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Alienação fiduciária de imóvel por instrumento particular: Oportunidade de avanço

A compra e venda com alienação fiduciária possui um regime jurídico próprio, bastante diferente da promessa, e genial em muitos aspectos, inclusive de funding. Não por outra razão, ela entrou no cardápio de incorporadores imobiliários, loteadores e investidores.

16/9/2024

I. Introdução. II. Passado e presente. III. Efeito borboleta. IV. Propostas preliminares. Medida 1: Minutas-padrão nos memoriais de incorporação e loteamento Medida
2: Minutas universais editadas pelo CNJ. Medida 3: Arquivamento e certificação notarial de documentos. Quadro Geral. V. Conclusão.

"Não acho que quem ganhar ou quem perder, nem quem ganhar nem perder, vai ganhar ou perder. Vai todo mundo perder"

Dilma Roussef, 2014

A frase acima geralmente é invocada como galhofa, mas a utilizo por considerá-la sob medida para tratar de uma questão bastante séria.

Este texto é um convite à reflexão de advogados, notários, registradores, magistrados, empreendedores e consumidores, ou de quem simplesmente se interessa pelo assunto. Talvez seja uma provocação ridícula. Mesmo ridícula, se ela instigar alguma ideia sua, depois convertida em ação, cada palavra terá valido a pena. O trem está passando; não o deixemos partir.

William Ury, mundialmente reconhecido no campo da negociação e mediação de disputas, gravou com Simon Sinek uma hipnotizante conversa na qual, entre frases inspiradoras, disse que “o mundo precisa de mais conflitos”1. Embora possa soar estranha, a expressão é apenas uma forma de dizer, com outras palavras, que sempre podemos fazer limonadas; um jeito atual de invocar os antigos chineses, que já enxergavam oportunidade na crise. Todo conflito, quando bem direcionado, pode desencadear verdadeiras transformações.

Sim, a discordância pode ser amiga da evolução, se adotarmos a visão positiva do conflito2, e se aproveitarmos “a energia do atrito causado pela divergência de interesses, ideias e visões de mundo para construir novas realidades, novos relacionamentos, em patamares mais produtivos”3.

Agora que apresentei o espírito deste artigo, estamos prontos para começar.

I. Introdução

A alienação fiduciária de bem imóvel (“AF”), surgida em 1997, foi um verdadeiro propulsor do mercado imobiliário brasileiro nos últimos 30 anos. Inicialmente pensada para o Sistema Financeiro Imobiliário (SFI), ela conquistou o Sistema Financeiro da Habitação (SFH), suplantou a hipoteca, e passou a ser a garantia eleita em quase todos os financiamentos imobiliarios:

Imóveis financiados: AF x hipoteca(Imagem: Fonte: Banco Central do Brasil)

A compra e venda com alienação fiduciária possui um regime jurídico próprio, bastante diferente da promessa, e genial em muitos aspectos, inclusive de funding. Não por outra razão, ela entrou no cardápio de incorporadores imobiliários, loteadores e investidores.

A AF vai além dos financiamentos e empreendimentos imobiliários. Praticamente todo contrato que envolve a alienação de um imóvel pode utilizar essa garantia. Mais do que isso, a AF está à disposição de cooperativas de crédito, administradoras de consórcios imobiliários e de outros credores que desejam utilizá-la para garantir o pagamento de uma dívida, própria ou de terceiro, certa ou estimada, inclusive cláusulas penais.

Estamos diante de um mundo inteiro de possibilidades e negócios típicos e atípicos, divididos em três grandes grupos, assim dispostos para nos ajudar a entender melhor o que está por vir:

Possíveis credores fiduciários(Imagem: Divulgação)

Na mesma medida em que o uso da AF se popularizava, uma discussão foi crescendo, por anos silenciosa, até ganhar, recentemente, as manchetes jurídicas de todo o Brasil.

A resposta é controvertida, mas a pergunta é bem simples: Os contratos do Grupo 3, ao empregarem a AF como garantia, podem ser celebrados por instrumento particular, ou a escritura pública é essencial à sua validade?

Os Grupos 1 e 2 assistem de camarote. Quanto a eles não há dúvida relevante, e seus contratos podem utilizar a forma particular, adotando a escritura se quiserem. Por isso, foquemos no Grupo 3.

Tenha em mente: meu objetivo não é defender posições, e sim fazer com que mais gente compreenda o tanto que está em jogo nessa disputa, e se há algo a fazer para superá-la. Este texto contém três medidas. Se forem descartáveis, que ao menos, a partir delas, algum leitor criativo e perspicaz possa ter sua própria epifania, boa o bastante para transformar-se em soluções não-binárias, que aprimorem nosso sistema extrajudicial em benefício de todos os seus atores e usuários.

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1 SINEK, Simon. A Bit of Optimism: Resolving conflict with William Ury. Podcast disponível aqui. Acesso em 15.09.2024.

2 LONGO, Samantha Mendes. Direito Empresarial e Cidadania: A Responsabilidade da Empresa na Pacificação dos Conflitos. Porto Alegre: Paixão, 2022, p. 26.

3 GRAHAM, Pauline (org.). Mary Parker Follett: Profeta do gerenciamento. Rio de Janeiro: Qualitymark, 1997, p. 298.

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Coordenação

Alexandre Junqueira Gomide é doutor e mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Especialista e mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Fundador e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário – IBRADIM. Diretor de Relações Institucionais do Instituto dos Advogados de São Paulo – IASP. Advogado, professor e parecerista.

André Abelha é mestre em Direito Civil pela UERJ. Fundador e presidente do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário - IBRADIM. Presidente da Comissão Especial de Direito Notarial e Registral no Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Professor na pós-graduação em Direito Imobiliário da Puc-Rio e em outras instituições. Sócio do escritório Longo Abelha Advogados.