Migalhas Infância e Juventude

Pandemia e riscos às meninas: casamento infantil

Pandemia e riscos às meninas: casamento infantil.

4/5/2021

Em 08 de março de 2021, a UNICEF emitiu informação de que 10 milhões a mais de casamentos infantis – entenda-se por casamento não apenas as celebrações oficiais como as uniões de fato, não formalizadas – podem ocorrer antes do final da década, ameaçando anos de progresso na redução desse fenômeno. A situação no Brasil já era grave e colocava o país em 4º lugar no mundo dentre os países com maior quantidade de casamentos infantis: dados de Instituto Promundo, Plan Internacional Brasil e Universidade Federal do Pará (UFPA) o Brasil contavam 1,3 milhão de mulheres até 18 anos de idade casadas ou em uniões estáveis (informais) em 2015, sendo 877 mil com até 15 anos de idade e em relatório publicado em junho de 2020, o Fundo de População das Nações Unidas (UFNPA) apontava que cerca de 1 em cada 4 mulheres se casa ou constitui união estável antes dos 18 anos de idade no Brasil, numa taxa percentual de 26% de conjugalidade quando a média mundial é de (ainda altos) 20%.

As pesquisas elencam cinco causas principais do casamento infantil: (1) o desejo de um membro da família, em função de uma gravidez indesejada, de proteger a reputação da menina ou da família e para assegurar a responsabilidade do homem de "assumir" ou cuidar da menina e do bebê potencial; (2) o desejo de controlar a sexualidade das meninas e limitar comportamentos percebidos como "de risco", associados à vida de solteira, tais como relações sexuais sem parceiros fixos e exposição à rua; (3) o desejo das meninas e/ou membros da família de ter segurança financeira; (4) uma expressão da autonomia das meninas e um desejo de sair da casa de seus pais, pautado em uma expectativa de liberdade, ainda que dentro de um contexto limitado de oportunidades educacionais e laborais, bem como de experiências de abuso ou controle sobre a mobilidade das meninas em suas famílias de origem; (5) o desejo dos futuros maridos de se casarem com meninas mais jovens (consideradas mais atraentes e de mais fácil controle do que as mulheres adultas) e o seu poder decisório desproporcional em decisões maritais.

Com a pandemia e o encerramento das relações sociais aos núcleos mais privados, associado ao agravamento das condições de subsistência e emprego e também ao menor acesso aos serviços de educação, saúde e assistência, o impacto na vida de crianças e adolescente mulheres, majoritariamente pobres, tende a se agravar.

As principais consequências para a infância serão maior taxa de evasão escolar, riscos de transtornos mentais, violência de gênero, exclusão social e gravidez precoce com riscos à saúde da gestante, ao nascituro e ao recém-nascido.

A origem das altas taxas de casamento infantil no Brasil decorre, em primeiro lugar, da redação do art. 1.517 do Código Civil de 2002, que, seguindo o Código de 1916, permitia o casamento de pessoas com menos de 16 anos, sem instituir nenhum patamar mínimo.

Esse cenário foi alterado com a lei 13.811/2019, que passou a proibir o casamento de crianças e adolescentes com menos de 16 anos de idade. Ainda assim, ainda permanece a possibilidade de casamento entre 16 e 18 anos, ao contrário do que ONU, UNICEF e outros organismos internacionais defendem nem enfrenta a possibilidade da existência de uniões estáveis entre crianças e adolescentes e quais as formas de proteção.

A permissividade legal do casamento infantil descumpre as bases fundantes do direito da infância tal como previsto no art. 227 da Constituição da República e no art. 3º do Estatuto da Criança e do Adolescente porque não atende ao princípio do melhor interessa.

Veja-se, crianças e adolescentes são pessoas ainda em desenvolvimento físico, psíquico e social e a conjugalidade precoce tem potencial concreto de interferir negativamente nesse desenvolvimento, com impactos sobre fertilidade, natalidade, mortalidade infantil, desigualdade social, econômica e laborativa e pobreza. Sob a perspectiva coletiva, o Banco Mundial estima que a proibição da conjugalidade infantil até 2030 poderia gerar 500 bilhões em benefícios mundiais e redução de custos de 100 bilhões por mortes infantis e má nutrição.

Mas, é importante destacar que a conjugalidade infantil não afeta de forma igual todas as crianças, havendo marcadores distintivos de gênero e classe. Quanto ao gênero, a conjugalidade infantil afeta muito mais mulheres do que homens no Brasil. Proporcionalmemente, a taxa de casamentos formais em 2018 pelo IBGE é de 0,056% de homens do total de mulheres.

Dentro desse cenário, a edição da lei 13.811/2019 atende em parte à proteção integral e ao princípio do melhor interesse da criança, pois proíbe a realização de casamento de crianças e adolescentes com menos de 16 anos de idade. O avanço na  proteção de direitos infantojuvenis é apenas parcial, porque adolescentes entre 16 e 18 anos de idade tem capacidade para o casamento, desde que haja autorização dos representantes legais ou suprimento judicial da autorização.

Um segundo problema não abordado pela lei é a falta de previsão sobre a consequência do casamento de pessoas com menos de 16 anos de idade realizado após o início da vigência da lei. Seria esse ato jurídico nulo ou anulável? Não há debate no Direito Civil nem no Direito da Infância, permanecendo em aberta a solução jurídica.

Ou seja, a lei 13.811/2019 deve ser tomada como um ponto de mudança jurídica na compreensão da conjugalidade infantil e servir na adoção mais concreta de políticas públicas para sua redução, o que envolve medidas de assistência social, moradia e de gênero.

A vedação de casamento e de união estável em que criança ou adolescente com menos de 16 anos de idade constitui uma etapa desse avanço, pois demonstra o compromisso jurídico com a efetiva proteção integral de crianças e adolescentes. A proibição legal é, contudo, insuficiente para, isoladamente, alterar o cenário atual em que o Brasil é o quarto país no mundo com maiores índices de conjugalidade infantil. A lei 13.811/2019 estabelece um marco de proteção, ao qual deve ser conjugado esforços socioassistenciais e que favoreçam esse grupo em vulnerabilidade, especialmente as mulheres, que são o gênero que se submetem a essa conjugalidade e suas prejudiciais consequências.

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Colunistas

Angélica Ramos de Frias Sigollo é promotora de Justiça em São Paulo. Mestre em Direito pela USP. Pós-graduada pela FGV Direito SP. Integrante do Proinfancia - Fórum Nacional dos membros do Ministério Público da Infância e Adolescência. Professora de Infância e Juventude no CERS - Centro Educacional Renato Saraiva. Professora colaboradora no Law in Action.

Elisa Cruz defensora pública no Rio de Janeiro. Doutora em Direito Civil pela UERJ. Professora na FGV Direito Rio.

Hugo Gomes Zaher é juiz de Direito na Paraíba. Mestre em Direito. 1° vice-presidente da Associação Brasileira de Magistrados da Infância e da Juventude (ABRAMINJ).

Marília Golfieri Angella é advogada atuante em Direito de Família e Social, com ênfase em Infância e Juventude. Professora Colaboradora do FGV Law. Mestranda em Processo Civil pela Faculdade de Direito da USP. Pós-graduada em Direito das Famílias e Sucessões na Universidade Cândido Mendes/IBDFAM. Membro da Comissão de Infância e Juventude no IBDFAM e na OAB/SP.