Migalhas Infância e Juventude

Pensar na infância além da pobreza: como o ECA pode contribuir em debates atuais

Pensar na infância além da pobreza: como o ECA pode contribuir em debates atuais.

30/11/2021

Quando pensamos em direito da criança e do adolescente, invocam-se como temas o acolhimento institucional, adoção, competência das varas da infância, atos infracionais, conselho tutelar e assistência social. De alguma forma, existe uma correlação direta no campo jurídico entre direito da criança e do adolescente e pessoas em situação de vulnerabilidade.

Uma das justificativas possíveis para que essa associação de temas ainda ocorra seja porque não conseguimos superar totalmente as teorias que influenciaram os Códigos de Menores de 1927 e 1979. A manutenção do uso corrente da palavra "menor" em decisões judiciais e outras atividades dos profissionais jurídicos serve como principal exemplo dessa perspectiva negativa sobre a infância pobre e nos faz acreditar que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) tenha sido elaborado e que deva ser aplicado apenas em situações de extrema vulnerabilidade social.

Esse é um erro que precisa ser superado, tanto porque o ECA serve para a proteção de interesses e direitos de toda e qualquer criança ou adolescente como porque manter essa lei com aplicação restrita à situações de vulnerabilidade não irá nos ajudar a solucionar os desafios atuais e futuros na área da infância.

Gostaria de destacar alguns desses desafios e como o ECA pode ajudar a encontrar respostas: o art. 19 do ECA é um dos principais artigos sobre a convivência familiar e comunitária e estabelece que é direito da criança ou adolescente conviver com os pais e a família extensa. Em 1990, data de publicação do ECA, o uso de equipamentos de informática era muito baixo, talvez inexistente, e a taxa de divórcios e recasamentos não tinha o mesmo volume que atualmente. Podemos dizer, assim, que a convivência familiar e comunitária pensada no ECA refere-se à presença física da criança com seus pais e demais parentes.

Hoje, além das novas configurações familiares, com destaque para as famílias recompostas ou mosaico, precisamos considerar os fluxos migratórios interno e externo, que fazem com que pais não residam na mesma cidade (quiçá no mesmo Estado) um dos outros. Outro elemento que deve ser incluído no debate é a organização do trabalho dos pais, uma vez que tem sido percebido o aumento de trabalhadores autônomos e no setor de serviços, onde o horário de trabalho pode ter maior flexibilidade e o regime de convivência apenas em finais de semana não seja adequado.

O que precisamos nos perguntar é: em decisões sobre a convivência entre pais e filhos, essas questões não deveriam ser consideradas? E tecnologias podem ser utilizadas para reforçar ou suprir os obstáculos a essa convivência?

Um segundo tema que tem sido profundamente impactado pela tecnologia e pelas sociais é o trabalho infantil. Já são inúmeras as crianças e adolescentes que possuem perfis em redes sociais e que buscam tornar-se influencers com maior alcance nos seus nichos de mercado.

Se tomarmos a conceituação de trabalho infantil como toda a produção de valor, industrial, em bem material ou digital, é obrigatório reconhecermos que a atividade de influencer deve ser categorizada como trabalho infantil. Mas ao fazermos isso precisamos decidir se esse trabalho é lícito, pois a Constituição proíbe o trabalho de crianças e adolescentes com menos de 14 anos de idade, salvo na área da cultura e diversão, mas que, de outro lado, exige autorização judicial.

Seriam essas restrições aplicáveis ao trabalho digital infantil? E quais seriam as responsabilidades dos pais e das plataformas de redes sociais?

A França deu início a esse debate ao editar lei regulamentando o trabalho de influencers infantis. A lei não proíbe o trabalho infantil, mas obriga que os pais de adolescentes com menos de 16 anos devem pedir uma autorização legal para o trabalho de seus filhos e parcela das remunerações ficam depositadas em conta para serem resgatada pela criança ou adolescente quando completar 18 anos de idade.

Aliás, a falta de debate sobre a regulamentação do trabalho digital infantil diante dos termos da Constituição (que permite a aprendizagem a partir dos 14 anos) é igualmente revelador da discriminação de classe social, pois a aprendizagem foi pensada para a inclusão no trabalho de jovens em vulnerabilidade.

O último ponto de destaque é o uso de tecnologias na educação. A pandemia bem demonstrou que classes mais altas puderam, de alguma forma, manter com regularidade o ensino dos filhos, enquanto populações de menor renda enfrentaram problemas de transporte (quando as escolas reabriram), falta de acesso à internet, falta de equipamentos adequados para assistir as aulas e falta de alimentação adequada. Antonio Gois, colunista do jornal O Globo, ao longo de suas colunas tem provocado reflexões sobre como essas desigualdades na pandemia vão impactar em desigualdades futuras de renda e pobreza, bem como quais métodos e instrumentos precisam ser pensados para reduzir ao máximo a diferença entre classes.

O art. 53 do ECA assegurar como direito da criança a "igualdade de condições para o acesso e permanência na escola", de modo que deveríamos estar discutindo com maior seriedade quais recursos mínimos deveriam ser disponibilizados nas instituições públicas do país de modo a assegurar a efetividade dessa norma jurídica e, na realidade prática, o acesso mais igualitário.

Em síntese, falar sobre criança e adolescente hoje não pode ser apenas o retorno a temas clássicos de infância, os quais devem sim ser enfrentados e resolvidos por políticas públicas adequadas, mas é também quais direitos e políticas públicas devem ser disponibilizadas para a infância e adolescência.

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Colunistas

Angélica Ramos de Frias Sigollo é promotora de Justiça em São Paulo. Mestre em Direito pela USP. Pós-graduada pela FGV Direito SP. Integrante do Proinfancia - Fórum Nacional dos membros do Ministério Público da Infância e Adolescência. Professora de Infância e Juventude no CERS - Centro Educacional Renato Saraiva. Professora colaboradora no Law in Action.

Elisa Cruz defensora pública no Rio de Janeiro. Doutora em Direito Civil pela UERJ. Professora na FGV Direito Rio.

Hugo Gomes Zaher é juiz de Direito na Paraíba. Mestre em Direito. 1° vice-presidente da Associação Brasileira de Magistrados da Infância e da Juventude (ABRAMINJ).

Marília Golfieri Angella é advogada atuante em Direito de Família e Social, com ênfase em Infância e Juventude. Professora Colaboradora do FGV Law. Mestranda em Processo Civil pela Faculdade de Direito da USP. Pós-graduada em Direito das Famílias e Sucessões na Universidade Cândido Mendes/IBDFAM. Membro da Comissão de Infância e Juventude no IBDFAM e na OAB/SP.