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A lei do superendividamento e o crédito responsável no mercado imobiliário

O tema é sensível, de extrema relevância, e deve ser tratado à luz da legislação, visando à prevenção e tratamento do superendividamento.

17/8/2023

Quase dois anos após a promulgação da lei 14.181/2021 ("Lei do superendividamento") a inadimplência cresce em ritmo acelerado. Em abril de 2023, 71 milhões de consumidores encontravam-se em situação de endividamento1. De acordo com pesquisa realizada pela Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) e pelo Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil), 40% dos brasileiros estavam com o nome "negativado"2. O número de dívidas em atraso aumentou 18% em relação ao mesmo mês de 20223, concentrando-se a maior parte em dívidas com bancos (64%) e sendo a faixa etária de 30 a 39 anos com a participação mais expressiva dentre os inadimplentes.

A mesma pesquisa indica que 25% dos entrevistados afirmaram ter realizado alguma compra sabendo que não conseguiria adimplir, no trimestre anterior à pesquisa, e que 53% dos inadimplentes tem gastos superiores ao que o orçamento permite.

O tema é sensível, de extrema relevância, e deve ser tratado à luz da legislação, visando à prevenção e tratamento do superendividamento. Fato é que com certa frequência o Judiciário tem sido instado a solucionar conflitos relacionados à situação de superendividamento.

Nesse sentido, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou em 2022 cartilha de orientação para autuação do Judiciário no tratamento do superendividamento do consumidor, em consonância com a norma legal, que tem por finalidade estabelecer diretrizes mínimas e procedimentos uniformes para enfrentamento do tema4.

O superendividamento é definido pelo parágrafo 1º, do art.54-A, da lei 8.078/90 ("Código de Defesa do Consumidor") como a "impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação".

O decreto 11.150/22 regulamentou a preservação e o não comprometimento do mínimo existencial, para fins de prevenção, tratamento e conciliação de situações de superendividamento, estabelecendo como mínimo existencial o percentual de 25% (vinte e cinco por cento) do salário-mínimo vigente para o ano de 2022, como quantia necessária para o pagamento de despesas básicas.

Ato contínuo, o decreto 11.150/22 foi alterado pelo decreto 11.567/23 para atualizar o valor correspondente ao mínimo existencial para R$ 600,00 (seiscentos reais).

O ponto central da lei é a preservação do mínimo existencial do consumidor, conforme regulamentação, a fim de se evitar que as dívidas de consumo ultrapassem a sua renda mensal.

Nesse sentido, a lei acrescentou procedimento específico, nos artigos 104-A e 104-B, para repactuação das dívidas do consumidor superendividado com a instalação de audiência de conciliação com apresentação de plano de pagamento, e se frustrada, a instauração de processo para revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas remanescentes mediante plano judicial compulsório. Estão excluídas do procedimento de repactuação de dívidas aquelas oriundas de contratos de financiamento imobiliário ou de crédito com garantia real.

Não obstante haver previsão em lei para exclusão de dívidas decorrentes de financiamento imobiliário e de créditos com garantia real do processo de repactuação de dívidas, o fornecedor de crédito de natureza imobiliária, incluindo incorporadores e loteadores, deve observar o dever de avaliar previamente à contratação de venda, e de forma responsável, as condições de crédito do adquirente de unidade imobiliária e/ou lote.

A Lei do Superendividamento incluiu no art.54-D, II, obrigação ao fornecedor do crédito de avaliação prévia e de forma responsável das condições de crédito do consumidor, por meio de informações disponíveis do consumidor em bancos de dados de proteção ao crédito, sob pena de acarretar judicialmente a redução dos juros, dos encargos ou de qualquer acréscimo ao principal, bem como dilação do prazo de pagamento previsto no contrato original, conforme a gravidade da conduta do fornecedor e sem prejuízo de outras sanções e de indenização por perdas e danos, patrimoniais e morais ao consumidor, nos termos do parágrafo único do art. 54-D.

Trata-se de um importante ponto de cautela ao empreendedor. Como se verifica, a lei não traz métricas para aplicação da sanção, apesar da regulamentação que diz respeito ao não comprometimento do mínimo existencial pelo decreto  11.567/23.

Se eventualmente aplicada a sanção referida no parágrafo único do art. 54-D, pelo Poder Judiciário, isto é, por um terceiro que não faz parte da relação jurídica, impactos relevantes podem ser causados ao incorporador, ao loteador, e ao mercado imobiliário como um todo.

Por essa razão a importância do fornecimento de crédito responsável, após análise prévia das condições do adquirente de imóvel, é essencial para preservação da segurança jurídica do mercado imobiliário. Quanto mais cautelosa for a análise pelo empreendedor sobre a situação de consumo do adquirente, menor será o percentual de desfazimento de contratos imobiliários e de risco de aplicação de sanções.

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1 Disponível aqui.

2 Disponível aqui.

3 Disponível aqui.

4 Disponível aqui.

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Coordenação

Alexandre Junqueira Gomide é doutor e mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Especialista e mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Fundador e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário – IBRADIM. Diretor de Relações Institucionais do Instituto dos Advogados de São Paulo – IASP. Advogado, professor e parecerista.

André Abelha é mestre em Direito Civil pela UERJ. Fundador e presidente do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário - IBRADIM. Presidente da Comissão Especial de Direito Notarial e Registral no Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Professor na pós-graduação em Direito Imobiliário da Puc-Rio e em outras instituições. Sócio do escritório Longo Abelha Advogados.