Migalhas Edilícias

Uma (breve) retrospectiva histórica e legislativa dos loteamentos no Brasil

Ao englobar os aspectos urbanísticos, ambientais, registrais e civis dos loteamentos, a LF nº 6.766/79 permitiu uma atuação mais eficaz do Poder Público e da sociedade civil no combate aos multifacetados desafios impostos pela atividade milenar de parcelamento do solo urbano.

21/9/2023

Introdução  

Desde tempos imemoriais, existe a prática de parcelamento do solo para construções de unidades imobiliárias para servirem de morada a uma coletividade de pessoas1.

O Brasil não configurou exceção: ainda sob o domínio da Coroa Portuguesa, havia a prática de desmembramento e parcelamento do solo urbano para construir moradas, configurando entre os habitantes daquela época uma coletividade de unidades imobiliárias semelhante às dos tempos atuais2.  Essas práticas persistiram, se diversificaram, e os loteamentos são a modalidade de habitação mais comum no país3.

Diante das repercussões sociais e jurídicas dos loteamentos na sociedade brasileira, este texto – sem pretensão de esgotar o tema - fará uma breve retrospectiva histórica e legislativa dessa figura imobiliária no Brasil.

 Do decreto-lei 58/37 à Lei de Registros Públicos 

Com o declarado objetivo de aumentar a “segurança das transações”, o Decreto-Lei nº 58/37, primeiro diploma normativo referente à figura dos loteamentos no Brasil Republicano4, atingiu parcialmente sua mens legis ao determinar a inscrição do loteamento em registro imobiliário, disciplinar o contrato de compra e venda, e prever a possibilidade de adjudicação compulsória em caso de recusa à outorga da escritura definitiva.

Contudo, os avanços proporcionados pelo DL 58/37 foram insuficientes para lidar com as questões decorrentes do boom demográfico experimentado pelo país, que também aumentava seu grau de industrialização e urbanização5. Esses dois interligados fenômenos foram os principais motivos para o aumento dos fluxos migratórios da população rural para os centros urbanos, que também experimentavam a vinda em massa de imigrantes, o que encareceu os custos de habitação nesses locais.

O resultado foi o acentuamento do déficit habitacional no país, o que impulsionou a difusão de loteamentos e edifícios residenciais com vários andares, configurando um cenário que demandava ajustes na legislação. Nesse contexto, foi concebido outro diploma de grande relevância ao mercado imobiliário: a lei Federal 4.591/64, que trouxe ao ordenamento jurídico o instituto da incorporação imobiliária e aprimorou o conceito de condomínio edilício6.

Em seguida, a comunidade jurídica envidou esforços para a criação de um diploma legal específico para os loteamentos, o que foi refletido no decreto-lei 271/67.  Este buscou conferir aos loteamentos as normas de direito civil atinentes à incorporação imobiliária, condicionando essa aplicação a um (segundo) decreto, que jamais foi publicado7.

Além disso, foi ganhando espaço a noção de que aplicação singular de normas de direito civil não era suficiente para atender aos multifacetados desafios dos loteamentos, razão pela qual - já no começo da década de 70 - se debatia, em substituição ao DL 271/67, a criação de lei especial que enfrentaria as questões ambientais, urbanísticas e civis dos loteamentos8. 

 A lei Federal 6.766/79 ("Lei de Parcelamento do Solo Urbano") 

Os reclamos da doutrina surtiram efeito e, após intenso trabalho legislativo, foi promulgada a lei Federal 6.766/79 que, ao introduzir o conceito de parcelamento de solo urbano, apontou que este poderá ser realizado por meio de loteamento ou desmembramento (art. 1º da LF 6.766/79).

Ao definir loteamento, o § 1º do art. 2º da LF 6.766/79 afirma que “Considera-se loteamento a subdivisão de gleba em lotes destinados a edificação, com abertura de novas vias de circulação, de logradouros públicos ou prolongamento, modificação ou ampliação das vias existentes”. Por sua vez, a gleba será fracionada mediante a criação de lotes ou áreas desmembradas, que deverão ser especificadas para criação de matrícula individual no registro de imóveis (art. 20, parágrafo único, da LF 6.766/79).9

Originalmente sem a previsão de um conceito urbanístico de lote, a LF 6.766/79 foi alterada pela Lei Federal nº 9.785/99 em dois principais pontos. O primeiro fora a alteração do art. 3º, caput, da LF 6.766/79, que ora dispõe que somente “será admitido o parcelamento do solo para fins urbanos em zonas urbanas, de expansão urbana ou de urbanização específica, assim definidas pelo plano diretor ou aprovadas por lei municipal”. 

 No mesmo sentido, a LF 9.785/99 também alterou o parágrafo 4º da LF nº 6.766/79 para dispor que somente “Considera-se lote o terreno servido de infraestrutura básica cujas dimensões atendam aos índices urbanísticos definidos pelo plano diretor ou lei municipal para a zona em que se situe”.  Em outros termos, os artigos inseriram à lei especial normas de Direito Urbanístico, que é caracterizado como “o requisito de respeito às próprias limitações pelo Poder Público para disseminação das cidades, tais como as normas que disciplinam o planejamento urbano, o uso e ocupação do solo urbano, e as áreas de interesse especial”10.   

Conquanto os requisitos legais específicos para constituição dos loteamentos não serão abordados, é indispensável mencionar que o interessado deve obter da Prefeitura a autorização para o projeto de loteamento, que deverá ser registrado no RGI e estar de acordo com o plano diretor. O loteador também terá o ônus de promover as obras de infraestrutura necessárias, havendo responsabilidade subsidiária do ente municipal com relação a esta obrigação (arts. 37 e seguintes da LF 6.766/79, respectivamente)11.

Verifica-se, portanto, que a despeito de reconhecer que o parcelamento de solo urbano consiste em uma ação humana que independente da aprovação do Poder Público, a LF 6.766/79 condiciona sua legalidade “às disposições desta e as das legislações estaduais e municipais pertinentes” (artigo 2º da LF 6.766/79).  

Caso o loteamento não esteja sendo de acordo com as especificações do projeto aprovado, será considerado irregular, cujo saneamento das questões irregulares o transformará em regular. Contudo, no caso mais grave, em que inexiste autorização municipal, o empreendimento será considerado clandestino12. Em ambos os casos, sem prejuízo de responsabilização na esfera cível, a conduta dos loteadores que comercializarem lotes nessas hipóteses poderá ser enquadrada como crime contra a Administração Pública (art. 50 da LF 6.766/79).

Diplomas legais posteriores à LF 6.766/79

Por fim, cumpre apontar – em linha cronológica – os principais diplomas normativos posteriores à LF 6.766/79 que influenciam os loteamentos. A primeira menção é à Constituição Federal de 1988 que, em seu art. 30, VIII, afirma que compete aos Municípios “promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano”.

 Além disso, em que pese ter garantido o direito fundamental à propriedade, a CF/88 condicionou esse direito ao cumprimento da função social daquela (art. 5º, XXIII da CF/88). Ao definir os parâmetros para a aferição da função social de um imóvel urbano, o art. 182, § 2º, da CF/88 aponta que “A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor”.

Em seguida, foi promulgado o Código de Defesa do Consumidor (LF 8.078/90), elaborado para equilibrar a relação desigual entre o consumidor e fornecedor. No caso dos loteamentos, as principais repercussões são a inversão do ônus da prova em demandas judiciais, o dever de informação imposto aos loteadores e corretores, e a possibilidade de direito de arrependimento do comprador, no prazo de 7 dias, caso o negócio seja realizado no stand de vendas (arts.  6º, II, III, IV XII, VIII e 49º do CDC e art. 26-A da LF 6.766/79)13.

No início deste século, foi promulgado o Estatuto da Cidade (LC 10.257/01), que disciplina as diretrizes gerais da política urbana previstas no mencionado art. 182 da CF. Nesse diálogo das fontes, verifica-se que a definição da função social e o atendimento das exigências urbanísticas não seguirão um padrão, sendo esse juízo discricionário reservado ao Município quando da análise do projeto de loteamento com as normas de seu plano diretor, o que impacta a concepção e execução dos loteamentos espalhados pelo país.14

Um ano depois do advento do Estatuto da Cidade, foi promulgado o Código Civil (LF 10.406/22). Em que pese sua aplicação subsidiária aos loteamentos em razão da especialidade da LF 6.766/79, o Código Civil promoveu importantes mudanças na estrutura dos condomínios edilícios e regulamentou a criação de condomínio composto por lotes, que estarão necessariamente vinculados a uma fração ideal das áreas comuns na proporção a ser definida no ato de instituição (art. 1.358-A do CC, incluído pela LF 13.465/17)15.          

Conclusão

Esse breve retrospecto permite duas conclusões.

A primeira é a dificuldade do legislador, até o advento da LF 6.766/79, em adequadamente regulamentar os loteamentos, que, por sua ampla repercussão na “expansão e gênese” da cidade16, possuem uma complexidade superior aos condomínios edilícios.

A segunda é a efetividade do vanguardista conceito de parcelamento de solo urbano, cuja legalidade está condicionada às limitações impostas pelas normas legais e urbanísticas. Assim, ao englobar os aspectos urbanísticos, ambientais, registrais e civis dos loteamentos, a LF 6.766/79 permitiu uma atuação mais eficaz do Poder Público e da sociedade civil no combate aos multifacetados desafios impostos pela atividade milenar de parcelamento do solo urbano. Não por outro motivo, após mais de quatro décadas de vigência (um recorde), a LF 6.766/79 continua a ser o principal diploma normativo da matéria.

__________

1 SILVA, Marcos Roberto Alves; CAMPOS, Camila Ribeiro. FINIZOLA, Carla Francisca Galvão. NOVAES, Eliene Greek Novaes. ALVARES, Liliana de Castro. MOURA, Maria Letícia Vieira. Impactos sociais e urbanísticos dos loteamentos fechados no Setor Sul de Uberlândia – um estudo de caso. Revista Caminhos da Geografia, v. 13, nº 43. Out/2012. 2012.

2 Disponível aqui. Acesso em 30.5.22.

3 CHEZZI, Bernardo Amorim. Condomínio de Lotes: aspectos civis, registrais e urbanísticos.  2ª ed. São Paulo: Editora Quartier Latin, 2022

4 Este texto não abordará a Lei de Terras de 1850 ou outro diploma normativo anterior ao decreto-lei 58/37.

5 Disponível aqui. Acesso em 11.8.23.

6 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e Incorporações. 14ª ed. Editora Gen. Rio de Janeiro. 2020.

7 CHEZZI, Bernardo Amorim. Condomínio de Lotes: aspectos civis, registrais e urbanísticos.  2ª ed. São Paulo: Editora Quartier Latin, 2022.

8 DIAS Rodrigo Antonio e RIBEIRO, Vinicius (coord.). Loteamentos e Condomínio de Lotes: Aspectos Contratuais, Societários, Regulatórios e Fiscais. São Paulo: Quartier Latin, 2019, p. 20. 

9 Nesse interim, contudo, foi promulgada a Lei Federal nº 6.015/73 (‘Lei de Registros Públicos”), que pavimentou a estrutura pela qual funda-se o direito imobiliário moderno brasileiro e, portanto, de umbilical importância aos loteamentos.

10 DA SILVA, José Afonso. Direito Urbanístico Brasileiro. 2ª ed. São Paulo.

11 RODRIGUES, Carlos Alexandre. Como lotear uma Gleba – Parcelamento e Desmembramento do Solo, Loteamento e Condomínio de Lotes. Leme: Editora Imperium, 2023.

12 Recurso Especial nº 1.616.348/RS, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 13.12.16.

13 KINUAGA, Marcus Vinicius in DIAS. Rodrigo Antonio e RIBEIRO, Vinicius (coord.). Loteamentos e Condomínio de Lotes: Aspectos Contratuais, Societários, Regulatórios e Fiscais. São Paulo: Quartier Latin, 2019, p. 150 e ss.

14 Emiliasi, Demétrios. Condomínio de Lotes. Editora BH. 1ª ed. São Paulo. p. 93.

15 Ademais, a LF 13.465/17 alterou o parágrafo 7º da LF 6.766/79 para fazer constar o condomínio de lotes, bem como o art. 8º daquela lei positivou a figura do loteamento de acesso controlado.

16 CHEZZI, Bernardo Amorim. Condomínio de Lotes: aspectos civis, registrais e urbanísticos.  2ª ed. São Paulo: Editora Quartier Latin, 2022.

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Coordenação

Alexandre Junqueira Gomide é doutor e mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Especialista e mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Fundador e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário – IBRADIM. Diretor de Relações Institucionais do Instituto dos Advogados de São Paulo – IASP. Advogado, professor e parecerista.

André Abelha é mestre em Direito Civil pela UERJ. Fundador e presidente do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário - IBRADIM. Presidente da Comissão Especial de Direito Notarial e Registral no Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Professor na pós-graduação em Direito Imobiliário da Puc-Rio e em outras instituições. Sócio do escritório Longo Abelha Advogados.