No sistema de mau trato (reprimir bebês, dando tapinhas, ou ajustar adolescentes a enganosas instituições totais que se dizem... de bem estar), todos sabemos, basta usar a agressividade e a violência (mesmo que sutis, como em certos casos de tapinhas no bebê e no ajuste do adolescente). Com o uso da agressividade e da violência (sutis, leves, disfarçadas ou manifestas, duras, declaradas), os choques se resolvem (ou se agravam). Mas, claro, com mau trato (um trato que não é bom, é mau, sendo ou não ele um crime, porque há formas de mau trato que não são crimes), os choques se resolvem ou se agravam sempre em detrimento do pensar mais débil, do querer mais exposto à imposição alheia e do agir inacessível a um sistema (pessoal, comunitário ou internacional) de proteção à cidadania.1
Essa epígrafe diz muito sobre o que conhecemos: formas violentas de lidar com crianças e adolescentes. Apesar dessa obviedade (há os que recusarão o termo violência, preferindo “disciplina”, “ordem”, “regras”, “impor autoridade”), também se fala da importância da participação na área da infância e juventude, a partir das diretrizes internacionais. Muito se fala, mas pouco se escuta.
É importante definir que nomeamos de infância a construção social, historicamente variável, sobre as idades da vida e criança “o sujeito empírico concreto que vivencia suas experiências na sociedade”2. Assim, na infância o direito à participação deve ser exercido de modo lúdico e ocorrerá a depender do ciclo de vida em que aquela criança está para que, depois, na adolescência, a participação ganhe inventividade e postura crítica. A questão é que participar sem nunca ter sido realmente escutado é quase uma tarefa impossível. A ausência de escuta adequada pode afetar os processos identitários e gerar diversos prejuízos ao pleno desenvolvimentos', já que ausentes as oportunidades de participação e expressão. Ao contrário, em linhas gerais, a escuta ativa possibilita um diálogo efetivo, com vistas a ver aquele que fala em toda sua complexidade, ofertando segurança.
Conduzimos, nós, os adultos, os supostos maduros da relação, os caminhos ao direito de participação para que, por este meio, crianças e adolescentes encontrem a vida adulta e possam dela participar plenamente. Não podemos fazer isso se ofertamos uma escuta precária como se crianças e adolescentes não fossem sujeitos de direitos, mas objetos de tutela. Essa responsabilidade em conduzi-los para a vida adulta deveria ser o que mobiliza a implementação do princípio da condição peculiar de desenvolvimento.
A questão é que se conduzimos com nossas violências, conscientes ou não, pouco enxergamos se estão adequados os caminhos que ofertamos. E quando não encontramos as respostas que buscamos não entendemos qual é o problema. Queremos transformar a infância, alegar ser ela o lugar privilegiado do futuro, mas sem pensar no presente, nas ofertas de uma série de ações violentas como caminhos para encontrar “boas” respostas. A violência não nasce com a infância, ela é algo que se aprende e se reproduz. E se aprende na relação com uma pessoa adulta responsável, seja na família ou em vínculos ampliados, no braço do Estado que atende ou presta um serviço público e na comunidade que os cercam.
Em março essa coluna já apontou a importância de ações que visem o fortalecimento do plano Nacional da convivência familiar e comunitária, alertando sobre um potencial retrocesso legislativo em torno do tema:
Além da articulação entre governo e sociedade civil, é marcante nesse Plano Nacional a definição de família como processo social, histórico, transgeracional e interindividual; a aplicação da doutrina da proteção integral e que crianças e adolescentes são titulares de direitos; o reconhecimento da multiplicidade de vínculos familiares no país; e, o reconhecimento da importância da comunidade no desenvolvimento de crianças e adolescentes3.
Conduzir esses caminhos inclui ofertar apoios para que o desenvolvimento aconteça, não de modo autoritário, “eu sei o que é melhor”, mas a partir do que as pessoas necessitam. Ouvir essas necessidades é o primeiro passo. Práticas contrárias ao que prescreve a legislação, em nome da suposta paz social, podem levar à uma reprodução e ampliação de abismos sociais. Normalizamos esses abismos e queremos respostas universais que não os levam em consideração, perpetuando ciclos de violências.
Há um mundo de possibilidades na escuta. Ao invés de dar as respostas, formular boas perguntas, como ensina Paulo Freire, abre um universo de possibilidades, tão vastas quanto a história brasileira, sua diversidade e injustiças sociais que precisam ser denunciadas. Com perguntas possibilitamos a emergência de outras histórias. Histórias talvez mais justas do que as que deixamos nascer quando interrompemos as escutas do que não queremos ouvir.
Não vim aqui, disse eu, para fazer um discurso, mas para conversar. Farei perguntas, vocês também. As nossas respostas darão sentido ao tempo que passaremos juntos aqui4.
Mas, porque falar de escuta? Há dois procedimentos em uso atualmente – a escuta especializada e o depoimento especial que provocam essas questões, mesmo que os operadores do direito não as percebam ou as problematizem. Há outros espaços que ainda não existem legalmente – como nas questões relacionadas à adoção ou entrega de crianças -, mas nos quais se faz necessário e urgente pensarmos em como realizar uma escuta que seja protegida, uma escuta que cuide das necessidades das pessoas para podermos fazer bom uso da proteção ao invés de mantermos as práticas filantrópicas, tutelares e menoristas5, em nossa sociedade.
São espaços, em tese privilegiados, criados pela legislação para escutar crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas (lei 13.431/17) por meio da escuta especializada ou depoimento especial. O art. 7º prescreve que a “escuta especializada é o procedimento de entrevista sobre situação de violência com criança ou adolescente perante órgão da rede de proteção, limitado o relato estritamente ao necessário para o cumprimento de sua finalidade”. Já no Art. 8º define que “depoimento especial é o procedimento de oitiva de criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência perante autoridade policial ou judiciária”.
Tais procedimentos unem a defesa da infância e juventude e as questões relacionadas à saúde mental em sentido amplo, já que se propõe um espaço de fala preparado, a fim de ofertar os cuidados adequados evitando qualquer processo de revitimização ou tratamento que as “use” como objeto de prova, estritamente com a finalidade de identificar e apurar essas situações de violências vivenciadas. Ser ouvido, nesses casos, deve incluir o direito de silenciar e a ser escutado na medida da sua idade, com as interpretações adequadas ao seu universo de linguagem. Mas, há uma limitação porque operadores do direito não são ensinados a escutar. O Direito precisa olhar para o saber da psicologia para além do modo instrumental – “produza quesitos, por gentileza!” – e caminhar com ele de mãos dadas para atingir o ideal legislativo.
Nessa legislação o art. 4º, inciso IV, enuncia: “violência institucional, entendida como a praticada por instituição pública ou conveniada, inclusive quando gerar revitimização”. A legislação está preocupada em como os adultos conduzem, mas no Direito sabemos dar respostas e não escutar. Esse é um desafio que essa lei coloca e, por isso, há mais a ser explorado e aprofundado neste tema, na união dos saberes, em nome dos direitos das crianças e adolescentes
Espaços de escuta podem proporcionar o encontro com as respostas que precisamos para atender as necessidades dessa parcela da população e, ofertar, legitimamente participação. Participar é também proporcionar sair da invisibilidade, das injustiças e dos processos de assujeitamento e, portanto, deve ser algo diferente da punição. Participar e escutar não são práticas separadas, suponho quando sua finalidade é possibilitar o exercício da alteridade. Para isso, é fundamental o preparo de quem escuta, especialmente no que diz respeito aos valores e visões de mundo. Não é possível escutar se há presente o desejo, por aquele que escuta, de encaixar o que recebe em determinado padrão. O que não se entende, porque não, novamente, perguntar? A criatividade e flexibilidade, o desejo de apoiar e incluir, devem estar presentes, especialmente quando aquele que escutamos são crianças ou adolescentes.
Muito já se avançou em termos legais, mas ainda há muito por fazer, para que possamos devolver liberdade e vida ao invés de violências, ausência de direitos, estigmatizações e punição. Proponho essas reflexões como uma forma de ampliarmos o debate sobre esse tema, sem qualquer pretensão de ponto final.
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1 SEDA, Edson. A criança e o fiel da balança – a solução de conflitos segundo o ECA. Rio de Janeiro: versão digital. Acesso em https://crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/publi/edson_seda/crianca_fiel.pdf p. 10.
2 SANTOS, Benedito R. Por uma escuta de crianças e adolescentes culturalmente contextualizada. In: Escuta Protegida de crianças e de adolescentes vítimas ou testemunhas de violências: aspectos teóricos e metodológicos. Brasília, DF : Universidade Católica de Brasília ; [São Paulo, SP] : Childhood Brasil, 2020, p29.
3 Disponível aqui.
4 FREIRE, Paulo. Por uma pedagogia da pergunta. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2021, p. 69.
5 Práticas vinculadas à Doutrina da Situação Irregular ao invés da Doutrina da Proteção Integral.
6 Conselho Federal de Psicologia A escuta de crianças e adolescentes envolvidos em situação de violência e a rede de proteção / Conselho Federal de Psicologia. - Brasília: CFP, 2010.
7 Escuta protegida de crianças e de adolescentes vítimas ou testemunhas de violências [recurso eletrônico] : aspectos teóricos e metodológicos : guia de referência para capacitação em escuta especializada e depoimento especial / organizadores, Benedito Rodrigues dos Santos, Itamar Batista Gonçalves. – Brasília/DF: Universidade Católica de Brasília ; [São Paulo, SP] : Childhood Brasil, 2020.
8 FREIRE, Paulo. Por uma pedagogia da pergunta. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2021.
9 SEDA, Edson. A criança e o fiel da balança – a solução de conflitos segundo o ECA. Rio de Janeiro: versão digital. Acesso aqui.