Migalhas Edilícias

Os litígios sobre vícios construtivos e sua abordagem técnica à luz do direito

Em 15 anos, Minha Casa, Minha Vida impulsionou industrialização na construção civil, mas desafios persistem com reclamações de defeitos construtivos e litigância contra a CEF, exigindo estruturação das empresas para diferenciação de responsabilidades e garantias.

7/6/2024

Ao longo de 15 anos do programa MCMV - Minha Casa, Minha Vida, as regras, materiais e processos adotados no setor da construção civil incorporaram diversos mecanismos de industrialização que permitiram uma rápida evolução dos procedimentos e um inegável salto de qualidade do produto final, pois o início do programa se caracterizava por construções predominantemente de alvenaria estrutural, construídas tijolo a tijolo, tendo evoluído para edifícios erguidos em paredes de concreto, em que as formas são pré-fabricadas e montadas na obra, para posterior preenchimento, o que permite a elevação de andares em menos de uma semana.

Mas, ainda que os processos venham se desenvolvendo junto com as próprias regras deste programa, ainda persistem diversas atividades artesanais, que dependem diretamente da ação humana, o que invariavelmente implica possíveis erros de execução e consequentes defeitos, havendo infelizes exemplos na fase de aprendizado do MCMV que são usualmente utilizados para estigmatizar todo um setor, apesar do significativo salto de qualidade dos produtos ao longo dos anos.

Aproveitando este resquício do passado, nos últimos anos assistimos uma escalada de ações repetitivas reclamando vícios construtivos, que em sua quase totalidade se dirigiam ao programa Minha Casa, Minha Vida, propostas apenas contra a CEF - Caixa Econômica Federal, que as redireciona às construtoras,  com características próprias de litigância predatória ou temerária, como alguns setores do judiciário passaram a denominar, com pedidos idênticos e respaldados em sua esmagadora maioria por pareceres técnicos genéricos e não fundamentados.

Esta difícil realidade para o setor produtivo levou à necessidade das empresas  se estruturarem para enfrentar o problema, objetivando diferenciar as atribuições de responsabilidade de forma correta, na medida da responsabilidade técnica do projeto, a partir das características inerentes de cada solução construtiva desenvolvida pela indústria da construção e sempre orientada pelas diretivas de assistência técnica e garantia, como destacam, por exemplo, as recomendações setoriais e o programa "De Olho na Qualidade", implementado pela CEF, que disciplina as regras e padrões construtivos dos programa habitacionais governamentais. 

Primeiramente é necessário fazer a diferenciação entre assistência técnica e manutenção, pois o primeiro consiste  na obrigação do construtor em sanar vícios construtivos, decorrentes de falhas no método de execução ou de projeto e aqueles relacionados aos produtos aplicados, enquanto as atividades de manutenção são inerentes ao usuário ou ao proprietário, que consiste em atender às recomendações do manual de operação e utilização, no que se refere ao uso correto e aplicação das medidas de conservação do bem.

Para melhor entender o que difere um do outro temos sugerido a adoção do princípio dos “3 P” que Punem e dos “3 M” que Mudam, que consiste em diferenciar as patologias endógenas, inerentes à construção, portanto relacionadas à ação do construtor, que compreendem Projetos, Produtos e Produção, enquanto as patologias exógenas fogem ao seu controle e consequentemente elidem sua responsabilidade sobre o defeito, que se relacionam à ausência de Manutenção, Mau uso e ao Meio externo.

Dada a natureza técnica da matéria, para a análise das patologias e consequente classificação dos vícios, que fundamentará a futura atribuição de responsabilidade pelos julgadores, impera no processo judicial a primazia da perícia técnica de engenharia, que é uma atividade devolvida por profissionais especializados, com grande desenvolvimento no país e que se encontra devidamente positivada no nosso ordenamento jurídico, especialmente, no diploma processual civil.

Ao promover a reforma do CPC, foram definidas obrigações essenciais para a condução da prova pericial, inclusive de natureza formal, em que se destaca a norma contida no art. 473, na qual o legislador adentrou no conteúdo do laudo pericial, trazendo requisitos bem delineados referentes à sua elaboração, determinando, dentre outros, que o trabalho do perito contenha a análise técnica ou científica, resposta conclusiva aos quesitos, fundamentação em linguagem simples e com coerência lógica, vedação de emitir opiniões pessoais, mas, principalmente, a indicação do método utilizado, demonstrando ser predominantemente aceito pelos especialistas da respectiva área do conhecimento.

Dessa forma, não obstante as prescrições anteriores serem relevantes em sua totalidade, nos parece que a última delas merece maior atenção, uma vez que esta determinação se relaciona diretamente com o emprego das normas técnicas existentes, sendo que no caso de perícias que envolvam construções, elas devem ser fundamentadas naquelas originárias da ABNT – Associação Brasileira de Normas Técnicas, que congrega um acervo abrangente, representando o estado da arte, fruto do consenso do meio técnico sobre determinado tema.

Embora exista a correta percepção que norma técnica não é lei, elas podem estar vinculadas às leis, como no caso das incorporações (lei 4.591/64), acessibilidade (lei 10.098/09), obras públicas (lei 4.150/62) e licitações (lei 14.133/21), e ainda no CDC, que considera prática abusiva colocar produtos no mercado em desacordo com as normas oficiais, e na sua ausência, com as normas da ABNT, além de existirem diversas decisões que condenam a inobservância às normas técnicas, formando jurisprudência sobre o assunto.

Dessa forma, a elaboração de trabalhos periciais no campo dos vícios construtivos deve se alicerçar primeiramente nestes instrumentos normativos, seguindo as principais normas regulamentadoras, que são a NBR-13.752/96 (perícias de engenharia na construção civil), NBR-15.575/13 (edificações habitacionais – desempenho), NBR-5.671/90 (participação dos  intervenientes em serviços e obras de engenharia e arquitetura), NBR-14.037/14 (diretrizes para elaboração de manuais de uso, operação e manutenção das edificações – requisitos para elaboração e apresentação dos conteúdos), NBR-5.674/12 (manutenção de edificações – requisitos para o sistema de gestão de manutenção), NBR-16.747/20 (inspeção predial - diretrizes, conceitos, terminologia e procedimento) e NBR-17.170/22 (edificações —garantias — prazos recomendados e diretrizes).

Assim, ao elaborar seu laudo, o perito deverá observar questões fundamentais, que garantam a higidez do trabalho pericial, compreendendo a observância dos registros documentais, tais como projetos, memoriais, checklist de entrega, manual de uso e histórico de assistência técnica, elaboração das respostas aos  quesitos, direcionadas pela certeza da pergunta, adoção das técnicas de vistoria de causalidade, emprego dos procedimentos preconizados pelos regramentos normativos da ABNT ou instituições de reconhecida idoneidade, tais como o IBAPE, adoção da metodologia investigativa, com raciocínio lógico e definição do vínculo fático (nexo de causalidade), cuja conclusão deverá conter fundamentação técnica e exatidão.

A perícia não pode se limitar à confecção de um laudo de constatação, simplesmente retratando eventuais defeitos na construção, como muito se tem visto nos casos examinados, mas deve se constituir na elaboração de um laudo de causalidade, contendo a análise do vínculo do eventual defeito constatado, identificando a origem técnica do problema, permitindo a sua correta classificação, sem deixar de ponderar eventual concomitância de causas, seja quanto a origem do problema, seja para sopesar a contribuição de cada parte no agravamento do defeito, conforme previsto na nova edição da NBR-13.752. 

Nesse sentido, a recomendação 16 do CJF, no bojo da adoção de fluxo processual e a padronização dos quesitos para a realização da prova pericial, para as ações judiciais em que se discutem vícios construtivos em imóveis do programa Minha Casa Minha Vida Faixa I, já discrimina requisitos específicos a serem observados pelo perito na elaboração do laudo pericial, consagrando conceitos e procedimentos, tais como:

  1. Análise da construção de acordo com o projeto e memorias descritivos aprovados;
  2. Confirmação efetiva da existência dos problemas reclamados na inicial, com a devida comprovação fotográfica;
  3. Cotejo dos problemas encontrados com os requisitos definidos pelas normas técnicas da ABNT, com especificação dos prazos de garantia dos respectivos itens;
  4. Análise se foram realizadas manutenções rotineiras e periódicas no imóvel e áreas de uso comum, de modo a inibir ou minorar os danos decorrentes das patologias identificadas no imóvel;
  5. Orçamentação dos reparos para corrigir eventuais vícios construtivos, especificando as quantidades dos serviços a serem executados (estimar o custo de forma discriminada item por item) com base na SINAPI - Sistema Nacional de Pesquisa de Custos e Índices da Construção Civil.

Assim, verifica-se claramente a importância do entrelaçamento entre a perícia e as normas técnicas para o deslinde das reclamações referentes ao que genericamente se chama de vício construtivo, cuja exata definição quanto a sua origem e natureza decorre da elaboração de um cuidadoso laudo pericial, da lavra de um profissional especializado, que se utilize de instrumentos técnicos de reconhecida capacidade, resultando na correta definição do nexo de causalidade entre as responsabilidades do construtor/incorporador e aquelas inerentes ao proprietário/usuário do imóvel.

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Coordenação

Alexandre Junqueira Gomide é doutor e mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Especialista e mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Fundador e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário – IBRADIM. Diretor de Relações Institucionais do Instituto dos Advogados de São Paulo – IASP. Advogado, professor e parecerista.

André Abelha é mestre em Direito Civil pela UERJ. Fundador e presidente do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário - IBRADIM. Presidente da Comissão Especial de Direito Notarial e Registral no Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Professor na pós-graduação em Direito Imobiliário da Puc-Rio e em outras instituições. Sócio do escritório Longo Abelha Advogados.