A lei 4.591/1964 completa 60 anos de vigência na data de hoje (16 de dezembro de 2024) conservando sua atualidade como estatuto da atividade empresarial da incorporação imobiliária, caracterizada pela coordenação dos fatores de produção correspondentes à construção e venda de frações ideais de terreno e respectivas acessões em regime de condomínio especial, venda de lotes de terreno vinculada à construção de casas em regime de propriedade singular ou, ainda, lotes de terreno urbano sob regime de condomínio especial/edilício (Lei 4.591/1964, arts. 29 e 68, e Código Civil, art. 1.358-A).
O evento é digno de celebração e reverência à extraordinária figura do Professor Caio Mário da Silva Pereira,1 um jurista à frente do seu tempo, como deflui da conformidade da caracterização da incorporação imobiliária às exigências da função social do contrato e da propriedade, da livre concorrência e da defesa do consumidor, que vieram a ser consagradas pelo art. 170 da Constituição Federal.
Recorde-se que a lei foi promulgada para suprir a falta de legislação adequada para atender à intensa demanda por imóveis nos grandes centros urbanos em meados do século passado, ambiente no qual, como relata Caio Mário da Silva Pereira, surgiam empreendedores inescrupulosos que, aproveitando-se da omissão legal, nadavam livremente neste mar sem controle, causando perdas irreparáveis ou de difícil reparação aos adquirentes, deixando-os à deriva, envolvidos com obras paralisadas.2
A lei 4.591/1964 preencheu essa lacuna.
Nos arts. 1º ao 273 definiu-se o regime de propriedade em condomínio especial tendo por objeto edificações ou terrenos destinados à implantação de edificações coletivas (arts. 7º e 8º) e estabelecendo a estrutura básica dos direitos e obrigações dos condôminos e demais ocupantes dos edifícios.
Os arts. 28 e seguintes disciplinam a atividade da incorporação imobiliária, caracterizando-a como negócio jurídico de “venda de frações ideais de terreno objetivando a vinculação de tais frações a unidades autônomas, em edificações a serem construídas ou em construção sob regime condominial.” Esse mesmo dispositivo define como incorporador a pessoa física ou jurídica que promove a venda de frações ideais de terreno destinado a edificações “ou que meramente aceite propostas para efetivação de tais transações, coordenando e levando a termo a incorporação e responsabilizando-se, conforme o caso, pela entrega, a certo prazo, preço e determinadas condições, das obras concluídas.”
Requisito essencial para a “venda de frações ideais do terreno” (art. 29) é sua caracterização como objeto de direito de propriedade em condomínio especial, dotado dos mesmos elementos de caracterização estabelecidos pelo Código Civil para o condomínio edilício, mediante prévio registro da incorporação no Registro de Imóveis da situação do imóvel (art. 32, “i”, §§ 1º-A e 15, e Código Civil, art. 1.332).
Dotado de fé pública, o registro da incorporação promovido pelo oficial do Registro de Imóveis infunde na generalidade das pessoas a legítima confiança em que o incorporador, ali identificado, está habilitado para transmitir aos futuros adquirentes a propriedade ou o direito real de aquisição dessas frações ideais e respectivas acessões já submetidas ao regime do condomínio, bem como para captar recursos de terceiros por meio dessa comercialização e/ou por financiamento garantido por essas mesmas frações ideais e acessões.4
A par da segurança jurídica conferida pelo registro da instituição do condomínio, a Lei da Incorporação Imobiliária institui normas prudenciais de alocação de riscos e de controle orçamentário; submete a atividade a regime legal de vinculação de receitas; define a forma de exercício dos direitos obrigacionais e reais dos adquirentes, abrangendo a fase da construção e da utilização do edifício; cria a figura da comissão de representantes dos adquirentes e a ela outorga mandato legal para administrar o condomínio especial na fase da construção; permite a criação de um patrimônio de afetação composto pelos direitos e obrigações correspondentes a cada empreendimento; torna impenhoráveis e indisponíveis determinados bens e direitos do ativo da incorporação em casos de falência e destituição do incorporador, visando preservar meios de realização objeto da incorporação – execução da obra, entrega das unidades aos adquirentes, liquidação do passivo e apropriação do resultado pelo incorporador.
Dentre esses e outros elementos de caracterização da incorporação imobiliária este pequeno e singelo artigo traz à reflexão e debate a priorização legal do interesse da coletividade dos contratantes nas situações excepcionais de falência ou destituição do incorporador, para as quais a lei dispõe sobre impenhorabilidade e indisponibilidade dos créditos oriundos das vendas e das frações ideais e acessões do estoque do incorporador, além daquelas reincorporadas ao ativo da incorporação por efeito de resolução ou distrato da promessa de venda de frações ideais.
Trata-se, em parte, de alterações recentes introduzidas na lei 4.591/1964 pela lei 14.382/2022.
Esse é um dos maiores desafios com os quais se defronta o condomínio durante a fase da construção, quando sua comissão de representantes deve assumir a gestão do empreendimento em situações de crise oriundas de falência ou destituição do incorporador, pois o êxito em sua missão dependerá preponderantemente da preservação do ativo da incorporação como meio de levantamento de recursos para conclusão da obra e entrega das unidades aos adquirentes.
A incorporação imobiliária como unidade econômica autônoma
O ponto de partida para adequada compreensão da situação é a configuração da atividade empresarial da incorporação imobiliária como unidade econômica autônoma, dotada de capacidade de autossustentação com os recursos provenientes da venda do seu próprio ativo, como bem ilustra Orlando Gomes ao conceituá-la como atividade que “consiste em obter o capital necessário à construção do edifício, mediante venda, por antecipação, dos apartamentos de que se constitui.”5
Ocorre que o potencial econômico-financeiro desse lastro é limitado pela quantidade de apartamentos do projeto aprovado e disso resulta que o êxito de uma incorporação imobiliária depende da preservação do seu ativo e da regularidade do fluxo financeiro proveniente das vendas e/ou de financiamento, destinado ao pagamento das obrigações do seu passivo. Em consequência, eventual desvio de elementos do ativo desse patrimônio, para aplicação em fins estranhos ao escopo específico de realização do empreendimento, provocará inevitável drenagem dos recursos orçamentários vinculados a esse fim, frustrando as legítimas expectativas da coletividade dos contratantes, notadamente os adquirentes.
Esses são alguns dos elementos essenciais que expressam a racionalidade econômica da incorporação imobiliária e constituem os pressupostos em que se fundamentam as normas que permitem a criação de um património de afetação para cada empreendimento6 (lei 4.591/1964, arts. 31-A a 31-F, 43 e seus parágrafos e 50); a vinculação da cessão fiduciária de créditos oriundos das vendas ao pagamento do financiamento da construção (lei 9.514/1997, arts. 18 e seguintes); a sujeição de cada empreendimento a um regime de vinculação de receitas por meio da impenhorabilidade (CPC, art. 833, XII);7 e a impenhorabilidade e indisponibilidade em casos de destituição do incorporador (lei 4.591/1964, art. 43 e seus parágrafos).
No plano do direito material, a Lei das Incorporações permite a constituição de um patrimônio separado para cada incorporação, que se desenvolve com autonomia funcional em relação ao patrimônio geral da empresa incorporadora e confere poderes aos adquirentes, pela sua comissão de representantes, para destituir o incorporador da gestão do empreendimento e dar-lhe prosseguimento até mesmo em caso de quebra da empresa incorporadora, com autonomia em relação ao processo de falência ou recuperação judicial e independentemente de intervenção judicial.
Nesse caso, os adquirentes deverão realizar uma assembleia geral para deliberar se prosseguirão as obras ou se liquidarão o patrimônio da incorporação e a comissão de representantes do condomínio promoverá os procedimentos correspondentes a uma ou outra situação.
De outra parte, no plano do direito procedimental, a impenhorabilidade dos créditos oriundos das vendas dos imóveis em construção, assim como a indisponibilidade e a impenhorabilidade das frações (unidades) do estoque do incorporador e, ainda, daquelas frações (unidades) reintegradas ao patrimônio da incorporação em decorrência de resolução ou distrato, são medidas destinadas a assegurar efetividade específica às regras de preservação dos recursos destinados à execução da obra, qualquer que seja o regime da incorporação imobiliária, ainda que não afetada.
Regime legal de restituição aos ex-adquirentes em decorrência de resolução da promessa ou distrato
Para preservação dos recursos vinculados à execução da obra, pouco importando se a incorporação imobiliária é objeto de afetação ou integre o patrimônio geral do incorporador, os arts. 63 e 67-A da Lei 4.591/1964 definem critérios de restituição de quantias a ex-adquirentes em termos compatíveis com a programação orçamentária, impedindo que lhes sejam restituídas quantias antes do “habite-se”, para preservar o ritmo de continuidade da obra no interesse da coletividade dos contratantes.
No caso de procedimento extrajudicial de resolução, o art. 63 determina a oferta do imóvel em leilão da fração ideal para levantamento dos recursos necessários à liquidação do débito e entrega do saldo, se houver, ao inadimplente. Por essa forma, afasta-se o risco de saída de recursos do patrimônio da incorporação, afetada ou não, pois o débito é pago com o produto da arrematação, e o arrematante se sub-roga na obrigação de pagar o saldo do preço da promessa, possibilitando, assim, manter o curso normal da construção.
Para os casos de ação judicial de resolução, o art. 67-A também prioriza a preservação do orçamento da construção ao diferir a restituição de quantias ao antigo adquirente para 30 dias após o “habite-se” somente admitindo a antecipação desse pagamento se a unidade for revendida antes desse prazo, nos termos dos §§ 5º e 7º do art. 67-A da lei 4.591/1964, com a redação dada pela lei 13.786/2018.8
Como se percebe, a lei define uma ordem legal de preferência que confere primazia ao interesse da coletividade dos contratantes, na medida em que prioriza a execução da obra e, consequentemente, o pagamento das obrigações relativas aos materiais e serviços da construção, aos encargos trabalhistas previdenciários, tributários etc, diferindo a restituição ao ex-adquirente para momento posterior à conclusão da obra, no limite do percentual fixado pela lei.
Impenhorabilidade dos créditos oriundos das vendas das frações (unidades)
Como vimos, a impenhorabilidade dos recursos oriundos das vendas instituída pelo art. 833, XII, do CPC/2015 é regra geral aplicável a toda e qualquer incorporação imobiliária, mesmo àquelas não submetidas ao regime da afetação, visando a preservação do orçamento da construção, e, dado seu caráter cogente, preenche importante lacuna da Lei 4.591/1964.
É que, enquanto pela Lei 4.591/1964 a impenhorabilidade é um dos efeitos da afetação, que, por sua vez, constitui uma faculdade do incorporador, pelo CPC a impenhorabilidade por dívidas estranhas ao empreendimento é norma cogente por expressa definição do art. 833, XII, aplicável a toda e qualquer incorporação, independentemente de opção do incorporador pela afetação.
Indisponibilidade e impenhorabilidade das frações (unidades) do “estoque” da incorporação em caso de falência e destituição do incorporador
As frações ideais e acessões do estoque do incorporador são objeto de tratamento legal específico tanto na hipótese de falência como no de destituição do incorporador, visando igualmente a priorização da execução da obra e observados os peculiares efeitos decorrentes de cada uma dessas situações.
No primeiro caso, o art. 31-F, §§ 14º ao 18º, da Lei 4.591/1964 determina que, no prazo de 60 dias, contado da data da assembleia geral que decidir pelo prosseguimento da obra, a Comissão de Representantes promova a venda das frações ideais de terreno e acessões do incorporador mediante leilão nos termos do art. 63 e empregue o produto aí obtido no pagamento das obrigações do incorporador perante o patrimônio de afetação, na proporção correspondente a essas unidades, além de outros pagamentos, e arrecadando à massa o saldo, se houver.
Já no segundo caso – destituição do incorporador –, as frações ideais do incorporador (unidades do estoque) ficarão indisponíveis até que ele comprove a regularidade do seu custeio (art. 35, § 6º) e, se não fizer tal comprovação no prazo de 15 dias da notificação que receber da Comissão de Representantes, esta ficará autorizada a promover o leilão dessas frações, empregando os recursos na liquidação de sua dívida e entregando-lhe o saldo, se houver (art. 43, §§ 4º e 5º).
Nesse caso, a regra geral segundo a qual, nas incorporações imobiliárias, “a penhora somente poderá recair sobre as unidades imobiliárias ainda não comercializadas” (CPC, art. 862, § 3º)9, é excepcionada para os casos em que houver destituição do incorporador nos termos do § 4º do art. 43 da lei 4.591/1964, com a redação dada pela lei 14.382/2022, segundo o qual as unidades do estoque ficam indisponíveis e impenhoráveis “até que o incorporador comprove a regularidade do pagamento” do respectivo custeio.10
Ao atribuir à Comissão de Representantes dos adquirentes a administração do empreendimento nos casos de falência ou destituição e tornar indisponíveis e impenhoráveis as “unidades do estoque” do incorporador a lei reforça os meios de controle do orçamento da construção e de venda em leilão das unidades dos adquirentes inadimplentes e do “estoque” do incorporador,11 sempre com o propósito de recompor o orçamento e destinar seus recursos à conclusão da obra.
Impenhorabilidade das frações (unidades) reintegradas ao patrimônio de afetação em cumprimento de sentença de resolução da promessa de venda
Situação que ocorre com relativa frequência nas hipóteses de falência ou destituição do incorporador envolve a pretensão de ex-adquirentes que, tendo obtido a resolução do contrato promessa em ações propostas contra a incorporadora, promovem o cumprimento de sentença contra o condomínio ou contra a própria comissão de representantes, havendo, também, casos de adquirentes que ajuízam ação de resolução da promessa depois de deliberada a destituição da incorporadora e incluem no polo passivo o condomínio e/ou a comissão de representantes.
Nesse contexto, esses ex-adquirentes buscam o recebimento desse crédito antes da conclusão da obra e requerem a penhora de frações ideais do terreno.
Apesar de a inclusão do condomínio ou da comissão de representantes ser inteiramente destituída de fundamento, vez por outra é acolhida.
Embora não se possa questionar o direito individual dos ex-adquirentes de cobrar seu crédito constituído em sentença de resolução da promessa de compra e venda, não se pode esquecer que a exigibilidade dessa espécie de crédito é diferida por força de lei para momento posterior à conclusão da obra, de acordo com a ordem legal de preferência que suspende a exigibilidade dessas quantias para momento posterior ao “habite-se”, priorizando o interesse da coletividade dos adquirentes em face do direito individual do ex-adquirente (lei 4.591/1964, art. 67-A, §§ 5º e 6º).
Trata-se de regra geral, cuja aplicação em situação de crise caracterizada pela quebra da incorporadora ou sua destituição exige maior rigor, como consta do parecer do relator do Projeto de lei 1.220/2015, convertido na Lei 13.786/2018, segundo o qual “a função social do contrato exige que a devolução de valores àqueles que desistem do negócio realizado deva ocorrer após a conclusão das obras, com encerramento do patrimônio de afetação,”12 como, aliás, há muito reconhece a jurisprudência do STJ.13
O critério legal assim instituído é aplicável à resolução de contratos de promessa de venda em incorporações imobiliárias celebrados posteriormente à vigência da Lei 13.786, de 27 de dezembro de 2018, e é aplicável às resoluções de contrato de promessa em geral, inclusive naquelas cujo objeto seja a resolução de promessa de venda de imóveis integrantes de incorporação em que houver destituição ou falência do incorporador.
A despeito das novas regras, persistem controvérsias na jurisprudência, seja em relação aos limites percentuais, seja em relação ao diferimento das quantias a serem restituídas.
No caso especial das incorporações imobiliárias em que tiver ocorrido falência ou destituição do incorporador, a jurisprudência é majoritária no sentido da restituição imediata, à coletividade dos adquirentes que se empenham no prosseguimento da obra o injustificado encargo de redirecionar parte dos recursos que aportam para a execução da obra.
Entretanto, já se registram decisões que afastam a pretensão de penhora de frações ideais do terreno objeto da incorporação imobiliária, ainda que se trate de resolução por culpa do incorporador, pois tal constrição “prejudicaria sobremaneira os demais adquirentes que se associaram para concluir a incorporação (...). Esta é a exegese do art. 31-A, ao observar o objetivo do instituto, consignou expressamente, em sua parte final, que o patrimônio de afetação tinha uma finalidade específica, assim o fez: ‘... manter-se-ão apartados do patrimônio do incorporador e constituirão patrimônio de afetação, destinado à consecução da incorporação correspondente e à entrega das unidades imobiliárias aos respectivos adquirentes.”14
A questão, de fato, envolve controvérsia, cuja superação depende de interpretação sistemática e teleológica das normas que compõem o conjunto normativo de proteção patrimonial dos adquirentes de imóveis nas incorporações imobiliárias.
Disso é exemplo a decisão da 3ª Turma do STJ que reconheceu a necessidade de preservação de todo o ativo da incorporação com fundamento em interpretação extensiva da regra geral do art. 833, XII, do CPC, fundamentando-se em que, embora essa regra tenha por objeto a impenhorabilidade das receitas das vendas vinculadas à execução da obra, “comporta interpretação extensiva, incidindo sobre todo o patrimônio de afetação destinado à consecução da incorporação imobiliária, a fim de atender ao escopo da lei, consistente na proteção dos direitos dos consumidores atuais e futuros adquirentes das unidades imobiliárias autônomas."15
Dada a relevância do interesse da coletividade dos contratantes, que constitui elemento central da racionalidade econômica da incorporação imobiliária, é digna de nota a observação do voto condutor no sentido de que “a lei foi tímida, dizendo menos do que queria dizer para alcançar o seu intento, motivo pelo qual deve ser conferida interpretação extensiva ao inciso XII do art. 833 do CPC/2015, para ampliar a proteção legal a todo o patrimônio de afetação do incorporador, notadamente o terreno onde se construirá a edificação.”
Afinal, é preciso dar consequência prática à prioridade legal da conclusão da obra com observância da ordem legal de preferência dos credores como forma de “assegurar a funcionalidade econômica e preservar a função social do contrato de incorporação, do ponto de vista da coletividade dos contratantes e não dos interesses meramente individuais de seus integrantes.”16
Conclusão
A breve apreciação sobre alguns aspectos da estrutura e função da atividade empresarial da incorporação imobiliária demonstra a capacidade de adaptação e aperfeiçoamento da lei 4.591/1964 diante das transformações socioeconômicas, consagrando-se como um marco regulatório fundamental dotado de mecanismos capazes de assegurar a higidez dos negócios e proteção patrimonial dos adquirentes, mesmo em cenários críticos como a falência ou a destituição do incorporador.
Nesse contexto, em consonância com os princípios constitucionais da função social da propriedade e do contrato, da livre concorrência e da defesa do consumidor, que orientam e legislação que veio a se agregar à sua estrutura inaugural, a lei 4.591/1964 assegura os meios necessários à satisfação das legítimas expectativas da coletividade dos contratantes, em conformidade com a funcionalidade econômica da atividade da incorporação imobiliária e a função social do contrato.
E, retomando as lições inovadoras do Professor Caio Mário da Silva Pereira, é possível afirmar que, a partir do eficiente sistema que assegura proteção patrimonial e define responsabilidades instituído pela lei 4.591/1964, não mais se admite que os adquirentes sejam deixados à deriva “num mar sem controle”, com obras paralisadas.
__________
1 A lei 4.591/1964 é resultante de anteprojeto de lei apresentado pelo Professor Caio Mário da Silva Pereira no I Congresso Nacional de Direito realizado em Fortaleza em 1959 o anteprojeto convertido na Lei 4.591/1964, como esse autor relata no prefácio de sua obra Propriedade horizontal, lançada em 1960 pela Editora Forense.
2 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e incorporações. Atualizadores: Melhim Chalhub e André Abelha. Rio de Janeiro: GEN-Forense, 16. ed. revista e atualizada, 2024, n. 129. “O mau incorporador, irresponsável e inconsequente, tratou de imprimir ao empreendimento feição propícia e cogitou, então, de 'armar as incorporações', expressão com que designava as operações iniciais de imaginar e projetar a edificação, anunciar a venda com farta publicidade, colocar as unidades, contratando a construção não em seu próprio nome, porém no dos adquirentes, e saindo às pressas, antes que a espiral inflacionária se agravasse, encurtando os recursos e suscitando os desentendimentos. (...). A grita era geral. Acolhemo-la em nosso livro da Propriedade horizontal, apontando o descalabro em que andava este rendoso comércio e clamando por uma lei que viesse pôr paradeiro a esta irresponsabilidade e ordem nesse caos.”
3 O regime jurídico do condomínio em edificações passou a ser regulado quase que inteiramente pelos arts. 1.331 e seguintes do Código Civil de 2002, com a denominação condomínio edilício.
4 Sobre o rigor jurídico e técnico da formação do Memorial de Incorporação, permitimo-nos remeter à nossa obra Incorporação Imobiliária, 8 ed., 2024, capítulo II.
5 GOMES, Orlando, Direitos reais. Rio de Janeiro: Forense, 1962, 2ª ed., p. 305.
6 Permito-me remeter à obras Propriedade imobiliária – função social e outros aspectos (Editora Renovar, 1999), na qual apresentei o anteprojeto de lei de constituição de patrimonio de afetação patrimonial na atividade da incorporação imobiliária.
7 Código de Processo Civil (lei 13.105/2015): “Art. 833. São impenhoráveis: (...); XII – os créditos oriundos de alienação de unidades imobiliárias, sob regime de incorporação imobiliária, vinculados à execução da obra”.
8 Lei 4.591/1964: “Art. 67-A. (...). § 5º Quando a incorporação estiver submetida ao regime do patrimônio de afetação, de que tratam os arts. 31-A a 31-F desta Lei, o incorporador restituirá os valores pagos pelo adquirente, deduzidos os valores descritos neste artigo e atualizados com base no índice contratualmente estabelecido para a correção monetária das parcelas do preço do imóvel, no prazo máximo de 30 (trinta) dias após o habite-se ou documento equivalente expedido pelo órgão público municipal competente, admitindo-se, nessa hipótese, que a pena referida no inciso II do caput deste artigo seja estabelecida até o limite de 50% (cinquenta por cento) da quantia paga. (...). § 7º Caso ocorra a revenda da unidade antes de transcorrido o prazo a que se referem os §§ 5º ou 6º deste artigo, o valor remanescente devido ao adquirente será pago em até 30 (trinta) dias da revenda.”
9 Código de Processo Civil: “Art. 862. (...). § 3º Em relação aos edifícios em construção sob regime de incorporação imobiliária, a penhora somente poderá recair sobre as unidades imobiliárias ainda não comercializadas pelo incorporador.”
10 Lei 4.591/1964: “Art. 43. (...). § 4º As unidades não negociadas pelo incorporador e vinculadas ao pagamento das correspondentes quotas de construção nos termos do § 6º do art. 35 desta Lei ficam indisponíveis e insuscetíveis de constrição por dívidas estranhas à respectiva incorporação até que o incorporador comprove a regularidade do pagamento.” (Incluído pela lei 14.382, de 2022).
11 Lei 4.591/1964: “Art. 43. (...). § 5º Fica autorizada a comissão de representantes a promover a venda, com fundamento no § 14 do art. 31-F e no art. 63 desta Lei, das unidades de que trata o § 4º, expirado o prazo da notificação a que se refere o § 1º deste artigo, com aplicação do produto obtido no pagamento do débito correspondente.” (Incluído pela lei 14.382, de 2022).
12 “Não se pode desfalcar o patrimônio – de interesse da coletividade de condôminos – priorizando a restituição de valores, de forma imediata e corrigida, justamente àqueles adquirentes que não têm mais interesse na consecução da obra. (...). Por consequência, dentro do bem jurídico maior que deve ser a proteção dos consumidores que se mantêm no empreendimento, e, portanto, querem efetivamente cumprir e ver cumpridos seus contratos, a função social do contrato exige que a devolução de valores àqueles que desistem do negócio realizado deva ocorrer após a conclusão das obras, com encerramento do patrimônio de afetação.” (Parecer do relator do Projeto de Lei 1.220/2015, Deputado José Stédile. Disponível aqui)
13 [...]. 2. Embora o art. 43, III, da Lei nº 4.591/64 não admita expressamente excluir do patrimônio da incorporadora falida e transferir para comissão formada por adquirentes de unidades a propriedade do empreendimento, de maneira a viabilizar a continuidade da obra, esse caminho constitui a melhor maneira de assegurar a funcionalidade econômica e preservar a função social do contrato de incorporação, do ponto de vista da coletividade dos contratantes e não dos interesses meramente individuais de seus integrantes. 3. Apesar de o legislador não excluir o direito de qualquer adquirente pedir individualmente a rescisão do contrato e o pagamento de indenização frente ao inadimplemento do incorporador, o espírito da Lei nº 4.591/64 se volta claramente para o interesse coletivo da incorporação, tanto que seus arts. 43, III e VI, e 49, autorizam, em caso de mora ou falência do incorporador, que a administração do empreendimento seja assumida por comissão formada por adquirentes das unidades, cujas decisões, tomadas em assembleia, serão soberanas e vincularão a minoria. 4. Recurso especial provido." (Trecho da ementa do REsp 1.115.605/RJ, rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, DJe de 18.4.2011).
14 TJSP, 3ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, Agravo de Instrumento nº 2197318-30.2018.8.26.0000, rel. Des. Nilton Santos Oliveira, j. 26.9.2018.
No mesmo sentido:
“APELAÇÃO. Embargos de terceiro. Penhora de unidades de incorporação assumida por comissão de adquirentes. Sentença de improcedência. Recurso dos embargantes. Comissão que assume somente as dívidas relativas à incorporação, que não se confundem com as dívidas do incorporador. Ausência de transmissão de responsabilidade quanto às dívidas decorrentes dos compromissos de compra e venda de unidades. Precedente. Hipótese distinta daquela em que há responsabilização do próprio incorporador. Comissão de adquirentes que foi igualmente lesada pelo abandono das obras. Responsabilização que causaria prejuízos injustos e excessivos à coletividade e violaria a função social da obra. Afastada a responsabilidade dos apelantes e da incorporação. RECURSO PROVIDO.” (TJSP, 27ª Câmara de Direito Privado, Apelação Cível 1019566-40.2022.8.26.0100, relatora Desembargadora Celina Dietrich Trigueiros, j. 6.2.2024).
“PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO. Rescisão de instrumento de compra e venda. Cumprimento de sentença. Decisão que cancelou a penhora que recaiu sobre terreno. Patrimônio afetado por averbação, instituído para execução da obra pelos associados. Afetação anterior à citação da empreendedora. Patrimônio que só submete a constrição de créditos decorrentes de sua finalidade. Exegese do artigo 31-A, "caput" e § 1º, da lei 4.591/64, incluído pela lei 10.931/2004. Manutenção do cancelamento da penhora a fim de salvaguardar os direitos dos demais compradores que criaram associação a fim de dar continuidade ao empreendimento. Exequente que deve, por ora, diligenciar acerca de outros bens. Recurso improvido”. (TJSP, 3ª Câmara de Direito Privado, Agravo de Instrumento 2197318-30.2018.8.26.0000, rel. Des. Nilton Santos Oliveira, j. 26.9.2018).
“Respeitado o esforço do patrono do embargado, não há como autorizar que o credor (cujo crédito foi constituído em razão do distrato do contrato de sociedade em conta de participação) satisfaça o montante que lhe é devido por meio da penhora do terreno em questão, sobretudo em razão da proteção conferida ao patrimônio de afetação e da necessária proteção ao interesse da coletividade de compradores. [...]. Assim, forçoso reconhecer que o patrimônio afetado, cuja posse é da Comissão embargante, não deveria, e não deve responder pelo crédito do embargado, que, ressalta-se, se originou da relação societária entre ele e a executada (instrumento particular de distrato de sociedade em conta de participação), até porque, conforme restou apontado no agravo de instrumento supracitado, a contrapartida dos investimentos feitos pelo embargado consistente nas unidades autônomas do quarto andar do edifício que viria a ser construído no terreno penhorado (nos termos do instrumento particular de constituição de sociedade em conta de participação - fls. 44) , foi substituída por obrigação pecuniária, por força do distrato celebrado entre o embargado e a executada, a infirmar a excepcionalidade que justificasse afastar a proteção do patrimônio de afetação. (Apelação Cível nº 1047348-27.2019.8.26.0100, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo).”
“Embargos de terceiros – Oposição pela Comissão de Representantes dos adquirentes reunidos para dar continuidade ao empreendimento abandonado pela incorporadora - Sentença de improcedência - Inconformismo da embargante – Abandono da obra, pela incorporadora, que atingiu igualmente as partes - Direito de crédito dos embargados, decorrente da rescisão do compromisso de compra e venda, que não pode inviabilizar a continuidade das obras assumidas pelos demais - Patrimônio de afetação que garante a função social de entrega das unidades - Penhora de fração ideal do imóvel que causaria prejuízos injustos e excessivos à coletividade - Hipótese distinta daquela em que há responsabilização do próprio incorporador, ainda vinculado ao empreendimento – Apelo acolhido.” (TLSP, Apelação Cível nº 1060310-43.2023.8.26.0100, 9ª Câmara de Direito Privado, DJe 27.8.2024).
15 Recurso Especial. Processual civil. Incorporação imobiliária. Ausência de prequestionamento. Interpretação extensiva do art. 833, XII, do CPC/2015. Possibilidade. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, provido. 1. O propósito recursal consiste em definir se a hipótese de impenhorabilidade constante do art. 833, XII, do CPC/2015 pode ser objeto de interpretação extensiva. 2. A ausência de prequestionamento das teses relacionadas aos arts. 789 e 805 do CPC/2015, apontados como violados, obsta o conhecimento do recurso especial, atraindo, com isso, a incidência das Súmulas 282 e 356/STF. 3. A impenhorabilidade constante do inciso XII do art. 833 do CPC/2015 comporta interpretação extensiva, incidindo sobre todo o patrimônio de afetação destinado à consecução da incorporação imobiliária, a fim de atender o propósito legal consistente na proteção dos direitos dos consumidores atuais e futuros adquirentes das unidades imobiliárias autônomas. 4. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, provido.” (STJ, 3ª Turma, REsp n. 1.675.481-DF, rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, DJe 29.4.2021).
16 Trecho da ementa do REsp 1.115.605/RJ, rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, DJe de 18.4.2011.