Migalhas Infância e Juventude

O "mito" dos 30% de pensão alimentícia no padrão do Judiciário: como precisamos quebrar paradigmas em busca da proteção integral e prioritária de crianças e adolescentes

O "mito" dos 30% de pensão alimentícia no padrão do Judiciário: como precisamos quebrar paradigmas em busca da proteção integral e prioritária de crianças e adolescentes.

7/12/2021

Em nossa última coluna, Elisa Cruz terminou seu artigo com uma provocação a respeito como direitos e políticas públicas devem, hoje, ser disponibilizadas para a infância e adolescência considerando tecnologias atuais e temas que superam questões clássicas da área envolvendo pobreza e vulnerabilidade. É justamente com ela que iniciamos este texto, buscando tecer uma correlação entre o olhar crítico ao ECA proposto por Elisa atualmente e os casos de pensão alimentícia no Direito de Família que estão sub judice no Judiciário sem nos olvidar da pobreza e da vulnerabilidade com que precisamos analisar a questão.

De fato, o ECA precisa ser pensado e aplicado para além dos temas clássicos e da pobreza e vulnerabilidade, entendendo que a realidade de muitas crianças envolve temas vinculados a outros campos do Direito, tais como regime de convivência com pais residentes em países diferentes, influenciadores digitais mirins, entre outros temas afetos à Infância e Juventude nos dias de hoje, consoante indicado no texto referenciado acima.

Todavia, ainda que o tema dos alimentos esteja mais inserido no âmbito do Direito de Família e da Lei dos Alimentos (lei 5.478/1968), um “clássico” também, é justamente o ECA que vai nortear a aplicação de alguns princípios básicos em Infância e Adolescente durante o trâmite do processo, em especial o da proteção integral e da prioridade absoluta.

Segundo o relatório Justiça em Números, do CNJ (2021), o tema “alimentos” (Direito de Família) está entre os assuntos mais demandados no Judiciário. Ele ocupa a terceira posição dentro da Justiça Estadual, e isso sem dúvida nos demanda maior atenção dentro do Sistema de Justiça.

Aponta o IBGE que aproximadamente 37% dos domicílios brasileiros são chefiados por mulheres, sejam elas as responsáveis pelo lar quando há coabitação por outro(a) cônjuge ou quando assumem tal papel sozinhas e, mesmo nos casos de divórcio com filhos, cf. levantamento do mesmo órgão em 2019, 62,4% das mulheres acabaram ficando com a responsabilidade unilateral e legal de cuidar dos filhos comuns, enquanto os homens representaram 4,1%.

Com base em tais dados pode-se ter a expectativa de que, na maior parte dos processos de alimentos que estão pendentes de julgamento no Judiciário, são crianças e adolescentes representadas por suas mães que ocupam o polo ativo na demanda, como os casos paradigmas abaixo, encontrando-se não só em evidente descaso material por parte dos genitores, como também quiçá emocional.

Tal sobrecarga impacta não só o orçamento doméstico a partir do não recebimento da pensão ou do baixo valor atribuído a ela – além das discussões sobre a tributação da pensão para quem a recebe –, como também, lá na frente em outros campos da vida privada, vai impactar a entrada das mulheres no ambiente de trabalho de forma igualitária e, certamente, reforça padrões de gênero que precisam ser repensados à luz da proteção das minorias e avanços sociais. E é sobre isso que queremos falar nessa coluna.

Muito se fala sobre o “mito” da pensão dos 30% no âmbito acadêmico, discussão protagonizada especialmente por juristas olhando para a lei seca e advogados que defendem a aplicação do binômio necessidade-possibilidade em favor de seus clientes. Nos é claro o senso comum de que não é apenas 30% dos rendimentos líquidos do devedor de alimentos ou do salário-mínimo que a pensão vai incidir, deve ser observado o caso a caso, atendidas às necessidades da criança com proporcionalidade e razoabilidade. Todavia, será que assim ocorre no campo prático?

Em fase de cognição sumária, em casos mais habituais em que as partes se encontram em situação de maior vulnerabilidade, normalmente o patamar que se fixa é o de 30% em cima do salário líquido, em caso de registro, e entre 30 a 40% em cima do salário-mínimo, caso desempregado ou informal. Ao se fixar neste patamar, durante a fase instrutória, é quase instintivo dizer que o ônus de provar que precisa de mais passa a ser da criança ou do adolescente, não havendo qualquer presunção de necessidade ou coisa do tipo. Isto porque “se até agora viveu com tal valor, porque pretender mais agora, passados tantos meses?”, foi o que um colega advogado escreveu em alegações finais certa vez.

A título exemplificativo, veja-se o processo 1001393-86.2021.8.26.0266, publicado no banco de sentenças do E. TJSP, julgado recentemente em julho de 2021. O filho pretendia o recebimento de pensão alimentícia em 01 salário-mínimo (R$ 1.100,00). Os provisórios foram fixados em 30% dos rendimentos líquidos do pai e em 40% do salário-mínimo em caso de desemprego. Isto é, estando o pai desempregado, a criança passaria a receber apenas R$ 440,00, somente incidindo a partir da citação.

Em sua defesa, o pai registral não só questionou a paternidade – sem nunca, aparentemente, ter se voltado contra isso na Justiça, apenas quando demandado a pagar alimentos – e disse não poder pagar alimentos no importe pretendido porque sustenta a esposa, possivelmente adulta, e dois “enteados”. Se negou a prestar assistência material ao filho de forma violenta psicológica e moralmente, tendo coragem de pedir arbitramento da pensão em menos de 15% do salário-mínimo.

Na sentença, mesmo o Magistrado sendo claro no sentido de que o devedor não havia feito prova suficiente sobre seus parcos rendimentos, ou seja, não logrando êxito em demonstrar que não poderia arcar com o quanto pretendido pelo filho (1 SM), foi arbitrada a pensão em 30% dos rendimentos líquidos e, em caso de desemprego, em 25% do salário-mínimo. Disse o Magistrado à mãe e ao menino: R$ 275,00 são suficientes para custear ao menos 50% dos direitos básicos da criança. Nada mais. Teria o juiz, naquele momento, pensado em como menos de R$ 300,00 seriam suficientes?

Não se sabe o que teria constado no parecer do Ministério Público, mas já se pode imaginar, à vista de outro caso também em trâmite o E. TJSP (1029984-11.2020.8.26.0002, também publicado no banco de sentenças), no qual o MP foi contrário ao pedido de pensão da criança (processo no qual os provisórios foram fixados em 50% do salário-mínimo, em caso de desemprego, e em 30% dos rendimentos líquidos, se contratado formalmente).

É evidente que decisões que ignoram a realidade social do nosso país, arbitrando automaticamente 30% de pensão, ignorando ônus da prova ou mesmo a necessidade presumida por parte de crianças e adolescentes de receber apoio material de seus pais, lhes confere o retorno do título de “menor”, porque não é possível imaginar, em pleno 2021, que R$ 330,00 ou R$ 660,00 sejam suficientes para arcar com todos os direitos básicos e fundamentais trazidos pela Constituição Federal, os quais passam a ganhar especial relevância a crianças e adolescentes em razão da prioridade absoluta do Art. 227.

E não é esquecer que a crise financeira assola nosso país e certamente prejudica o poder de colaboração de pais e mães no sustento de seus filhos. Contudo, entendendo que crianças e adolescentes possuem especial proteção legislativa, não podemos aceitar que o “padrão 30%” vigore, ainda mais por parte de um Judiciário completamente desconectado com a realidade do país em que a cesta básica consome, por si só, 65% do salário-mínimo, em que o botijão de gás custa quase R$ 100,00 e que os preços de água e luz são igualmente elevados, o que já demonstra extrema desproporção entre o que se tem arbitrado e o que é realmente necessário para deixar uma criança feliz, saudável, sem fome, estudando e com todos seus direitos garantidos.

Voltando à provocação de Elisa Cruz, não é só na pobreza e na vulnerabilidade que precisamos repensar e aplicar o ECA. O mesmo percentual de 30% se mantém em casos de devedores com alta possibilidade de contribuição, ignorando, também, as necessidades da criança e a real condição financeira do genitor não residente que passa a ter menores responsabilidades a partir do momento em que sua contribuição se esvazia com o pagamento de uma pensão fixa e de pequenas “visitas”.

Assim, esta coluna busca chamar os operadores do Sistema de Justiça para um debate crítico para além do modelo padrão de “30%”, que, haja vista a situação do país e da falta de políticas públicas assistenciais adequadas, mostra-se ainda mais ultrapassado e não condizente com a realidade, devendo o Poder Judiciário estar atento às vulnerabilidades expostas e escancaradas nas mazelas do litígio. É preciso pensar o que há para além de processos postos em cima de nossas mesas de trabalho!

 

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Colunistas

Angélica Ramos de Frias Sigollo é promotora de Justiça em São Paulo. Mestre em Direito pela USP. Pós-graduada pela FGV Direito SP. Integrante do Proinfancia - Fórum Nacional dos membros do Ministério Público da Infância e Adolescência. Professora de Infância e Juventude no CERS - Centro Educacional Renato Saraiva. Professora colaboradora no Law in Action.

Elisa Cruz defensora pública no Rio de Janeiro. Doutora em Direito Civil pela UERJ. Professora na FGV Direito Rio.

Hugo Gomes Zaher é juiz de Direito na Paraíba. Mestre em Direito. 1° vice-presidente da Associação Brasileira de Magistrados da Infância e da Juventude (ABRAMINJ).

Marília Golfieri Angella é advogada atuante em Direito de Família e Social, com ênfase em Infância e Juventude. Professora Colaboradora do FGV Law. Mestranda em Processo Civil pela Faculdade de Direito da USP. Pós-graduada em Direito das Famílias e Sucessões na Universidade Cândido Mendes/IBDFAM. Membro da Comissão de Infância e Juventude no IBDFAM e na OAB/SP.