Trinta e dois anos se passaram desde a promulgação do estatuto da criança e do adolescente e, na atual conjectura em que o país se encontra, cabe-nos um questionamento: O paradigma da proteção integral está em risco?
Os dados abaixo demonstram tamanho temor.
Hoje no Brasil, temos mais de 33 milhões de pessoas que passam fome, como aponta o 2º inquérito nacional sobre insegurança alimentar no contexto da pandemia da covid-19 no Brasil1, publicado no último dia 8 de junho.
De acordo com o referido inquérito, o número de crianças em situação de insegurança alimentar, quase dobrou entre os anos de 2020 e 2022, de 9,4% para 18,1%. Cerca de 74% de crianças de 2 a 9 anos, não tem acesso a três refeições diárias. Em função do quadro pandêmico e a deflagração da crise sanitária, que resultou no fechamento das escolas, 13% das crianças brasileiras deixaram de comer na pandemia.
Não obstante à ausência de proteção aos direitos à alimentação, observamos o crescente número de crianças em situação de rua e em exploração de trabalho infantil.
No ano de 2020, pesquisa feita pela UNICEF2, indicou um aumento de 26% no número de crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil. Conforme relatório da Fundação Abrinq3, cerca de 1,7 milhão de crianças e adolescentes estão ocupados com trabalho.
Referente à educação, no final de 2020, cerca de 5 milhões de crianças e adolescentes encontravam-se fora da rede escolar, agravando ainda mais a situação de exploração de trabalho infantil (dados Unicef). No ano de 2021, dados do relatório da Fundação Abrinq, aponta que cerca de 25,3% de crianças deixaram de ser matriculadas no ensino infantil, o que compromete seu desenvolvimento, ainda na primeira infância.
Além destes dados alarmantes, outros são ainda mais assustadores. No ano de 2021, mais de 35 mil crianças e adolescentes foram vítimas de estupro, segundo levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Ainda mais grave é o fato de que a cada vinte minutos, uma criança dá à luz4. Casos de maus-tratos contra crianças, nestes dois anos, subiram 21,3%5.
Diante destes dados, não resta dúvidas quanto a ausência de proteção aos direitos de crianças e adolescentes.
Mais do que isso, explicita violação de direitos assegurados constitucionalmente, sendo-nos necessário lembrar os ditames do art. 227 da CF/88, que traz em seu escopo que “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Redação dada pela EC 65/10), que é reforçado pelo art. 4º do ECA, reforça “É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
Há falhas. E por isso, reforço meu questionamento inicial: o paradigma da proteção integral está em risco?
O Brasil é signatário da convenção sobre os direitos da Criança, ratificada em 1990 e assumiu o compromisso em assegurar os direitos de crianças e adolescentes. Contudo, os dados não mentem e a negligência a estes sujeitos de direitos é a cada dia mais notória, colocando o paradigma da Proteção Integral em risco.
Desta feita, compete-nos reforçar que enquanto Estado, sociedade e família, devemos assegurar que crianças, já na primeira infância, tenham acesso e prioridade absoluta aos direitos fundamentais apontados nos arts. 227 da CF e 4º do ECA, além dos cuidados que possibilitem seu desenvolvimento saudável, tal como disposto também no marco da primeira infância, através dalei 13.257/16, haja vista que, cerceada destes cuidados e direitos, poderá, consequentemente, permanecer em situação de vulnerabilidade e violação.
Cabe investimento em prol da infância e juventude (e não redução de investimentos, como vem ocorrendo desde o final do governo Temer e persistido no atual governo), implementação de políticas públicas, fiscalização e monitoramento das ações já iniciadas, pois somente deste modo, poderemos dar um futuro digno às crianças e adolescentes no país.
Por fim, embora haja poucas pessoas que nos sugiram haver motivos para celebrar o aniversário de promulgação do ECA ocorrido no último 13 de julho, o que nos denota tamanha incoerência diante de todos os fatos aqui brevemente mencionados, e mesmo sendo esta lei um feito histórico e de suma importância à proteção e defesa de crianças e adolescentes em nosso país, ainda há muito que ser feito para que tenhamos reais motivos para comemorar o fato de termos uma lei progressista e garantista como o Estatuto da Criança e do Adolescente, principalmente nos últimos tempos em que, ao invés de garantia de direitos, temos nos deparado com constantes violações de direitos.
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1 Disponível aqui.
2 Disponível aqui.
3 Disponível aqui.
4 Rede feminista de saúde.
5 Disponível aqui.