Desde que a CN - Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ expediu os provimentos 172 e 175, ambos de 2024, que tratam da obrigatoriedade do uso da escritura pública para a instrumentalização de negócios jurídicos de Alienação Fiduciária de bens imóveis1, temos visto uma avalanche de argumentos tanto favoráveis quanto contrários a essa orientação. Nesse contexto, recentemente foi publicado um artigo da lavra dos renomados professores José Fernando Simão e Maurício Bunazar no site Consultor Jurídico2, instigados por um artigo do igualmente culto André Abelha, no site Migalhas3, no qual defendem a interpretação do CN-CNJ quanto ao uso da escritura pública.
Independentemente dos diversos argumentos que possam ser apresentados para se defender uma ou outra posição4, o que chama a atenção na argumentação do primeiro texto, e sobre o qual este artigo se debruça, é a sugestão de que o uso do instrumento particular em negócios de alienação fiduciária de bens imóveis estaria associado à informalidade e à insegurança jurídica.
Inicialmente, ressalvo a irrestrita concordância com os autores no sentido de que eventual economia financeira não deveria ser o mote principal a induzir alterações no direito positivo, sob pena de fragilizar a estabilidade das relações sociais, esta sim, o objetivo primordial do Direito. No entanto, os primeiros autores parecem incorrer em contradição ao discutir os custos relacionados ao uso do instrumento particular nos negócios de Alienação Fiduciária de bens imóveis. Um exemplo disso é hipótese levantada de que os procedimentos de certificação e arquivamento dos instrumentos particulares poderiam, na prática, ser mais complexos e, portanto, mais onerosos do que a lavratura de uma escritura pública. Inclusive, tal argumento parece não fazer sentido já que a certificação e arquivamento são procedimentos intrínsecos à lavratura de escrituras públicas, ou seja, como parte do processo poderia ser mais custosa que o processo completo?
Assim, ainda que se concorde com a premissa de que a eficiência econômica não deveria ser único motivo a induzir alterações legislativas, por coerência, a incidência ou não de emolumentos jamais deveria orientar alterações interpretativas da própria lei. Nesse ponto, portanto, não parece haver divergências.
Baseando-se, então, em premissas desvinculadas de custos financeiros, o fato é que, apesar de a decisão do CN-CNJ ter origem na controvérsia gerada pela interpretação do art. 38 da lei 9.514/987 pela Corregedoria de Justiça de Minas Gerais (acompanhada por outras quatro corregedorias estaduais), as demais vinte e duas Corregedorias Estaduais de Justiça mantinham uma interpretação consolidada, permitindo o uso do instrumento particular, independentemente das partes envolvidas. Essa interpretação permitiu a celebração de milhares de negócios jurídicos de Alienação Fiduciária de bens imóveis por instrumento particular ao longo dos anos, sem que se tenha notícia de que essa prática tenha gerado controvérsias jurídicas relevantes.
Neste aspecto, vale lembrar que, assim como a norma posta (fonte primaria), os usos e costumes são igualmente fontes de Direito, ainda que acessórias5, caracterizadas pela observância reiterada de certas regras (ou interpretação dessas regras, como neste caso), consolidadas pelo tempo e revestidas de autoridade.
A simples observância do que de fato ocorreu nesses vinte e dois Estados, com o uso do instrumento particular por mais de duas décadas, fornece uma ideia valiosa sobre o que a prática nos ensina em termos de segurança jurídica. A afirmação dos autores, com a qual concordo plenamente, de que “a prática mostra que o vigente regime jurídico das alienações fiduciárias de imóveis tem garantido a um só passo o fomento do mercado imobiliário e a segurança jurídica dos seus agentes” e que “não faz sentido — menos ainda com base em ilações de ordem econômica — alterar um sistema que vem desempenhando eficazmente sua função”, reforça a justamente a valorização do uso do instrumento particular, em vez da escritura pública nas Alienações Fiduciárias de bens imóveis.
A segurança jurídica não é um conceito abstrato, mas concreto. A lei de Introdução às normas do direito brasileiro (Decreto-lei 4.657/42) em seu art. 20 estabelece que as decisões nas esferas administrativa, controladora e judicial, com base em valores jurídicos abstratos, deverão considerar as consequências práticas da decisão.
Atribuir ao uso do instrumento particular a pecha da insegurança jurídica tampouco condiz com o sistema jurídico vigente. A instrumentalização do negócio jurídico pode ocorrer de forma solene ou não. Negócios jurídicos solenes são aqueles que devem obedecer à uma forma prescrita em lei para se aperfeiçoarem, enquanto os não solenes podem seguir uma forma livre6. A regra vigente em nosso ordenamento jurídico é que os negócios jurídicos não dependem de forma especial como requisito de validade (art. 107 do CC); ou seja, a forma livre é a regra, e o formalismo, como exceção, depende de previsão expressa em lei.
Seguindo a regra prevista em nosso sistema, inúmeros negócios jurídicos são celebrados diariamente por instrumento particular, revestidos de plena validade e eficácia, sem que se cogite de insegurança jurídica. No âmbito das transações envolvendo ativos imobiliários, podemos citar contratos de locação, arrendamento, parceria, comodato, compra e venda, built to suit, entre outros. Associar o uso do instrumento particular à insegurança jurídica, como equivocadamente sugerem os autores, contraria o sistema jurídico brasileiro e, pior, a própria realidade da vida vivida.
Não se ignora que o art. 108 (antigo 134, II) do CC impõe a escritura pública como requisito de validade para negócios jurídicos que versem sobre constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário-mínimo vigente no País. Entretanto, o art. 108 é claro ao permitir exceções a essa regra, desde que previstas em lei. Ou seja, a norma é uma exceção que admite exceção.
Aqueles que defendem o uso do instrumento particular na alienação de imóveis, interpretam o art. 38 da lei 9514/97 como a exceção prevista no art. 108. Já os que entendem o contrário, não veem na redação do art. 38 tal permissivo.
Independentemente da linha interpretativa adotada, não é razoável, à luz do sistema jurídico brasileiro, fazer qualquer ilação generalizada que associe o uso do instrumento particular na formalização de negócios jurídicos a uma suposta insegurança jurídica.
Sob a perspectiva jurídica teórica, podem existir argumentos para aqueles que defendem o uso da escritura pública nos negócios de Alienação Fiduciária de bens imóveis. No entanto, a segurança jurídica das partes envolvidas definitivamente não está entre esses argumentos.
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1 O instrumento particular seria privativo das entidades autorizadas a operar no âmbito do Sistema Financeiro Imobiliário (SFI), incluindo: I - as cooperativas de crédito; e II – as companhias securitizadoras, os agentes fiduciários e outros entes sujeitos a regulamentação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) ou do Bacen relativamente a atos de transmissão dos recebíveis imobiliários lastreados em operações de crédito no âmbito do SFI, além de outras exceções previstas em lei (administradoras de Consórcio de Imóveis - art. 45 da lei 11.795/08; entidades integrantes do SFH, etc.).
2 Alienação fiduciária de imóvel por instrumento particular: falácia da economia pela informalidade.
3 Disponível aqui.
4 Neste aspecto sugiro vivamente o acesso ao IbradimCast #77 – “Alienação Fiduciária por instrumento público ou particular: os Provimentos 172 e 175 do CNJ”, em que rendo louvores à exposição tanto do querido e culto Alexandre Kassama, quanto do nobre e, não menos querido, mestre Melhim Challub.
5 “São consideradas fontes formais do direito a lei, a analogia, o costume e os princípios gerais de direito (arts. 4º da LINDB e 140 do CPC); e não formais a doutrina e a jurisprudência.” CARLOS ROBERTO GONÇALVES. Direito Civil Brasileiro - (Portuguese Edition) (p. 53). Editora Saraiva. Edição do Kindle.
6 CARLOS ROBERTO GONÇALVES. Direito Civil Brasileiro - (Portuguese Edition) (p. 391). Editora Saraiva. Edição do Kindle.