Introdução
Desde tempos imemoriais, existe a prática de parcelamento do solo para construções de unidades imobiliárias para servirem de morada a uma coletividade de pessoas1.
O Brasil não configurou exceção: ainda sob o domínio da Coroa Portuguesa, havia a prática de desmembramento e parcelamento do solo urbano para construir moradas, configurando entre os habitantes daquela época uma coletividade de unidades imobiliárias semelhante às dos tempos atuais2. Essas práticas persistiram, se diversificaram, e os loteamentos são a modalidade de habitação mais comum no país3.
Diante das repercussões sociais e jurídicas dos loteamentos na sociedade brasileira, este texto – sem pretensão de esgotar o tema - fará uma breve retrospectiva histórica e legislativa dessa figura imobiliária no Brasil.
Do decreto-lei 58/37 à Lei de Registros Públicos
Com o declarado objetivo de aumentar a “segurança das transações”, o Decreto-Lei nº 58/37, primeiro diploma normativo referente à figura dos loteamentos no Brasil Republicano4, atingiu parcialmente sua mens legis ao determinar a inscrição do loteamento em registro imobiliário, disciplinar o contrato de compra e venda, e prever a possibilidade de adjudicação compulsória em caso de recusa à outorga da escritura definitiva.
Contudo, os avanços proporcionados pelo DL 58/37 foram insuficientes para lidar com as questões decorrentes do boom demográfico experimentado pelo país, que também aumentava seu grau de industrialização e urbanização5. Esses dois interligados fenômenos foram os principais motivos para o aumento dos fluxos migratórios da população rural para os centros urbanos, que também experimentavam a vinda em massa de imigrantes, o que encareceu os custos de habitação nesses locais.
O resultado foi o acentuamento do déficit habitacional no país, o que impulsionou a difusão de loteamentos e edifícios residenciais com vários andares, configurando um cenário que demandava ajustes na legislação. Nesse contexto, foi concebido outro diploma de grande relevância ao mercado imobiliário: a lei Federal 4.591/64, que trouxe ao ordenamento jurídico o instituto da incorporação imobiliária e aprimorou o conceito de condomínio edilício6.
Em seguida, a comunidade jurídica envidou esforços para a criação de um diploma legal específico para os loteamentos, o que foi refletido no decreto-lei 271/67. Este buscou conferir aos loteamentos as normas de direito civil atinentes à incorporação imobiliária, condicionando essa aplicação a um (segundo) decreto, que jamais foi publicado7.
Além disso, foi ganhando espaço a noção de que aplicação singular de normas de direito civil não era suficiente para atender aos multifacetados desafios dos loteamentos, razão pela qual - já no começo da década de 70 - se debatia, em substituição ao DL 271/67, a criação de lei especial que enfrentaria as questões ambientais, urbanísticas e civis dos loteamentos8.
A lei Federal 6.766/79 ("Lei de Parcelamento do Solo Urbano")
Os reclamos da doutrina surtiram efeito e, após intenso trabalho legislativo, foi promulgada a lei Federal 6.766/79 que, ao introduzir o conceito de parcelamento de solo urbano, apontou que este poderá ser realizado por meio de loteamento ou desmembramento (art. 1º da LF 6.766/79).
Ao definir loteamento, o § 1º do art. 2º da LF 6.766/79 afirma que “Considera-se loteamento a subdivisão de gleba em lotes destinados a edificação, com abertura de novas vias de circulação, de logradouros públicos ou prolongamento, modificação ou ampliação das vias existentes”. Por sua vez, a gleba será fracionada mediante a criação de lotes ou áreas desmembradas, que deverão ser especificadas para criação de matrícula individual no registro de imóveis (art. 20, parágrafo único, da LF 6.766/79).9
Originalmente sem a previsão de um conceito urbanístico de lote, a LF 6.766/79 foi alterada pela Lei Federal nº 9.785/99 em dois principais pontos. O primeiro fora a alteração do art. 3º, caput, da LF 6.766/79, que ora dispõe que somente “será admitido o parcelamento do solo para fins urbanos em zonas urbanas, de expansão urbana ou de urbanização específica, assim definidas pelo plano diretor ou aprovadas por lei municipal”.
No mesmo sentido, a LF 9.785/99 também alterou o parágrafo 4º da LF nº 6.766/79 para dispor que somente “Considera-se lote o terreno servido de infraestrutura básica cujas dimensões atendam aos índices urbanísticos definidos pelo plano diretor ou lei municipal para a zona em que se situe”. Em outros termos, os artigos inseriram à lei especial normas de Direito Urbanístico, que é caracterizado como “o requisito de respeito às próprias limitações pelo Poder Público para disseminação das cidades, tais como as normas que disciplinam o planejamento urbano, o uso e ocupação do solo urbano, e as áreas de interesse especial”10.
Conquanto os requisitos legais específicos para constituição dos loteamentos não serão abordados, é indispensável mencionar que o interessado deve obter da Prefeitura a autorização para o projeto de loteamento, que deverá ser registrado no RGI e estar de acordo com o plano diretor. O loteador também terá o ônus de promover as obras de infraestrutura necessárias, havendo responsabilidade subsidiária do ente municipal com relação a esta obrigação (arts. 37 e seguintes da LF 6.766/79, respectivamente)11.
Verifica-se, portanto, que a despeito de reconhecer que o parcelamento de solo urbano consiste em uma ação humana que independente da aprovação do Poder Público, a LF 6.766/79 condiciona sua legalidade “às disposições desta e as das legislações estaduais e municipais pertinentes” (artigo 2º da LF 6.766/79).
Caso o loteamento não esteja sendo de acordo com as especificações do projeto aprovado, será considerado irregular, cujo saneamento das questões irregulares o transformará em regular. Contudo, no caso mais grave, em que inexiste autorização municipal, o empreendimento será considerado clandestino12. Em ambos os casos, sem prejuízo de responsabilização na esfera cível, a conduta dos loteadores que comercializarem lotes nessas hipóteses poderá ser enquadrada como crime contra a Administração Pública (art. 50 da LF 6.766/79).
Diplomas legais posteriores à LF 6.766/79
Por fim, cumpre apontar – em linha cronológica – os principais diplomas normativos posteriores à LF 6.766/79 que influenciam os loteamentos. A primeira menção é à Constituição Federal de 1988 que, em seu art. 30, VIII, afirma que compete aos Municípios “promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano”.
Além disso, em que pese ter garantido o direito fundamental à propriedade, a CF/88 condicionou esse direito ao cumprimento da função social daquela (art. 5º, XXIII da CF/88). Ao definir os parâmetros para a aferição da função social de um imóvel urbano, o art. 182, § 2º, da CF/88 aponta que “A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor”.
Em seguida, foi promulgado o Código de Defesa do Consumidor (LF 8.078/90), elaborado para equilibrar a relação desigual entre o consumidor e fornecedor. No caso dos loteamentos, as principais repercussões são a inversão do ônus da prova em demandas judiciais, o dever de informação imposto aos loteadores e corretores, e a possibilidade de direito de arrependimento do comprador, no prazo de 7 dias, caso o negócio seja realizado no stand de vendas (arts. 6º, II, III, IV XII, VIII e 49º do CDC e art. 26-A da LF 6.766/79)13.
No início deste século, foi promulgado o Estatuto da Cidade (LC 10.257/01), que disciplina as diretrizes gerais da política urbana previstas no mencionado art. 182 da CF. Nesse diálogo das fontes, verifica-se que a definição da função social e o atendimento das exigências urbanísticas não seguirão um padrão, sendo esse juízo discricionário reservado ao Município quando da análise do projeto de loteamento com as normas de seu plano diretor, o que impacta a concepção e execução dos loteamentos espalhados pelo país.14
Um ano depois do advento do Estatuto da Cidade, foi promulgado o Código Civil (LF 10.406/22). Em que pese sua aplicação subsidiária aos loteamentos em razão da especialidade da LF 6.766/79, o Código Civil promoveu importantes mudanças na estrutura dos condomínios edilícios e regulamentou a criação de condomínio composto por lotes, que estarão necessariamente vinculados a uma fração ideal das áreas comuns na proporção a ser definida no ato de instituição (art. 1.358-A do CC, incluído pela LF 13.465/17)15.
Conclusão
Esse breve retrospecto permite duas conclusões.
A primeira é a dificuldade do legislador, até o advento da LF 6.766/79, em adequadamente regulamentar os loteamentos, que, por sua ampla repercussão na “expansão e gênese” da cidade16, possuem uma complexidade superior aos condomínios edilícios.
A segunda é a efetividade do vanguardista conceito de parcelamento de solo urbano, cuja legalidade está condicionada às limitações impostas pelas normas legais e urbanísticas. Assim, ao englobar os aspectos urbanísticos, ambientais, registrais e civis dos loteamentos, a LF 6.766/79 permitiu uma atuação mais eficaz do Poder Público e da sociedade civil no combate aos multifacetados desafios impostos pela atividade milenar de parcelamento do solo urbano. Não por outro motivo, após mais de quatro décadas de vigência (um recorde), a LF 6.766/79 continua a ser o principal diploma normativo da matéria.
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1 SILVA, Marcos Roberto Alves; CAMPOS, Camila Ribeiro. FINIZOLA, Carla Francisca Galvão. NOVAES, Eliene Greek Novaes. ALVARES, Liliana de Castro. MOURA, Maria Letícia Vieira. Impactos sociais e urbanísticos dos loteamentos fechados no Setor Sul de Uberlândia – um estudo de caso. Revista Caminhos da Geografia, v. 13, nº 43. Out/2012. 2012.
2 Disponível aqui. Acesso em 30.5.22.
3 CHEZZI, Bernardo Amorim. Condomínio de Lotes: aspectos civis, registrais e urbanísticos. 2ª ed. São Paulo: Editora Quartier Latin, 2022
4 Este texto não abordará a Lei de Terras de 1850 ou outro diploma normativo anterior ao decreto-lei 58/37.
5 Disponível aqui. Acesso em 11.8.23.
6 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e Incorporações. 14ª ed. Editora Gen. Rio de Janeiro. 2020.
7 CHEZZI, Bernardo Amorim. Condomínio de Lotes: aspectos civis, registrais e urbanísticos. 2ª ed. São Paulo: Editora Quartier Latin, 2022.
8 DIAS Rodrigo Antonio e RIBEIRO, Vinicius (coord.). Loteamentos e Condomínio de Lotes: Aspectos Contratuais, Societários, Regulatórios e Fiscais. São Paulo: Quartier Latin, 2019, p. 20.
9 Nesse interim, contudo, foi promulgada a Lei Federal nº 6.015/73 (‘Lei de Registros Públicos”), que pavimentou a estrutura pela qual funda-se o direito imobiliário moderno brasileiro e, portanto, de umbilical importância aos loteamentos.
11 RODRIGUES, Carlos Alexandre. Como lotear uma Gleba – Parcelamento e Desmembramento do Solo, Loteamento e Condomínio de Lotes. Leme: Editora Imperium, 2023.
12 Recurso Especial nº 1.616.348/RS, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 13.12.16.
13 KINUAGA, Marcus Vinicius in DIAS. Rodrigo Antonio e RIBEIRO, Vinicius (coord.). Loteamentos e Condomínio de Lotes: Aspectos Contratuais, Societários, Regulatórios e Fiscais. São Paulo: Quartier Latin, 2019, p. 150 e ss.
14 Emiliasi, Demétrios. Condomínio de Lotes. Editora BH. 1ª ed. São Paulo. p. 93.
15 Ademais, a LF 13.465/17 alterou o parágrafo 7º da LF 6.766/79 para fazer constar o condomínio de lotes, bem como o art. 8º daquela lei positivou a figura do loteamento de acesso controlado.
16 CHEZZI, Bernardo Amorim. Condomínio de Lotes: aspectos civis, registrais e urbanísticos. 2ª ed. São Paulo: Editora Quartier Latin, 2022.