Migalhas Infância e Juventude

O (necessário) protagonismo do Sistema de Justiça na proteção à primeira infância

O (necessário) protagonismo do Sistema de Justiça na proteção à primeira infância.

17/11/2020

Os primeiros seis anos de vida recebem do nosso ordenamento jurídico especial atenção, com vistas a garantir o desenvolvimento integral da pessoa nesse período sensível conhecido como primeira infância, diante dos estudos que demonstram que as habilidades desenvolvidas dos zero aos seis anos são o alicerce para o desenvolvimento de habilidades mais complexas no futuro.

O Marco Legal da Primeira Infância (MLPI) – Lei 13.257/16 – reforça a proteção de crianças nessa faixa etária, na esteira do artigo 227 da Constituição Federal, do Estatuto da Criança e do Adolescente e da Convenção sobre os Direitos da Criança, implicando a família, a sociedade e o Estado na responsabilidade pela promoção dos direitos fundamentais na tenra idade.

Essa ‘janela de oportunidade’ para influxos positivos na vida da pessoa deve ser encarada com zelo e o Sistema de Justiça tem um papel importante nessa promoção de direitos. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) coordena desde 2019 o Pacto Nacional pela Primeira Infância, proporcionando diversas ações para engajar advogados, defensores públicos, delegados de polícia, magistrados, promotores e outros profissionais nessa luta pela construção de uma Justiça mais sensível, acessível e amigável a crianças e adolescentes.

Mais recentemente, o Plano Nacional pela Primeira Infância (PNPI) lançado em 2010 pela Rede Nacional Primeira Infância (RNPI), aprovado pelo CONANDA naquele ano, teve sua atualização publicada há algumas semanas, estendendo sua vigência até 2030 – coincidindo assim com a agenda dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da ONU –, franqueando a participação do Sistema de Justiça na revisão desse importantíssimo documento, prevendo, ainda, capítulo específico sobre o ‘Sistema de Justiça e a Criança’.

Essa visibilidade dada pela RNPI e o conjunto de ações coordenado pelo CNJ chamam a atenção da comunidade jurídica de como o Sistema de Justiça tem se voltado à melhoria de sua infraestrutura na promoção dos interesses específicos dessa faixa etária, permitindo inferir pelo menos ONZE pontos a respeito desse protagonismo que precisam se manter em evidência.

1. DIREITO À PARTICIPAÇÃO. O artigo 12 da Convenção sobre os Direitos da Criança assegura a toda criança o direito à participação efetiva no Sistema de Justiça, como expressão máxima da Doutrina da Proteção Integral, observadas as especificidades da idade. Essa proteção é reforçada no Marco Legal da Primeira Infância ao tratar em diversas passagens de seu art. 4° no que toca à cidadania que deve ser deferida à criança, realizando-se a escuta por meio de profissional qualificado.

2. FOCO NA INTERSETORIALIDADE. O Sistema de Justiça tem papel importante na articulação intersetorial com os demais órgãos que integram o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente, com base no art. 88, V, VI e IX, do Estatuto. O MLPI reforça a necessidade da atuação intersetorial e permite extrair de seu art. 6° essa missão precípua do Poder Judiciário, da Defensoria, do Ministério Público, da Advocacia e de outros segmentos.

3. ENTREGA PROTEGIDA PARA ADOÇÃO. O MLPI inseriu no Estatuto (art. 13, §1°) a exigência de que gestantes e mães de recém-nascidos que tenham interesse na realização da entrega voluntária para adoção sejam encaminhadas ao Poder Judiciário, sem constrangimento, o que reclama estrutura adequada das Unidades Judiciárias com essa competência para o atendimento humanizado dessas mulheres, e a articulação entre os demais órgãos para a proteção dos interesses da criança.

4. IMPACTOS DO ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL. O acolhimento institucional (art. 101, VII e §§, do Estatuto) deve ser definitivamente encarado como medida excepcional e temporária, considerando os impactos negativos da institucionalização, em especial na primeira infância, exigindo acima de tudo o engajamento por meio de audiências concentradas de reavaliação (art. 19, §1°, do Estatuto) para desenvolvimento das metas inseridas no Plano Individual de Atendimento da pessoa acolhida, seja para reintegração familiar ou, em último caso, para encaminhamentos voltados à colocação na família adotiva.

5. FOMENTO AO ACOLHIMENTO FAMILIAR. O Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária, que está em fase de reavaliação, aponta a necessidade do fomento às famílias acolhedoras no País, destacando o art. 34, §1°, do Estatuto sua preferência em relação ao acolhimento institucional, acaso necessário o afastamento da família de origem. Isso porque a família acolhedora tem potencialidades para promover interações afetivas e individualizadas necessárias para o desenvolvimento integral da criança, notadamente dos zero aos seis anos de idade, devendo o Sistema de Justiça levar ao palco intersetorial a sensibilização da rede de proteção a respeito das vantagens desse instituto, para fins de implementação.

6. DEPOIMENTO ESPECIAL. Diversos segmentos da Justiça, a exemplo de Varas com competência criminal, infantoadolescente, de família e de violência doméstica, devem se aparelhar estruturalmente para realização do depoimento especial de crianças e adolescentes (Lei 13.431/17), e também construir meios de cooperação interna para compartilhamento de provas (art. 6° da Res. 299/2019 do CNJ. Nessa linha, aquela exigência se estende tanto às salas de depoimento especial, quanto à capacitação de entrevistadores forenses, devendo ser também os profissionais do direito capacitados no contexto do Protocolo Brasileiro de Entrevista Forense, a fim de afastar qualquer margem de revitimização.

7. ALIENAÇÃO PARENTAL. A lei 12.318/10, que dispõe sobre alienação parental, visa coibir a conduta de genitores ou responsáveis voltadas ao prejuízo das relações com outro ente familiar, o que pode resvalar na objetificação da criança. Com efeito, verifica-se acima de tudo a necessidade de se aparelharem as unidades judiciárias com competência de família com equipes multiprofissionais, para subsidiar o operadores na identificação de eventual interferência negativa na formação psicológica da criança ou do adolescente.

8. COMBATE AO SUBREGISTRO. Outro eixo apontado no PNPI diz respeito às ações voltadas à diminuição dos índices do subregistro, uma vez que o registro civil é o documento básico que adjudica à pessoa o exercício de diversos direitos fundamentais. Ressalte-se a ação promovida intersetorialmente na Paraíba pelo Poder Judiciário, Ministério Público, Segurança Pública dentre outras instituições, intitulada ‘Cidadania de Primeira’, cujo objetivo foi o fomento na obtenção da identidade civil já na primeira infância, reforçando a proteção integral da criança no exercício primário da cidadania e também a erradicação do subregistro.

9. CRIANÇAS COM DEFICIÊNCIA. As crianças com deficiência na primeira infância se enquadram no conceito de pessoa especialmente vulnerável, conforme o art. 5°, parágrafo único, da lei 13.146/15, devendo o Sistema de Justiça garantir meios para a superação de barreiras para acesso aos direitos fundamentais. Destaque-se a prioridade no Sistema Nacional de Adoção para que sejam inseridas em família adotiva, conforme art. 50, §15, do Estatuto incluído pela lei 13.509/17, caso estejam aptas para adoção, podendo se valer de programas de busca ativa para  busca de pessoas interessadas na adoção.

10. JUSTIÇA RESTAURATIVA. A troca de lentes a que se refere Howard Zehr no contraponto entre a Justiça Tradicional e a Justiça Restaurativa também pode desnudar o necessário fomento intersetorial do Sistema de Justiça na perspectiva da res. 225/16 do CNJ, no tocante a práticas restaurativas já na primeira infância, sobretudo nas iniciativas de desenvolvimento no âmbito escolar, proporcionando desde a tenra idade o itinerário e o desenvolvimento da pessoa à luz da Cultura de Paz na contextualização e transformação de conflitos/relações.

11. PRISÃO DOMICILIAR. Os integrantes do Sistema de Justiça não podem perder de vista a questão de fundo ligada ao direito fundamental à convivência familiar e comunitária da criança com os pais e mães que são alvos da pretensão persecutória estatal, o que foi reforçado pelo MLPI (art. 41) ao garantir o direito à substituição da prisão preventiva pela prisão domiciliar da gestante, da mulher com filho de até doze anos de idade incompletos e do homem, nesta mesma circunstância, caso seja o único responsável pelos cuidados do filho (art. 318, IV, V e VI, do CPP). Os HCs Coletivos 143.461/SP165.704/DF estabelecem a obrigatoriedade da conversão da custódia nessas hipóteses, observadas as exceções previstas no art. 318-A do CPP.

Dessa forma, interessante observar como no PNPI o Sistema de Justiça dialoga com os diversos objetivos insculpidos no documento, dentre eles o mais sensível dos capítulos, que trata do direito à beleza (pg. 205 e ss.).  Dostoiéviski é referenciado no documento com a célebre frase ‘a beleza salvará o mundo’, devendo o Sistema de Justiça fazer parte dessa construção para se transformar e, assim, humanizar o acesso à justiça para a criança na primeira infância, proporcionando conexões que propugnem seu desenvolvimento integral.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Colunistas

Angélica Ramos de Frias Sigollo é promotora de Justiça em São Paulo. Mestre em Direito pela USP. Pós-graduada pela FGV Direito SP. Integrante do Proinfancia - Fórum Nacional dos membros do Ministério Público da Infância e Adolescência. Professora de Infância e Juventude no CERS - Centro Educacional Renato Saraiva. Professora colaboradora no Law in Action.

Elisa Cruz defensora pública no Rio de Janeiro. Doutora em Direito Civil pela UERJ. Professora na FGV Direito Rio.

Hugo Gomes Zaher é juiz de Direito na Paraíba. Mestre em Direito. 1° vice-presidente da Associação Brasileira de Magistrados da Infância e da Juventude (ABRAMINJ).

Marília Golfieri Angella é advogada atuante em Direito de Família e Social, com ênfase em Infância e Juventude. Professora Colaboradora do FGV Law. Mestranda em Processo Civil pela Faculdade de Direito da USP. Pós-graduada em Direito das Famílias e Sucessões na Universidade Cândido Mendes/IBDFAM. Membro da Comissão de Infância e Juventude no IBDFAM e na OAB/SP.