Migalhas Edilícias

A flexibilização da especialidade registral e a ampliação dos atos registráveis após alterações na lei de registros públicos

O direito imobiliário passa por modernização, com alterações legislativas que buscam maior eficiência nos negócios jurídicos, como o acesso ampliado ao registro e a flexibilização de qualificações.

28/11/2024

Introdução

O direito imobiliário tem passado por processos de modernização que buscam dar maior eficiência aos negócios jurídicos envolvendo direitos reais. Essa transformação passa pela segurança com a publicidade dos negócios jurídicos entabulados. Tem-se observado, nessa seara, um movimento legislativo que busca garantir que os atos jurídicos tenham acesso aos Registros Públicos.

Desta forma, o objetivo deste artigo é tratar das principais alterações legislativas que culminaram na possibilidade de acesso ao fólio registral de outros títulos, além dos indicados no inciso II do art. 167 da lei 6.015/77 (LRP”- lei de registros públicos de registros públicos), bem como na flexibilização da qualificação registral do registrador.

Contextualização da Atividade Registral

A atividade registral imobiliária é considerada um serviço público, por meio do qual o registrador recebe a delegação do Estado, nos termos do art. 236 da CF/88.

Conforme disposto no art. 3º da lei 8.935/94, o registrador é um agente público que exerce funções estatais de natureza administrativa, com o objetivo de assegurar segurança jurídica para a atividade notarial e de registro. Tais atividades são fiscalizadas pelo Poder Judiciário, nos termos do parágrafo 1º do art. 236 da CF/88.

A Constituição Federal estabelece em seu art. 22, inciso XXV, que a competência para legislar sobre a matéria de registros públicos é privativa da União e, neste sentido, tal matéria é regulamentada principalmente, mas não só, pela LRP. 

A legislação federal, estadual e outros atos legislativos e administrativos, por meio do CNJ e das Corregedorias Estaduais de Justiça, possuem efeito suplementar, uma vez que as normas gerais que regem a disciplina e responsabilidade dos registradores estão estabelecidas na LRP, como legislação de alcance nacional.

Modernização

Os negócios imobiliários se tornaram cada vez mais complexos ao longo dos anos; esta evolução foi acompanhada de perto de um processo significativo de modernização no sistema registral, impulsionado pela evolução tecnológica e pelas novas demandas do mercado. Para tanto, foi de suma importância que a LRP passasse por revisões e adaptações, assegurando que o sistema registral acompanhasse essas transformações, proporcionando a desburocratização de novos negócios imobiliários.

As alterações na LRP foram necessárias para garantir que as práticas de registro pudessem atender de forma eficaz às exigências de um mercado imobiliário cada vez mais dinâmico. 

O marco desta nova era registral ocorreu com a promulgação da lei 13.097/15, que consolidou a concentração dos atos na matrícula, vinculada principalmente ao instituto da publicidade registral imobiliária, constituída para assegurar a eficácia da produção dos efeitos à situação jurídica do imóvel perante terceiros. 

No entanto, o sistema registral precisava de ainda mais adequações para garantir que o registro estivesse alinhado com a realidade fática do imóvel, seja para o acesso às informações pelo mercado e pelo público geral (entendimento que é reforçado pela criação da Certidão de Situação Jurídica do Imóvel pela lei do SERP, que incluiu o §9º do art. 19 da lei 6015/73), seja pela maior autonomia na retificação de atos de ofício pelo registrador ou pela flexibilização do registro pelos demais operadores de Direito.

Além das alterações mencionadas acima, vivenciou-se um movimento de modernização procedimental a partir da pandemia da Covid-19. Em razão da necessidade de afastamento social, a atividade notarial e de registro progrediu consideravelmente, haja vista que os cartórios se viram compelidos a aceitar os atos eletrônicos e adequar seus sistemas internos para o trâmite de pedidos de forma digital e remota.

Alterações Legislativas

A lei 14.382/22 trouxe algumas novidades legislativas significativas para a LRP. Neste contexto, destaca-se a inclusão do §15º no art. 176, que permite ao registrador flexibilizar alguns elementos de especialidade objetiva e subjetiva para proceder à abertura da matrícula, desde que haja segurança quanto à localização e à identificação do imóvel.

O princípio de especialidade objetiva refere-se à identificação e descrição do imóvel na matrícula imobiliária, com especificidades para imóveis urbanos e rurais, de acordo com o exposto no art. 176, §1º, inciso II, número 3, da LRP (vide julgado do TJ/SP na apelação cível 1000517-11.2017.8.26.0125). Por outro lado, o princípio da especialidade subjetiva está relacionado à forma correta e completa da qualificação dos agentes das operações que são objeto do registro, ou seja, refere-se à titularidade do imóvel, abrangendo tanto pessoas físicas quanto jurídicas.

A lei 14.382 incluiu o §17º no art. 176 da LRP, o qual flexibilizou a qualificação registral para registro de títulos, indicando que os elementos da especialidade objetiva e/ou subjetiva, aqueles indicados no inciso II, do art. 176 da LRP, que não alterarem elementos essenciais do ato ou negócio jurídico praticado, quando não constantes do título ou do acervo de vontade, poderão ser complementados por outros documentos ou por declarações dos proprietários e interessados (quando se tratar de manifestações de vontade), sob sua responsabilidade.

Tais alterações trazem impactos significativos no mercado imobiliário, considerando que diversos negócios jurídicos imobiliários não eram oponíveis contra terceiros, pois o registro era obstado por exigências formuladas para complementações de informações e correções do título. Com a inclusão do §17º do inciso II do art. 213 da LRP, passou a ser possível que as informações não constantes nos títulos que não sejam consideradas como elementos essenciais sejam complementadas por documentos e declarações firmadas pelas partes interessadas.

Da mesma forma, a inserção do §15º do inciso II do art. 213 da LRP viabilizou a abertura de matrículas de imóveis cujas descrições nas transcrições são precárias (sem todas as especificações expostas no art. 176 da LRP), sem exigir previamente as retificações das descrições das áreas. 

Adicionalmente, a lei 14.382 corroborou a interpretação de que o rol dos atos de averbação indicados no inciso II do art. 213 da LRP tem natureza exemplificativa. Diante da inserção do art. 246, que permite ao registrador praticar outros atos de averbação além daqueles indicados no rol, houve reforço ao entendimento da natureza não taxativa do dispositivo legal.

Posteriormente, o objetivo de flexibilização registral foi expandido para aumentar os títulos que têm acesso ao fólio registral e, consequentemente, são passíveis de atos de registro, com a promulgação da lei 14.711/23 ("Marco Legal das Garantias"). 

A expansão interpretativa se deu a partir da inclusão do item 48 no inciso I do art. 167 da LRP, o qual possibilita o registro de outros negócios jurídicos de transmissão do direito real de propriedade sobre imóveis ou de instituição de direitos reais sobre imóveis, ressalvadas as hipóteses de averbação previstas em lei e respeitada a forma exigida por lei para o negócio jurídico.

O que se extrai de tal alteração é que o título apresentado não precisa corresponder estritamente à literalidade das hipóteses elencadas no inciso I do art. 167 da LRP. Permite-se, por exemplo, o registro de cláusula de vigência de arrendamento, tokens oriundos de smart contracts, compra e venda com cláusula de permuta (Debs, Martha El. O Novo Marco das Garantias: Aspectos Práticos e Teóricos da Lei 14.711/23. São Paulo: Editora JusPodivm, 2024, p. 543-545) etc. Todavia, as condições essenciais do negócio precisam estar explícitas, de forma que não gerem dúvidas com relação ao direito real que está constituído e às partes envolvidas.

Ademais, essa inclusão legislativa não alterou a tipicidade dos direitos reais, mas validou a flexibilização de atos registráveis no Cartório de Imóveis, facilitando a transmissão da propriedade ou a instituição de direitos reais. É livre a criação de contratos atípicos pelas partes, embora essa mesma amplitude de liberdade não exista para a criação de direitos reais atípicos.

Não obstante ao exposto acima, a flexibilização autorizada pelos dispositivos legais mencionados dependerá da avaliação prévia do oficial de registro de imóveis, que observará os elementos da especialidade objetiva e subjetiva essenciais (Gomide, Alexandre Junqueira. Sistema eletrônico de registro públicos: Lei 14.382, de 27/6/22 comentada e comparada. Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. 323). 

Sob esse aspecto, é importante salientar o papel fundamental do registro de imóveis para assegurar a publicidade das situações jurídicas relativas a bens imóveis, sejam eventos de âmbito real ou pessoal. Cria-se um sistema sólido e eficiente de registro e divulgação das informações de negócios jurídicos, contribuindo principalmente para a segurança jurídica e a celeridade nos serviços do sistema registral brasileiro (Brandelli, Leonardo. Registro de Imóveis: Eficácia Material. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 114-116).

Conclusão

A segurança da publicidade registral está atrelada à qualificação registral a partir de um juízo lógico e crítico realizado pelo registrador para verificar se o título apresentado está em conformidade com o direito e, a partir de uma decisão fundamentada, determinar a prática dos atos de registro ou averbação, observando todos os elementos previstos em lei. Assim, a função qualificadora está diretamente relacionada à aplicação do direito e, consequentemente, à sua interpretação.

O sistema registral e a legislação não podem ser reféns de conceitos e estigmas do passado: Devem evoluir de acordo com os interesses da sociedade atual e das novas dinâmicas do mercado, a fim de proporcionar adaptabilidade à nova realidade.

Desse modo, as alterações introduzidas pelas respectivas leis asseguraram aspectos mais permissivos aos registradores para desburocratização e simplificação de acesso para novos negócios imobiliários no âmbito do sistema registral.

Assim, vale destacar a importância do papel do oficial de registro de imóveis acerca da qualificação da vontade e formalização dos atos e negócios jurídicos que se pretende praticar, tendo em vista que essa atuação busque garantir a eficácia da lei, a segurança jurídica e a prevenção de conflitos.

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Coordenação

Alexandre Junqueira Gomide é doutor e mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Especialista e mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Fundador e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário – IBRADIM. Diretor de Relações Institucionais do Instituto dos Advogados de São Paulo – IASP. Advogado, professor e parecerista.

André Abelha é mestre em Direito Civil pela UERJ. Fundador e presidente do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário - IBRADIM. Presidente da Comissão Especial de Direito Notarial e Registral no Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Professor na pós-graduação em Direito Imobiliário da Puc-Rio e em outras instituições. Sócio do escritório Longo Abelha Advogados.