“A paz não pode ser mantida à força.
Somente pode ser atingida
pelo entendimento.”
Albert Einstein
O atual governo brasileiro promove uma cultura de paz. É o que afirma uma carta elaborada pelo Ministério da Família, Mulher e Direitos Humanos e pelo Ministério da Justiça em resposta a uma denúncia feita por relatores da ONU diante das 28 mortes registradas em ação da polícia na favela do Jacarezinho, na zona norte do Rio de Janeiro, no início de 2021. O documento garante que o Brasil vem buscando incluir treinamento em direitos humanos e promover a cultura da paz entre policiais no combate ao crime. Pelo evidente contraste da afirmação com a realidade vista em todo o país, a declaração gerou revolta nas entidades defensoras de direitos humanos.1
Não trataremos aqui do evento que ficou conhecido como a Chacina do Jacarezinho. Entretanto, é inevitável falar de sistema de justiça e política criminal sem tangenciar eventos lamentáveis como esse que refletem a verdadeira cultura na qual estamos submersos: violência estrutural, racismo institucional, desigualdade, punitivismo e medo. Pretendemos abordar o tratamento conferido ao adolescente envolvido no cometimento de ato infracional e a abordagem restaurativa como alternativa para uma mudança de mentalidade coletiva.
No Brasil, a despeito do que afirma o senso comum, é sabido que o tratamento dado aos adolescentes etiquetados como infratores é similar ao do sistema prisional. O perfil também é o mesmo: a maioria é composta por pessoas negras, do sexo masculino, de classe socioeconômica menos favorecida, em péssimas condições de assistência familiar, com pouca ou nenhuma perspectiva de futuro promissor, com baixa escolaridade e apreendidos na prática de atos infracionais correspondentes a crimes contra o patrimônio e tráfico de drogas. Percebe-se que o estigma do “delinquente” delimita o público-alvo, facilitando a atuação Estatal nas condutas selecionadas. Neste contexto, aumenta o clamor popular e político pela repressão mais severa, por parte do Estado, das condutas dos adolescentes em conflito com a lei. Tal recrudescimento parece ser a saída mais enfatizada pelos adeptos da tolerância zero. Contudo, essa não tem se mostrado a saída mais adequada, visto que o sistema penal não tem resolvido o problema do aumento da criminalidade. Pelo contrário, há alguns anos, o modelo restaurador, não-retributivo, já tem se mostrado mais eficaz na reinserção do adolescente à sociedade e na prevenção da reincidência.2 Propõe-se, portanto, uma “troca de lentes” na abordagem do assunto, superando a justiça retributiva e caminhando rumo aos ideais da justiça restaurativa.
A Convenção sobre os Direitos da Criança, no artigo 40, exige que os Estados promovam “o estabelecimento de leis, procedimentos, autoridades e instituições especificamente aplicáveis a crianças, que alegadamente teriam infringido a legislação penal ou que sejam acusadas ou declaradas culpadas de ter infringido a legislação penal”. Em 2007, quando o Comitê dos Direitos da Criança ofereceu orientação específica sobre os direitos da criança referentes à justiça juvenil, recomendou que os Estados usassem medidas alternativas, como suspensão do processo e justiça restaurativa para responder às “crianças” em conflito com a lei de forma eficaz que atenda não apenas ao melhor interesse das crianças, mas também aos interesses de curto e longo prazo da sociedade em geral. O Comitê, baseado no princípio da primazia do interesse superior da criança, concluiu que os objetivos tradicionais da justiça criminal, como repressão/retribuição, devem dar lugar aos objetivos de reabilitação e justiça restaurativa no tratamento de crianças e adolescentes ditos infratores.
Um dos marcos da promoção da justiça restaurativa no Brasil foi a edição da Resolução 225/2016 do Conselho Nacional de Justiça que trata da implementação da Política Nacional de Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário. Desde então, tem-se observado que um dos contextos mais propícios para o desenvolvimento das práticas restaurativas é o infantojuvenil, isso porque o Estatuto da Criança e do Adolescente permite a abertura para outras possibilidades de respostas do sistema de justiça frente a prática de atos infracionais. São exemplos ilustrativos os artigos 112, inciso II, 116 e 126. Outrossim, as práticas restaurativas são preconizadas pela Lei 12.594/2012 – SINASE, artigo 35, especialmente nos incisos II e III, e na Resolução 2002/2012 do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, que trata sobre os “Princípios básicos para utilização de programas de justiça restaurativa em matéria criminal”.
A aplicação das práticas restaurativas no atendimento ao adolescente autor de ato infracional busca a sua reinserção social e familiar e o encaminhamento a programas de aprendizagem profissional ou de inserção profissional. Visa-se a reconstrução de vínculos familiares e comunitários e a pacificação social por meio de um diálogo baseado no respeito, na responsabilidade e na cooperação. Trata-se de um novo paradigma no trato de conflitos e situações de violência cuja abordagem observa as necessidades dos envolvidos e a reparação dos danos.
Questiona-se a efetividade das respostas penais no tratamento do adolescente em conflito com a lei, pois o tratamento repressivo não resolve os conflitos em todas as suas dimensões. Como dito, o modelo de justiça restaurativa trabalha prioritariamente com as necessidades dos envolvidos. No que tange à vítima, existe a necessidade primária de fazer justiça, de exigir respostas às suas perguntas diante do acontecido. Por outro lado, no que se refere ao infrator, trabalha-se de forma a identificar o motivo de sua infração e a saber o que levou a cometê-la. Para Juan Carlos Vezzulla3, psicólogo e mediador, quando fala sobre si mesmo e sobre sua situação, e é escutado atentamente, o adolescente sente-se valorizado e respeitado, o que leva a procurar verbalizar suas necessidades e o motivo de ter cometido o ato infracional. Para além do paradigma jurídico-penal, a questão merece ser percebida por uma ótica psicossocial para que a partir disso, se encontrem soluções eficazes para o fenômeno.
Howard Zehr4, estudioso no campo de práticas restaurativas, destaca que o sistema penal é construído historicamente em cima da culpabilidade do infrator, e a vítima, a parte desprezada, não tem poder de expressão, uma vez que o crime é cometido contra o Estado. Isso posto, tem-se um quadro de insatisfação da vítima e de não ressocialização do infrator. De acordo com o autor acima referido, destacam-se cinco pressupostos teóricos do modelo restaurativo:
I. Deve-se considerar o crime / ato infracional como uma ofensa contra as pessoas, e não contra o Estado;
II. A intervenção judicial deve mudar o foco. Em lugar de focalizar a culpabilidade do autor, deve-se inicialmente considerar as necessidades das pessoas envolvidas (autor, vítima e comunidade);
III. O delito não deve mais ser considerado como monopólio do Estado e dos profissionais do Direito, deve-se associar aos cidadãos e à comunidade a construção da resposta penal;
IV. É necessário mudar a concepção da sanção: em vez de considerar a sanção como passado, é preciso vê-la como preparação do futuro. Deve-se substituir os ritos de exclusão judicial pelos ritos de inclusão fundados sobre o respeito à pessoa e o engajamento da comunidade à qual o agressor pertence;
V. É necessário trazer aos atores a responsabilidade de seu conflito: deve-se reconhecer o sofrimento da vítima e responsabilizar o autor da infração, numa ação cooperativa, comunicacional, com a participação direta dos envolvidos.
O autor identifica três modelos de práticas habitualmente utilizadas: a mediação vítima-infrator, as conferências familiares e os círculos restaurativos. A mediação vítima-infrator é uma abordagem voltada para a singularidade das pessoas envolvidas, que são auxiliadas por um mediador na resolução do conflito. Normalmente, são casos encaminhados via delegacia de polícia, Poder Judiciário ou estabelecimentos educacionais. Destaca-se como um dos modelos mais utilizados nas práticas de justiça restaurativa. As conferências familiares, modelo originário da Nova Zelândia, são dirigidas aos jovens, e a participação da família é de fundamental importância. Envolvem um grupo maior: o jovem infrator e seus familiares, a vítima e seus familiares, a polícia, um advogado e um representante da Justiça, que normalmente faz o papel de facilitador. O terceiro modelo é o nominado círculos restaurativos, originário do Canadá, do qual participam a comunidade e as pessoas envolvidas no conflito.
A justiça restaurativa é uma abordagem flexível, inclusiva e colaborativa. Requer voluntariedade de todos os envolvidos. Pode ser adaptada, complementar os sistemas de justiça e ser aplicada em todas as fases do processo, convergindo com ele ou funcionando independente dele.
A adolescência por ser uma fase turbulenta em que o indivíduo está em processo de peculiar desenvolvimento, requer especial atenção não só da família ou do Estado, em seu papel socioeducacional, mas também de toda a sociedade. A responsabilidade pela criminalidade, frise-se, é de toda a sociedade. O viés restaurativo pressupõe responsabilização da comunidade que não pode eximir-se de sua parcela de contribuição somente exigindo respostas severas das instituições e autoridades. Essa conscientização parece ser um ponto de partida para a construção de uma cultura de paz.
1 Em carta à ONU sobre Jacarezinho, governo diz que promove "cultura da paz". Acesso em 16/11/21.
2 Inglaterra aumenta investimento em Justiça Restaurativa. Acesso em 16/11/21.
3 VEZZULLA, Juan Carlos. A mediação de conflitos com adolescentes autores de ato infracional. Florianópolis: Habitus, 2006.
4 ZEHR, Howard. Changing lenses. Anews focus crime and justice. Sscottdale, P.A: Herald Press,1990.