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Por que a locação de residência para empregado, pela empresa, não é locação residencial? O art. 55, da lei 8.245/91

O texto trata das locações de imóveis realizadas por empresas para uso residencial de seus colaboradores, como diretores ou funcionários, e como essas locações são juridicamente classificadas como "não residenciais", segundo a lei 8.245/91 (Lei de Locações).

18/10/2024

Nem sempre os imóveis destinados às operações da empresa são, apenas, galpões, escritórios ou lojas; podem ser necessários, também, imóveis destinados à residência, como é o caso de apartamentos que são locados para que neles resida um diretor ou, por exemplo, para estabelecer por algum tempo um engenheiro que tocará obra distante de seu domicílio. 

São situações a cada dia mais usuais e a lei das locações delas cuidou (art. 55, da lei 8.245/91), classificando tais locações como "não residenciais", ou seja, dando maior relevância ao contratante (a locatária empresa) e à destinação especialmente determinada do que à natureza do imóvel (residencial). 

Inserir a locação dentre os ativos da empresa locatária tem como consequência prática gozar, essa relação contratual, das liberdades que a própria lei confere às locações não residenciais, amplitude cuja tendência é aumentar, mercê do saudável liberalismo que parece nortear a atual legislação e os melhores projetos de lei em trâmite. 

Abram-se parênteses para anotar que a liberdade de contratar existe, e concretiza os princípios da autonomia da vontade e da livre iniciativa e, quanto às locações não residenciais mostrou Fabio Ulhôa Coelho que “a liberdade de contratar dos empresários não pode ser restringida, para que, assim, a competição empresarial possa gerar, à coletividade, os benefícios esperados de redução dos preços e aumento da qualidade de produtos” (COELHO, 2014)1, citação que se fez tradicional. 

Interessaria em acréscimo, lembrar das modificações não formalizadas, porém operadas. Não é somente através de novos pactos escritos que os interessados se acertam, valendo-se por vezes, de paulatinas mutações no exercício do contrato, mutações consensuais e que expressam além da liberdade de contratar o que lhes convier, a liberdade de contratar da maneira que lhes for conveniente, no caso, sem escrever. É a singela aplicação da teoria da confiança, derivada da boa-fé objetiva, legalmente obrigatória. 

Pensa-se que tal seria aplicável se alteradas condições do ajuste locatício também no que tange ao aspecto ora em foco, até por aplicação do Código Civil, cujo artigo 421-A, faz presumir “paritários e simétricos” os “contratos civis e empresariais”, certeza a ser lida diante do artigo 113, buscando-se quanto “II - corresponder aos usos, costumes e prática do mercado relativas ao tipo de negócio”, “III - corresponder à boa fé”, aferível bem além da férrea e quiçá enganada literalidade; “V - corresponder a qual seria a razoável negociação [...] inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes [...]”. 

Pois bem. Essa previsão – tratar-se, nessa hipótese, de locação não residencial - foi inovadora (nada existia a respeito na lei anterior), traduzindo (como quase a totalidade da lei de 1.991) o estágio maduro da interpretação jurisprudencial. O entendimento então mais atualizado dos tribunais foi para o texto da lei. 

(...) a proteção concedida pela Lei 6.649/1979 à locação residencial teve em mira atender à necessidade social de moradias. Esta inexiste quando é pessoa jurídica que figura como locatária, mesmo que o prédio se destine à moradia de um diretor. É que, no caso, a moradia desse diretor se integra entre os elementos com que a empresa conta para sua atividade, que não é residencial. [...]2. 

Como se vê, o artigo 55 estampou a compreensão judicial, coerente com a expressada pelos atores do setor e aplaudida pela doutrina, é o que se colhe na obra do sempre importante professor Gildo dos Santos: “[...] O que avulta, no caso, é o fato de a empresa, no seu interesse, oferecer moradia àqueles que são seus colaboradores (sócios, diretores, empregados), do que decorre, nitidamente, que não se trata de locação residencial propriamente dita. [...]” (SANTOS, 2009).3 

O professor de sempre, Sylvio Capanema de Souza, seguiu a mesma linha dizendo que “A lista, entretanto, não é exaustiva, e sim exemplificativa. O que importa é que a pessoa jurídica tenha alugado o imóvel para servir de residência a alguém ligado às suas atividades ou objetivos, pagando o respectivo aluguel (SOUZA, 2012)4. 

Mas, deve ser observada a posição contrária ao entendimento majoritário, do inesquecível Juiz Francisco Carlos Rocha de Barros: 

Sempre marchamos com os que pensavam em sentido contrário, defendendo a natureza residencial dessa locação e argumentando: a) a destinação da locação é que importa, e não a personalidade jurídica do locatário; b) apesar dos objetivos sociais da empresa locatária, a utilização do imóvel sempre será para fim residencial; c) o déficit habitacional é que justifica proteção à locação residencial – ainda que a locatária seja pessoa jurídica, quem vai residir no imóvel será a pessoa física, justamente por causa desse déficit. Está presente um interesse empresarial sem dúvida, mas a locação atende a uma necessidade habitacional. Some-se, ainda, que seria absurdo chamar de não residencial uma locação que, pela natureza do imóvel, inadmitisse outra utilização que não fosse a residencial [...]5. 

Na realidade, a natureza do prédio é preservada, mas o tratamento deste contrato de locação é determinado com especificidade pela Lei, exatamente para contemplar o desenvolvimento empresarial, não lhe impedir a consecução, nem tampouco afrontar a evidência de que aquele ativo está destinado para o uso previsto pela empresa, em favor de seu objeto. 

Tal se afigura imune a dúvidas, a ponto de tais locações poderem embasar ação renovatória, exclusivas das locações de imóveis destinados ao comércio, à indústria e às sociedades civis com fins lucrativos (art. 51, “caput” e parágrafo 4º, da lei das locações) – jamais nos casos das locações residenciais. No relato da Ministra Nancy Andrighi, 

“O cabimento da ação renovatória não está adstrito ao imóvel para onde converge a clientela, mas se irradia para todos os imóveis locados com o fim de promover o pleno desenvolvimento da atividade empresarial, porque, ao fim e ao cabo, contribuem para a manutenção ou crescimento da clientela”6. 

Nada diferente do que ocorreria com qualquer bem: uma geladeira pode servir para a guarda de alimentos na casa de uma família, ou ter a mesma função direta no refeitório de uma fábrica. O mesmo objeto terá em cada situação um tratamento jurídico distinto: lá, até a proteção como bem de família; aqui, um ativo fixo sujeito a determinações da empresa, a amortizações, penhorável. Mais uma daquelas situações em que o “ser” cede, de certa forma, à “razão de ser”. 

Mais: é palpável que diversos contratos integrem o ativo empresarial, que não haverá de ser composto somente por prédios e máquinas: é o caso dos contratos de franquia, dos contratos de locação (em pontos comerciais privilegiados ou não), dos contratos de propaganda, de comodato etc. Todos eles estão voltados ao atingimento do fim empresarial, todos eles contribuem para a valorização (ou, conforme o caso, desvalorização) do estabelecimento e da empresa. 

E é isso que decorre da compreensão atual do “estabelecimento comercial”, definido pelo Código Civil da seguinte forma no art.1.142, destacando-se o seu didático parágrafo único: "Considera-se estabelecimento todo complexo de bens organizado, para exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade empresária.” § 1º O estabelecimento não se confunde com o local onde se exerce a atividade empresarial, que poderá ser físico ou virtual.”. A coerência com a previsão da lei das locações é absoluta, como se vê. 

Nessa lógica, colhe-se na doutrina de Tokars, retratando concepção torrencial, que: 

Neste contexto, surgiu a conclusão doutrinária de que os contratos podem ser considerados como parte integrante do estabelecimento empresarial, desde que se mostrem necessários ao desenvolvimento da atividade, como ocorre, classicamente, com os contratos de franquia, de aluguel, de fornecimento ou de distribuição, entre tantos outros que podem ser mencionados. Como em determinados casos, em certas relações jurídicas a conexão econômica com o fundo de comércio (estabelecimento) é intrínseca, tais contratos seguem, forçadamente, o destino do estabelecimento comercial.7      

Ou, na lição de Marcelo Andrade Féres: 

“No estabelecimento, de fato, além de outros elementos, podem figurar as mercadorias, o mobiliário ou as instalações, o nome empresarial, as invenções, os modelos de utilidades, os desenhos industriais, as marcas, os imóveis, o ponto empresarial e os nomes de domínio. Dessa maneira, concorrem para a composição do estabelecimento bens corpóreos e incorpóreos, móveis e imóveis. Não há qualquer restrição prévia. Tudo depende da sorte da empresa a que se destinam os bens.”8 

Desde que pontuamos acerca do estabelecimento, cumprirá concluir lembrando que a sua alienação ou transferência importará “a sub-rogação do adquirente nos contratos estipulados para exploração do estabelecimento” (artigo 1.148, do Código Civil), vale dizer, o conjunto de contratos o integra, é item do ativo empresarial. Sobre esse dispositivo, ensinou Marcus Elidius Michelli de Almeida: 

A dúvida que poderia existir era se os contratos continuavam a valer após a realização do negócio envolvendo o estabelecimento.

Agora não cabe mais margem a qualquer discussão, uma vez que a norma é expressa em determinar que a transferência do estabelecimento importa na sub-rogação por parte do adquirente aos contratos já existentes, desde que relativos à exploração do próprio estabelecimento e que não seja de caráter pessoal.9 

Ou seja, o aspecto legal da locação integra-se a todo o sistema legal pertinente (exatamente como há de ser, sabe-se) e a lei garante a relevância do intento de uso (e do contratante) sobre a característica (residencial) direta ou física do bem, e assegura estar o direito do locatário decorrente desta determinada locação, integrado ao ativo empresarial. 

Estamos, enfim, diante de uma daquelas situações em que o “ser” cede, em certa medida, à “razão de ser”, nada de novo para os filósofos: “Uma espada nunca matou ninguém; é apenas uma ferramenta nas mãos do assassino”, disse Sêneca (4 AEC/65 DEC) na Roma antiga. 

Ou, para que não nos iludamos ao ver uma residência e possamos, portanto, e concretamente, enxergar um item do estabelecimento e da empresa (a realidade), vem a sempre romântica lembrança de que “O essencial é invisível aos olhos” (Antoine de Saint- Exupéry – 1.900/1.944). Também no mundo dos contratos...

__________

1 COELHO, Fábio Ulhôa. Curso de Direito Comercial - direito de empresa. 1.v. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 90. 

2 2º TACivSP – Ap. 247.217 – 7ª Câmara – Relator Boris Kauffmann, julg. 14.02.1989.

3 SANTOS, Gildo dos. Locação e despejo: comentários à Lei 8.245/91. 7ª ed. rev., ampl. e atual. com as alterações da Lei 12.112/2009. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 390.

4 SOUZA, Sylvio Capanema de. A lei do inquilinato comentada. 8ª ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2.012, p. 240.

5 BARROS, Francisco Carlos Rocha de. Comentários à Lei do Inquilinato. 2ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 1.997, p. 346.

6 STJ – 3ª Turma, RESP 1790074, relatora Ministra Nancy Andrighi, j. 25/06/2.019, ementa. A ação objetivava um imóvel locado para a instalação de uma estação de rádio base (“antena”).

7 TOKARS, Fábio. Estabelecimento Empresarial. São Paulo: LTr, 2.006, p. 174.

8 Verbete “estabelecimento”; Enciclopédia Jurídica da PUCSP, tomo IV (recurso eletrônico): direito comercial / coords. Fábio Ulhoa Coelho, Marcus Elidius Michelli de Almeida - São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2018.

9 PRUX, Oscar Ivan; ALMEIDA, Marcus Elidius Michelli de; HENTZ, Luiz Antonio Soares. Comentários ao Código Civil Brasileiro. Volume X: da sociedade, do estabelecimento e dos institutos complementares. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2006. p. 281.

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Coordenação

Alexandre Junqueira Gomide é doutor e mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Especialista e mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Fundador e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário – IBRADIM. Diretor de Relações Institucionais do Instituto dos Advogados de São Paulo – IASP. Advogado, professor e parecerista.

André Abelha é mestre em Direito Civil pela UERJ. Fundador e presidente do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário - IBRADIM. Presidente da Comissão Especial de Direito Notarial e Registral no Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Professor na pós-graduação em Direito Imobiliário da Puc-Rio e em outras instituições. Sócio do escritório Longo Abelha Advogados.