Migalhas Infância e Juventude

A proibição de trabalho infantil no Brasil: razões e realidade

A proibição de trabalho infantil no Brasil: razões e realidade.

3/11/2020

Estamos em novembro de 2020. Faltam cinco anos para que o Brasil cumpra a diretriz 8.7 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU e adote "medidas imediatas e eficazes para erradicar o trabalho forçado, acabar com a escravidão moderna e o tráfico de pessoas, e assegurar a proibição e eliminação das piores formas de trabalho infantil, incluindo recrutamento e utilização de crianças-soldado, e até 2025, acabar com o trabalho infantil em todas as suas formas".

5 anos. Para acabar com o trabalho infantil. Em todas as suas formas.

Como estamos até agora?

O texto dessa coluna foi pensado a partir da notícia veiculada no Informativo 994 do STF, em que um dos julgamentos virtuais concluídos pelo Plenário da Corte tem o título "CF, art. 7º, XXXIII: EC 20/1998 e idade mínima para o trabalho".

Em pesquisa sobre o julgamento, podemos saber que se trata da ADI 2096/DF, ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Indústria (CNTI) contra o aumento da idade mínima para o trabalho de 14 para 16 anos de idade, promovida pela EC 20/1998, que modificou a redação do art. 7º, inciso XXXIII, da Constituição da República de 1988. Da leitura da petição inicial, um trecho se destaca dentre os fundamentos do pedido de inconstitucionalidade do texto da emenda constitucional: "Menores vadios. Menores desocupados. Menores carentes. Menores delinquentes. Este é o drama da sociedade brasileira, que, está a exigir normas protetoras do menor, mas de tal forma que não venha a impeli-los a uma situação desastrosa sob qualquer enfoque que se lhe dê".

De modo a que não haja dúvidas, o que esse trecho da petição inicial da ADI 2096/DF traduz é a defesa da possibilidade do trabalho infantil a partir dos 14 (catorze) anos de idade de modo a "proteger" a infância carente, vadia ou delinquente.

Para responder à pergunta acima proposta, 2 outras perguntas nos parecem ser respondias previamente. A primeira, envolve os argumentos da ADI 2096/DF e os erros que envolve. A segunda pergunta, vai responder mais especificamente o porquê deve se erradicar o trabalho infantil e, então, a situação brasileira nesse momento.

Afigura-se "tentador" afirmar que o trabalho pode ser uma ressignificação para a infância, de modo a ocupar "espaços vazios" ou lacunas criadas pelas ausências de políticas públicas de educação, lazer, esportes e cultura. A frase comumente falada no Rio de Janeiro que poderia resumir essa ideia seria: "mente vazia, oficina do diabo". Não sei as origens, e os limites dessa coluna me impedem de melhor compreender essa frase. Ainda assim, ela está usualmente associada à ideia de que é preferível que crianças e adolescentes trabalhem do que fiquem sem ocupação e façam "coisas erradas".

Apostando que essa frase popular tem origem antes de 1988, o erro da frase e da ideia que ela sintetiza está no fato de que a infância foi profundamente modificada no Brasil desde 1988. A origem dessa mudança, internamente, é a Constituição da República de 1988 (arts. 226 e 227), que adotou a doutrina da proteção integral e o princípio do melhor interesse da criança; internacionalmente, a mudança está justificada nas discussões na ONU, realizadas desde 1977, e que culminaram na aprovação em 1989 da Convenção sobre Direitos da Criança, que adota os mesmos princípios constitucionais de 1988.

O processo constituinte brasileiro que ocorreu entre 1985 e 1988 valeu-se profundamente das discussões travadas na ONU e incorporou no texto constitucional a ideia de que crianças e adolescentes são a) sujeitos de direito ou pessoas com integralidade de direitos; b) possuem características especiais em razão do grau de desenvolvimento que exigem proteção especial; c) devem ter prioridade nas decisões públicas ou privadas que interferem nos seus interesses. Essa etapa, que culmina com a aprovação do ECA em 1990, representa a viragem da doutrina da irregularidade de menores e o caráter tutelar da infância para a doutrina da proteção integral, segundo a qual haveria a possibilidade de a criança ser sujeito-cidadã ou, nas palavras de Josiane Rosi Petry Veronese, que crianças e adolescentes passassem da "condição de menores, de semicidadãos, para a de cidadãos”, construindo o “paradigma de sujeitos, em oposição à ideologia e de toda uma práxis que coisificava a infância".

A adoção da doutrina da proteção integral e do princípio do melhor interesse pela Constituição de 1988 e pelo ECA demonstra o erro jurídico na argumentação da ADI 2096/DF, uma vez que nos fundamentos da petição inicial a criança é instrumentalizada como ponto de apoio para a superação do estado de pobreza da família. A leitura da peça judicial revela que não há preocupação com a infância em si considerada, tampouco com os direitos da criança-trabalhadora, senão em como essa criança poderia servir de etapa ou mecanismo para a sobrevivência familiar. Dito de outra forma, não se preocupa com a melhoria das condições de vida da criança, mas no uso mercadológico e de geração de (baixíssima) renda ela pode ter em relação à família. Por isso, e na medida em que conflita com o texto constitucional do art. 227 da Constituição da República de 1988 ao tornar a criança um instrumento de benefício alheio, a ADI mereceria ser improvida.

Embora a mudança do modelo tutelar para a doutrina da proteção integral tenha ocorrida entre 1988/1990 no Brasil, em 1973 a Organização Internacional do Trabalho (OIT), órgão vinculado a ONU, aprovou a Convenção n. 138, que definiu como idade mínima para o trabalho a idade da escolarização compulsória, de no mínimo 15 anos de idade, e que seria progressivamente aumentada pelos países signatários. O Brasil aprovou a Convenção em 2001, a ratificou em 2001 e a promulgou com vigência nacional em 2002, o que significa dizer que em 1998, o país já caminhava em direção da norma internacional, mesmo sem a sua internalização.

Paralelamente a essa norma, foi incorporada ao direito brasileiro a Convenção n. 182 da OIT, sobre as piores formas de trabalho infantil. Esse tratado detinha maior urgência na sua implementação, tanto que passou a vigorar a partir de 2001, e objetivava implementar medidas internacionais para a extinção de formas de trabalho extremamente danosas à criança e ao adolescente, dentre elas a escravidão e as práticas análogas à escravidão, trabalho forçado e compulsório, utilização de crianças para fins de prostituição e pornografia, produção e tráfico de entorpecentes e atividades com prejuízo à saúde, segurança e moral da criança. Nesse contexto de combate às piores formas de trabalho infantil, é importante destacar a aprovação da lei 12.015/2009, que aumentou a escala penal do crime de corrupção de menores no art. 244-B do ECA.

As razões porquê o trabalho infantil deve ser proibido podem ser resumidas em 3 grupos, de acordo com o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI): a) físicas: o trabalho infantil causa fadiga excessiva, problemas respiratórios, doenças causadas por agrotóxicos, lesões e deformidades na coluna, alergias, distúrbios do sono, irritabilidade; b) psicológicas: abusos físicos, sexuais e emocionais são os principais fatores de adoecimento das crianças e adolescentes trabalhadores, fobia social, isolamento, perda de afetividade, baixa autoestima e depressão; c) educacionais: baixo rendimento escolar, distorção idade-serie, abandono da escola e não conclusão da Educação Básica, aumento potencial de menores seu salários na fase adulta e manutenção dos ciclos de pobreza e exclusão social.

Segundo relatório da ONG Repórter Brasil, especializada em direitos trabalhistas, houve avanços na redução do trabalho infantil no Brasil, fruto de medidas conjuntas do poder público, da sociedade civil e de organizações não-governamentais, mas persiste uma cultura residual de aceitação do trabalho infantil em que as políticas até então efetivas não conseguem penetrar. Mencionada no relatório da Repórter Brasil, a secretária-executiva do FNPETI destaca que crianças e adolescentes em idade escolarização deveriam "cumprir a jornada escolar, ser pontual, realizar atividades, fazer as tarefas e estudar (...) em condições que favorecem a formação do caráter". Na forma como expressam Michael Freedman e John Eekelar, isso significaria afirmar que crianças e adolescentes têm direito a ter o futuro em aberto e a construírem os seus futuros, no que o trabalho infantil constitui obstáculo.

De uma forma precisa, de acordo com estudo da Fundabrinq, o Brasil contava entre 2015 e 2016 com cerca de 5% da população entre 05 (cinco) a 17 (dezessete) anos em ocupações de trabalho, que variam do trabalho doméstico, ao trabalho agrícola e não agrícola. Se você chegou até esse ponto do texto com a imagem do trabalho infantil em fábricas, tal como nas revoluções industriais inglesas, esqueça! Ele é bem mais sutil no mundo de hoje e se mostra nas crianças que precisam assumir responsabilidades domésticas, as que trabalham, por exemplo, enrolando fumo, ou em comércios ilegais pelo Brasil, incluindo o tráfico.

Pode parecer pouco 5%, mas isso representava aproximadamente 2 milhões de crianças. É muito.

Parafraseando uma fala feminista de movimentos argentinos, "nem uma a menos", porque nem uma criança merece ter o seu futuro interrompido porque o Estado e a sociedade não foi capaz de oferecer a ela os direitos que ela têm e a dizer que "não, deixa eu cuidar de você, e nunca mais durante a sua infância você terá que trabalhar".

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Colunistas

Angélica Ramos de Frias Sigollo é promotora de Justiça em São Paulo. Mestre em Direito pela USP. Pós-graduada pela FGV Direito SP. Integrante do Proinfancia - Fórum Nacional dos membros do Ministério Público da Infância e Adolescência. Professora de Infância e Juventude no CERS - Centro Educacional Renato Saraiva. Professora colaboradora no Law in Action.

Elisa Cruz defensora pública no Rio de Janeiro. Doutora em Direito Civil pela UERJ. Professora na FGV Direito Rio.

Hugo Gomes Zaher é juiz de Direito na Paraíba. Mestre em Direito. 1° vice-presidente da Associação Brasileira de Magistrados da Infância e da Juventude (ABRAMINJ).

Marília Golfieri Angella é advogada atuante em Direito de Família e Social, com ênfase em Infância e Juventude. Professora Colaboradora do FGV Law. Mestranda em Processo Civil pela Faculdade de Direito da USP. Pós-graduada em Direito das Famílias e Sucessões na Universidade Cândido Mendes/IBDFAM. Membro da Comissão de Infância e Juventude no IBDFAM e na OAB/SP.