Migalhas Infância e Juventude

A invisibilidade "tá on": Uma breve análise sobre a realidade dos serviços de acolhimento institucional na pandemia da Covid-19

A invisibilidade "tá on": Uma breve análise sobre a realidade dos serviços de acolhimento institucional na pandemia da Covid-19.

30/3/2021

As discussões em torno desta coluna Migalhas Infância e Juventude sempre me deixam inquieta ao escrever. O último texto, publicado pelo Hugo Zaher, havia me despertado interesse de continuar a discussão sobre técnicas adequadas de solução de conflito na infância e juventude, muito por conta das discussões que travei com a Elisa Cruz sobre a voz da criança no processo.

Entretanto, recentemente, recebi a seguinte mensagem: "estamos apenas com 6 orientadores na casa, está bem complicado porque os que estão afastados, estão com suspeita". Era uma das técnicas de um serviço de acolhimento institucional de crianças e adolescentes (SAICA) aqui da Cidade de São Paulo nos relatando as dificuldades nesta Fase Emergencial. Eu não podia deixar essa mensagem passar em branco e é com ela que começo a discussão da nossa coluna esta semana, pincelando novas informações sobre o que escrevi com a Angélica Sigollo ano passado.

De início, destaco que, no momento da publicação deste texto, há em torno de 30.988 crianças e adolescentes acolhidos no Brasil, segundo estatísticas publicadas pelo CNJ a respeito do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA), sendo essa é a população estimada de aproximadamente  79% dos Municípios brasileiros. Quando pensamos dessa forma, que várias cidades do Brasil poderiam ser habitadas apenas e tão somente por crianças e adolescentes em situação de acolhimento, o número assusta e demanda um olhar cuidadoso do Poder Público e de toda a sociedade, considerando a responsabilidade que a própria CF nos impõe em seu art. 227.

Ao observarmos, então, esta enorme população de crianças e adolescentes em serviços de acolhimento e pensarmos na dinâmica que a pandemia do Covid-19 nos impôs, podemos imaginar boa parte dos impactos negativos que o isolamento social provocou nos abrigos sob vários vieses, principalmente no tocante à saúde física e mental, educação e convivência familiar e comunitária, ainda mais considerando os apontamentos técnicos publicados pela FIOCRUZ de que a situação da saúde infanto-juvenil no Brasil por conta da pandemia é pior do que em outros países (Min. Saúde, 2020).

Segundo o "Levantamento Nacional dos Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes em tempos de Covid-19", elaborado pelo NECA, FICE Brasil e Movimento Nacional Pró-Convivência Familiar e Comunitária, com base em dados coletados entre maio e julho de 2020, dos 1.327 serviços participantes da pesquisa, 268, equivalente a 20,2% do total, registraram a ocorrência de algum caso de Covid-19.

Parece pouco, mas, no mesmo período (julho/2020), uma pesquisa publicada pelo Estadão revelava que o país tinha 1% da população infectada pelo vírus. As altas porcentagens iniciais, assim, já evidenciavam a necessidade de que houvesse maior controle e atenção em relação à saúde dos acolhidos e funcionários dos serviços de acolhimento, pois o vírus estava circulando com facilidade nos serviços de acolhimento.

Na cidade de São Paulo, o Ministério Público Estadual, igualmente no mesmo período da pesquisa acima (junho/2020), publicou um relatório sobre a situação dos SAICA's durante a pandemia. Além de indicar que, dos serviços consultados, 13,58% do total havia "registrado ter algum acolhido e/ou funcionário com sintomas ou diagnóstico de COVID-19", também retratou outros desafios tais como (i) o aumento de ansiedade nos acolhidos e funcionários; (ii) a desorganização da vida escolar das crianças; e (iii) a verba insuficiente destinada aos serviços para manejo e atendimento das necessidades extraordinárias.

Ademais, segundo o mesmo relatório ministerial, os SAICA's sem convênio com a Prefeitura da Cidade de São Paulo enfrentavam também um distanciamento da rede pública de saúde, ficando isolados nos cuidados com a pandemia, o que pode ter prejudicado demasiadamente a proteção integral e prioritária da saúde das crianças e adolescentes inseridos nestes serviços. Os dados, contudo, tanto na esfera nacional quanto estadual, ao que se tem conhecimento, pararam de serem produzidos ou ao menos publicados, não havendo levantamentos disponíveis sobre a realidade até o fim de 2020.

Diante de um cenário desanimador quanto ao número de infectados e à situação geral dos abrigos, quando analisamos tais dados olhando para os direitos básicos das crianças e adolescentes acolhidos – aqui deixado de citar os graves efeitos nos trabalhadores, também – igualmente o sentimento que vem é de revolta e tristeza, mormente porque são crianças em risco que merecem nossa especial atenção.

O citado relatório do NECA aponta que a extensa maioria dos acolhidos que foram infectados (91%) permaneceram em isolamento nos próprios serviços (p. 93) e, sendo conhecidas as dificuldades enfrentadas, tal como a precariedade das estruturas físicas, a falta de espaço, de renda e de base de apoio, este isolamento possivelmente trouxe dificuldades ímpares na organização da rotina da casa.

Sobre este ponto, veja-se que a partir do dado produzido pelo NECA de que, quando houve novo acolhimento infanto-juvenil, "a maioria dos serviços respondentes não informou se realizou ou não a quarentena (61%), embora a recomendação fosse para se realizar o isolamento preventivo por 14 dias" (p. 109). Ora, se uma criança ou adolescente vindo de fora, sem qualquer laço afetivo com os demais moradores do abrigo e funcionários, não foi devidamente isolado, imagine um que já está integrado ao grupo, com afinidades e rotinas conjuntas etc.?

Além da saúde, vejamos o direito à convivência familiar e comunitária. Durante o período de isolamento social, a maior parte dos pais e familiares que estavam realizando visitas periódicas aos SAICA's e/ou pegando os infantes para finais de semana prolongados, passaram a não poder mais frequentar os abrigos em razão das políticas de contingenciamento do vírus (17,8%; NECA, p. 132), de modo que os contatos passaram a ser majoritariamente feitos de forma remota (59,7%).

Lembramos que, no início da pandemia, havia sido editada a Recomendação Conjunta 01/2020 pelo Conselho Nacional de Justiça, Conselho Nacional do Ministério Público e Ministérios da Cidadania e da Mulher, Família e dos Direitos Humanos (RC 01/2020), inclusive com a orientação de que esta reintegração familiar definitiva fosse priorizada, mas não se tem conhecimento se foram produzidos dados sobre a efetividade desta medida.

Ainda, o relatório aponta que os outros 9% dos infectados foram ou inseridos em isolamento domiciliar com a família nuclear ou extensa, ou em residências de funcionários dos serviços, como orientava a RC 01/2020 sobre a figura do "cuidador residente" (um funcionário que passasse a residir no SAICA, o que também não se tem conhecimento de uma prática exitosa) ou a possibilidade da permanência das crianças na residência dos funcionários.

Sobre este último item, aponta o NECA que os funcionários, famílias acolhedoras ou padrinhos afetivos “não tiveram qualquer pagamento adicional, a não ser a oferta de auxílio para as despesas gerais de alimentação e cuidados de higiene para com as crianças e adolescentes acolhidos” (p. 94) e não foram considerados os impactos desta medida na saúde mental das crianças, vez que a retomada à "normalidade" com o retorno das crianças aos SAICA's, poderá gerar novos rompimentos de vínculos afetivos, fundamentais ao seu desenvolvimento pleno, podendo deixar sequelas psicológicas.

É inevitável, assim, não olharmos para a invisibilidade que acomete as crianças e adolescentes que estão morando em abrigos de forma temporária – seja os que estão aguardando a possibilidade de retorno à família biológica, seja os que estão já em processo de destituição do poder familiar e adoção –, e tal invisibilidade, que já era extremamente negativa em condições “normais”, inclusive no tocante à preservação de direitos básicos fundamentais destas crianças, se agrava durante a pandemia como mostram os dados empíricos produzidos até o momento, principalmente quando olhamos para saúde, física e mental, educação e convivência familiar e comunitária.

São reflexões que geram outras reflexões, especialmente porque crianças e adolescentes em serviços de acolhimento, em especial os institucionalizados, deveriam ser alvo de políticas públicas prioritárias e efetivas em razão de sua situação de risco e da menoridade, mas são aqueles que sofrem os mais severos e profundos impactos da desorganização social do país neste momento delicado que vivemos.

A pandemia escancara problemas antigos, fere direitos fundamentais básicos de crianças e adolescentes e fomenta novas percepções necessárias para a constante redução da institucionalização no Brasil, como determina o próprio ECA há mais de 30 anos. A invisibilidade "tá on", infelizmente.

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Colunistas

Angélica Ramos de Frias Sigollo é promotora de Justiça em São Paulo. Mestre em Direito pela USP. Pós-graduada pela FGV Direito SP. Integrante do Proinfancia - Fórum Nacional dos membros do Ministério Público da Infância e Adolescência. Professora de Infância e Juventude no CERS - Centro Educacional Renato Saraiva. Professora colaboradora no Law in Action.

Elisa Cruz defensora pública no Rio de Janeiro. Doutora em Direito Civil pela UERJ. Professora na FGV Direito Rio.

Hugo Gomes Zaher é juiz de Direito na Paraíba. Mestre em Direito. 1° vice-presidente da Associação Brasileira de Magistrados da Infância e da Juventude (ABRAMINJ).

Marília Golfieri Angella é advogada atuante em Direito de Família e Social, com ênfase em Infância e Juventude. Professora Colaboradora do FGV Law. Mestranda em Processo Civil pela Faculdade de Direito da USP. Pós-graduada em Direito das Famílias e Sucessões na Universidade Cândido Mendes/IBDFAM. Membro da Comissão de Infância e Juventude no IBDFAM e na OAB/SP.