especialmente em relação às meninas, crianças e adolescentes indígenas, sob a ótica do Direito Infanto-Juvenil.

28/2/2023

O início do ano de 2023 foi marcado pela revelação da tragédia Yanomami, que estampou a capa dos mais importantes noticiários e jornais do nosso país e do mundo, evidenciando um quadro de vulnerabilidade e abandono extremos, marcado pelo esquecimento dos povos indígenas pelo Governo Federal.

O texto dessa primeira coluna do ano pretende chamar atenção para os indicadores deste drama, especialmente em relação às meninas, crianças e adolescentes indígenas, sob a ótica do Direito Infanto-Juvenil.

Em pesquisa sobre o tema, é possível enxergar que as mulheres sofrem mais durante o quadro de crise, inclusive com altas taxas de estupro, sucedidos de abortos e más-formações fetais causados pelo mercúrio, usado no garimpo ilegal, conforme reportagem da Agência Sumauma.

Uma reportagem publicada pelo Portal UOL, produzida pelo jornalista Leon Ferrari, demonstra que ao menos 30 meninas Yanomami estão grávidas de garimpeiros e que há adoções irregulares em andamento, com crianças acolhidas ilegalmente por famílias não indígenas, sendo impossível não associar tais fatos à denúncia contra a ex-Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos  a respeito da irregularidade na retirada de Lulu Kamayurá de sua tribo e família de origem quando ainda era criança.

Os abusos sexuais, portanto, avassalaram a história de vida de várias gerações de meninas e adolescentes Yanomani, demonstrando que a infância feminina indígena assumiu um papel de protagonista de um filme de terror anunciado.

A denúncia atual escancara ainda um quadro de intensa vulnerabilidade infantil: uma morte lenta e dolorosa de crianças por fome.

Segundo o Ministério da Saúde e Agência Sumauma, em levantamento feito pelo Fantástico, entre 2019 e 2022, ao menos 152 crianças morreram de desnutrição, um aumento de 360% frente a dados do passado.

Lastimável ver como alguns atacam as notícias afirmando que tal quadro é histórico e não atribuível ao governo anterior, numa tentativa insensível de explicar o inexplicável. Acusam os meios de comunicação de sensacionalismo e manipulação política.

A verdade, contudo, é que em 2019 o UNICEF – Fundo das Nações Unidas para a Infância já havia divulgado dados sobre desnutrição de crianças indígenas de até 5 anos de idade em aldeias inseridas no Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami, revelando o cenário de desnutrição crônica de oito em cada dez crianças menores de 5 anos1.

A alimentação é um direito social garantido pela Constituição Federal a todas as pessoas, inclusive com dotação orçamentária destinada diretamente para sua garantia, recebendo especial atenção no Art. 227, pelo qual família, sociedade e Estado são obrigados a assegurar, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde e à alimentação, entre outros, a crianças e adolescentes. A regra se repete integralmente logo no início do texto do Estatuto da Criança e do Adolescente, no Art. 4º, dispondo também sobre a atenção especializada às gestantes e lactantes, que precisam receber alimentação complementar saudável para garantir o desenvolvimento saudável de suas crianças.

Na realidade do povo Yanomami, todavia, as gestantes e as lactantes já sofrem de restrição alimentar, além de consumirem alimentos e água contaminados pelo mercúrio. Da mesma forma, sem apoio médico são infectadas pela malária, e passam a doença aos filhos através da amamentação. Mais uma vez, o protagonismo às avessas do público infanto-juvenil.

Vê-se que o direito à alimentação, à saúde e à vida, básicos no corpo juris internacional e nacional como garantias humanas e fundamentais, tão caros na legislação pátria e tão presentes no cotidiano do Poder Judiciário, passam ao largo da população indígena, que carece de tais direitos e mesmo de acesso à justiça, como se fossem “não gente”.

O protagonismo da infância na legislação, a partir da absoluta prioridade na proteção garantida pela Constituição Federal, encontra reflexo em um protagonismo às avessas de crianças na crise Yanomami, já que elas são as mais atingidas pelos quadros severos de abusos, fome e mortes.

Não se quer com isso minimizar as demais vítimas dessa catástrofe humanitária, flagelados que foram e continuam sendo em suas histórias, mas evidenciar que o Princípio Constitucional da Prioridade Absoluta – de forma simplificada, segundo o qual crianças e adolescentes têm prioridade em relação a outros sujeitos de direito - tem sido solenemente ignorado e deixado de ser perseguido pelos atores que compõe o sistema de proteção desses direitos.

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1 A pesquisa foi financiada e requisitada pelo UNICEF e implementada em parceria com Fiocruz, Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), Coordenação-Geral de Alimentação e Nutrição (Cgan), do Ministério da Saúde, e a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e, dentre outras coisas, concluiu que 81,2% das crianças menores de 5 anos pesquisadas tinham baixa estatura para a idade (desnutrição crônica), 48,5% tinham baixo peso para a idade (desnutrição aguda) e 67,8% estavam anêmicas. Disponível aqui. Acesso em 13 fev, 2023.

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Colunistas

Angélica Ramos de Frias Sigollo é promotora de Justiça em São Paulo. Mestre em Direito pela USP. Pós-graduada pela FGV Direito SP. Integrante do Proinfancia - Fórum Nacional dos membros do Ministério Público da Infância e Adolescência. Professora de Infância e Juventude no CERS - Centro Educacional Renato Saraiva. Professora colaboradora no Law in Action.

Elisa Cruz defensora pública no Rio de Janeiro. Doutora em Direito Civil pela UERJ. Professora na FGV Direito Rio.

Hugo Gomes Zaher é juiz de Direito na Paraíba. Mestre em Direito. 1° vice-presidente da Associação Brasileira de Magistrados da Infância e da Juventude (ABRAMINJ).

Marília Golfieri Angella é advogada atuante em Direito de Família e Social, com ênfase em Infância e Juventude. Professora Colaboradora do FGV Law. Mestranda em Processo Civil pela Faculdade de Direito da USP. Pós-graduada em Direito das Famílias e Sucessões na Universidade Cândido Mendes/IBDFAM. Membro da Comissão de Infância e Juventude no IBDFAM e na OAB/SP.