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A tragédia provocada pelas enchentes no RS e sua repercussão nos prazos contratuais para a conclusão dos empreendimentos imobiliários

Enchentes históricas devastam o RS em 2024, deixando vítimas, destruição e desalojados. Reconstrução árdua, solidariedade e atrasos nas incorporações imobiliárias devido à calamidade.

13/6/2024

O ano de 2024 ficará marcado na história dos gaúchos por uma catástrofe climática sem precedentes, que afetou a todos, direta ou indiretamente. Uma quantidade jamais vista de chuvas provocou a maior enchente da história e a destruição de parte considerável do Rio Grande do Sul.

Os efeitos e repercussões são ainda incalculáveis, muitas vidas foram perdidas, lares e negócios aniquilados e milhares de pessoas foram desalojadas, passando a viver em abrigos e em casas de familiares ou amigos. Grande parte das indústrias e comércios do Estado ficaram embaixo da água, trabalhadores ilhados e estradas completamente destruídas. 

Certo é que o trabalho de reconstrução será longo. Se algo de marcante e positivo tiraremos da tragédia foi a solidariedade e a união, não só do povo gaúcho, mas como também do povo brasileiro, que vem auxiliando de maneira comovente as pessoas mais necessitadas.

Como não poderia ser diferente, as incorporações imobiliárias no RS também estão sendo impactadas pelo estado de calamidade pública provocada pelas enchentes, especialmente com relação ao cronograma estabelecido para a entrega das obras. É certo que algumas em maior medida do que outras.

Os instrumentos contratuais de promessa de compra e venda, em regra, possuem uma data final para a entrega das obras, admitido um prazo de tolerância de 180 dias, e com a previsão de sua prorrogação em situações de caso fortuito e/ou força maior.

A questão sensível diz respeito a possibilidade ou não da prorrogação do prazo de entrega das obras em função da situação de calamidade pública provocada pelas enchentes no RS para além dos 180 dias de tolerância. 

A relevância do tema decorre do fato de que, após escoado o prazo estabelecido contratualmente para a entrega das unidades, incide a multa contratual e a possibilidade de resolução do contrato por parte do adquirente, nos termos do art. 43-A da lei de incorporações imobiliárias. 

De acordo com o Código Civil, em seu art.393: “O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.” O referido artigo é complementado em seu parágrafo único: “O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.”

Decorre da lei que entre as situações que afastam a responsabilidade civil em razão do rompimento do nexo causal estão os eventos qualificados como caso fortuito ou força maior.  O caso fortuito é definido como o evento totalmente imprevisível decorrente de ato humano ou de evento natural. Já a força maior constitui um evento previsível, mas inevitável ou irresistível, decorrente de uma ou outra causa. 

Em que pese a distinção conceitual, o que importa para efeitos da eventual exclusão da responsabilidade civil é se o evento correlato tem ou não relação com risco do empreendimento ou risco-proveito, ou seja, com a atividade desenvolvida pelo suposto responsável. É preciso constatar se o fato entra ou não no chamado risco do negócio (eventos internos e externos).

O caso fortuito interno é aquele que o risco representado pelo fato é inerente, interno à conduta ou à atividade do agente, de modo que deve responder quando dele decorra o dano. Por outro lado, o caso fortuito externo (ou força maior) é aquele que decorre de causa completamente estranha à conduta do agente, e por isso causa exoneração de responsabilidade. 

Nessa linha doutrinária, aprovou-se o enunciado, na V Jornada de Direito Civil, prevendo que: “O caso fortuito e a força maior somente serão considerados como excludentes da responsabilidade civil quando o fato gerador do dano não for conexo à atividade desenvolvida” (enunciado 443).

Seguindo essa mesma ordem de ideias, o STJ firmou o entendimento que somente o caso fortuito externo exclui o dever de indenizar por parte do fornecedor. 

Entendemos que, pela excepcionalidade, magnitude e ineditismo do fato, a tragédia provocada pelas enchentes no Rio Grande do Sul não tem fato conexo com a atividade desenvolvida pelas incorporadoras, e deva ser interpretada como caso fortuito externo e passível, em tese, da extensão do prazo contratual, além do prazo de tolerância. E isto porque é difícil imaginar que exista alguma obra no Estado do Rio Grande do Sul, que não tenha, de alguma forma, sido impactada pela tragédia das enchentes, seja diretamente pela incursão das águas, seja pela ausência ou redução de recursos humanos, insumos, logística e infraestrutura pública mínima.

Ocorre, no entanto, que as obras foram afetadas em graus e intensidade diferentes, de modo que o prazo de eventual prorrogação da data de entrega das unidades aos adquirentes dependerá da efetiva comprovação, no caso concreto, dos reais impactos no cronograma das obras, a partir de uma vinculação objetiva e responsável dos efeitos da tragédia climática com o retardo do cronograma das obras, em prestígio à boa-fé contratual.

Nesse sentido, inclusive em função do dever de informação estabelecido no Código de Defesa do Consumidor, recomenda-se que os incorporadores, produzam as provas cabíveis à espécie e prestem as devidas informações aos adquirentes sobre os efeitos da tragédia climática no cronograma da obra específica, informando-os justificadamente acerca da eventual necessidade de prorrogação do prazo para entrega das obras, medidas estas que poderão ser determinantes em eventual futura discussão judicial sobre a matéria.

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Coordenação

Alexandre Junqueira Gomide é doutor e mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Especialista e mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Fundador e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário – IBRADIM. Diretor de Relações Institucionais do Instituto dos Advogados de São Paulo – IASP. Advogado, professor e parecerista.

André Abelha é mestre em Direito Civil pela UERJ. Fundador e presidente do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário - IBRADIM. Presidente da Comissão Especial de Direito Notarial e Registral no Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Professor na pós-graduação em Direito Imobiliário da Puc-Rio e em outras instituições. Sócio do escritório Longo Abelha Advogados.