No mês em alusão ao combate à violência contra a mulher, faz-se oportuno debater a respeito das diferentes formas como a mulher enfrenta situações de violência na sociedade brasileira, a qual se transforma em ciclo vicioso, afetando a criança e adolescente que delas descendem.
A despeito do atual panorama sociojurídico brasileiro, o qual se caracteriza pela concepção da proteção integral à infância e à adolescência como pilar de todas as normativas elaboradas desde a Constituição Federal de 1988, tendo como seu primeiro desdobramento o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA/1990), a partir da concessão de direitos e do estabelecimento de obrigações a diversas instituições – temos atualmente um panorama que indica a necessidade de avanços na aplicação das leis e na transformação da cultura, para maior entendimento dos preceitos que sustentam o arcabouço legal contemporâneo.
Acerca dessa temática, faz-se necessário, a princípio, verter ponderações sobre a historicidade que envolve as práticas e políticas públicas de assistência às crianças e adolescentes e suas famílias, notadamente, aos mais vulneráveis.
Segundo Alves (2007), esse contexto histórico não é linear, posto que se caracteriza por uma tendência secular de contradições do Poder Público em relação à criança e adolescente, coexistindo paradigmas conservadores e progressistas, que influenciaram a legislação, assim como a efetivação de serviços e programas governamentais implementados ao longo das décadas.
Em virtude disto, há uma tendência entre autores que debatem essa temática em dividir essa trajetória histórica em cinco períodos distintos, assim denominados: período assistencial-caritativo (1554 a 1874), período filantrópico-higienista (1874-1924); período assistencial (1924 a 1964); fase institucional (1964 a 1990); e, finalmente, o período de desinstitucionalização, iniciado em 1990 e vigente até os dias atuais.
A demarcação temporal destes períodos não representa um limite rígido de existência destas práticas e concepções no debate público, na construção das políticas públicas e na implementação dos serviços. Muitas são as iniciativas que tramitam no legislativo, baseadas em ideias conservadoras de atendimento à criança e adolescente vulneráveis. As propostas de redução da maioridade penal, a culpabilização de famílias pobres, a exemplo da produção de conceitos como "famílias incapazes", as quais são responsabilizadas como as únicas fomentadoras da violência, da pobreza e da negligência com os mais vulneráveis, fazem parte de iniciativas dentro do Congresso Nacional, que tendem a marginalizar ainda mais as classes sociais subalternizadas.
Porém, é necessária uma reflexão mais aprofundada, avaliando a atuação do Estado, perante os grupos sociais que vivem às margens do acesso a bens e serviços socialmente produzidos. Aqueles que não estão inseridos formalmente no mercado de trabalho, não têm escolaridade mínima para desempenhar funções mais complexas e atingir melhores condições de renda, dependem fortemente da atuação do poder público, por meio das políticas públicas que possam lhes oferecer acesso a ações que viabilizem a transformação de suas condições de vida.
Diante desta realidade de fortes negligências vividas por toda a sua trajetória, com o dilema da impossibilidade de assumir as responsabilidades de maternagem, muitas mulheres, ou casais, optam por entregar o filho para adoção. Tais condutas, entretanto, são consequência de outra prática também bastante comum na realidade brasileira: a entrega de bebês por suas próprias genitoras, realizadas à margem da lei. Prática conhecida como entrega direta - intuitu personae -, ou ainda como adoção à brasileira, quando o bebê entregue é registrado por terceiros como se fosse seu filho biológico.
Mesmo quando a mulher, ou a família, opta pelo caminho legal, observamos que existe forte (pré)conceito a respeito da entrega de crianças para adoção. O episódio da atriz que recentemente foi exposta na mídia nacional, por ter tomado a decisão de entregar o filho que gerou, após sofrer violência sexual, para adoção, apontou holofotes para o forte desconhecimento da sociedade a respeito da lei e de sua fundamentação.
Quando falamos da gritante necessidade de maior debate a respeito da entrega legal de crianças recém-nascidas para adoção, casos como este nos indicam que a estratégia de informação e esclarecimento da população se faz cada vez mais necessária.
A culpabilização das mulheres se evidencia mais quando o assunto é debatido na perspectiva de famílias pobres, diante da produção jurídica das "famílias incapazes" - como debatido na obra "Produção Sociojurídica de Famílias Incapazes", da Graciele Feitosa de Loiola (2020). Nos referimos aqui à "subjetividade socialmente compartilhada" (apud, 2020), de uma realidade que não se refere a uma família isoladamente, mas a uma conjuntura macrossocial, na qual os sujeitos não possuem as estruturas mínimas para superação de suas vulnerabilidades, diante das condições sociais impostas à maioria da população.
Esta é a realidade da maioria das mulheres que entregam seus filhos para adoção - mulheres que se percebem "incapazes" de cuidar de seus filhos, e que de forma "despolitizada", alienada, não têm consciência da condição de classe social desfavorecida, que não lhes possibilita a superação de sua atual condição, o que as impede de oferecer a seus filhos a garantia de direitos fundamentais, fazendo com que se sintam incapazes e se culpem e se julguem negativamente diante de sua decisão.
Em diversas comarcas por todo o país existem programas de acolhimento a mulheres/famílias que desejam entregar o filho para adoção. No Tribunal de Justiça da Paraíba, desde 2011 existe o Programa Acolher. De acordo com os dados do Programa, entre os anos de 2015 a 2020, foram atendidas 66 (sessenta e seis) gestantes/puérperas nas Comarcas de Campina Grande e João Pessoa, que manifestaram seu desejo de entregar os filhos para adoção, e foram devidamente acompanhadas pelas equipes interprofissionais do TJPB, por meio do referido Programa. Destas, aproximadamente 40 (quarenta) entregaram os filhos efetivamente para que fossem adotados. Dentre as demais, 20 (vinte) desistiram do processo e 3 (três) tiveram gestações que resultaram em morte do feto durante o acompanhamento (SILVA, 2022)1.
Estes dados indicam que, com o devido acompanhamento pelas equipes interprofissionais, com as decisões tomadas pelos(as) magistrados(as), a respeito de possível acolhimento da criança, acompanhamento da família ou da mulher pelas equipes da Rede de Proteção, é possível realizar um trabalho permeado pela garantia dos direitos da criança, desde a primeira infância e da mulher, consequentemente.
Porém, tendo a falta de conhecimento sobre o direito da entrega legal como uma realidade concreta, associada a diversos fatores que advêm de uma sociedade constituída culturalmente no alicerce do patriarcado e da misoginia, como garantir que essas mulheres consigam decidir qual o seu futuro e o futuro do filho gerado?
Apontamos para este desafio pois, de acordo com "A advogada Gabriela Souza, especializada no direito das mulheres [...] mais de 95% dos crimes envolvendo vazamento de informações pessoais na Internet têm mulheres como alvo e que, por isso, trata-se de um crime de gênero". Ela aponta para este dado quando se refere ao crime de violência institucional, cometido pela equipe de um hospital, ao fornecerem informações para pessoas externas publicarem a história da entrega do filho de uma atriz para adoção.
A entrega legal não foi evidenciada na mídia nacional por ser um mecanismo judicial de garantia de proteção a mulheres e crianças, mas foi estopim para levantar o debate de forma mais abrangente em relação a como os profissionais que fazem parte da Rede de Proteção estão executando esse trabalho. Em qual momento alguns destes profissionais escolhem por possíveis "recompensas" e deixam de lado o compromisso ético e a obrigação de atender à mulher e à criança recém-nascida com o respeito e a dignidade que lhes são garantidos por lei - de forma sigilosa e humanizada.
Considerando que é direito da mulher decidir realizar a entrega sob sigilo e ser resguardada de qualquer tipo de constrangimento, por parte de qualquer profissional que lhe atender, direitos estes garantidos pelo Art. 19-A do Estatuto Da Criança e do Adolescente, a questão que devemos fazer diz respeito a como trabalhar para que haja uma reeducação e preparação da Rede de Proteção, a qual envolve Saúde, Assistência Social, Educação, Segurança Pùblica, entre outros, para que atuem na perspectiva do que preconiza a lei.
Para isso, entendemos que se faz necessária uma formação profissional com ênfase na necessidade de condutas mais comprometidas com as diretrizes e princípios éticos de cada categoria, tendo em vista que estão em consonância com a defesa dos direitos humanos, entendendo também que somente tendo uma Rede que se implique com estas mulheres, se conseguirá viabilizar seus direitos e, assim, proteger a mulher, a criança, a família e a sociedade como um todo.
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1 Artigo do Trabalho de Conclusão de Curso de Lyzandra Teixeira da Silva, ex-estagiária da Vara da Infância e Juventude da Comarca de Campina Grande/TJPB, 2022 - o qual inspirou a elaboração do presente artigo.