A maior controvérsia sobre o Regime Especial de Tributação (RET) e o Patrimônio de Afetação era (e esperamos que não seja mais) sobre a possibilidade de aproveitamento do RET após a extinção de Patrimônio de Afetação. Isso porque, o RET está vinculado à tributação da receita de venda das unidades decorrentes da incorporação imobiliária, o que pode ocorrer durante a vigência da obra, ou após o seu encerramento, momento no qual haverá a extinção do Patrimônio de Afetação.
A questão controvertida, portanto, trata da possibilidade de tributação da receita de venda das unidades pelo RET, mesmo após a conclusão das obras, com a consequente extinção do Patrimônio de Afetação.
Este artigo abordará as recentes alterações trazidas pela lei Federal 14.382/2022 que, com o objetivo de sanar as discussões sobre o tema, incluiu os parágrafos 1º e 3º ao art. 31-E da lei Federal 4.591/64 (Lei de Incorporações Imobiliárias) – que tratam sobre o Patrimônio de Afetação e sobre o RET.
Patrimônio de Afetação x Regime Especial de Tributação
Nos termos do art. 31-A da Lei de Incorporações Imobiliárias, o Patrimônio de Afetação é baseado na segregação do patrimônio da incorporação (entendido como o terreno e as acessões objeto da incorporação, bem como os bens e direitos a ele vinculados), do patrimônio do incorporador. Por meio da afetação, os bens e direitos da incorporação deixam de se comunicar com bens, direitos e demais obrigações do patrimônio geral do incorporador, de modo que dívidas e obrigações não vinculadas à incorporação não podem alcançar a solvência do empreendimento imobiliário.
O objetivo principal da criação do Patrimônio de Afetação é proteger a incorporação contra os riscos patrimoniais de outros negócios da incorporadora1, de modo a garantir que todas as receitas da incorporação sejam direcionadas ao empreendimento, assegurando, assim, a sua conclusão. Trata-se, portanto, de medida que traz maior segurança aos adquirentes e investidores.
Com o objetivo de incentivar as incorporadas a afetarem o patrimônio, a legislação tributária instituiu o RET, regulamentado pela lei Federal 10.931/04. Conforme art. 2º, II, desta lei, a afetação do patrimônio é requisito essencial para adesão ao RET.
Por meio do RET, a receita de venda de unidades imobiliárias fica sujeita à tributação de 4%. A alíquota de 4% corresponde ao pagamento (i) do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas – IRPJ, (ii) Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – CSLL, (iii) Contribuição para os Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público - PIS/PASEP e (iv) Contribuição para Financiamento da Seguridade Social - COFINS.
Esse regime tributário (RET) é aplicável às incorporadoras em caráter opcional e irretratável, enquanto perdurarem os direitos de crédito ou obrigações do incorporador perante os adquirentes dos imóveis que compõem a incorporação. Ou seja, mesmo após o término da obra e obtenção do habite-se, a receita decorrente da venda das unidades imobiliárias permanece sujeita ao RET.
Em comparação ao Lucro Presumido, o RET é vantajoso, na maioria dos casos, não apenas pela simplificação do recolhimento (alíquota única e conjunta), mas também pela carga tributária total. No Lucro Presumido, a receita de venda de unidades imobiliárias poderá ser tributada por até 6,73% (alíquota efetiva de IRPJ, CSLL, PIS e COFINS). Além disso, as receitas financeiras e variações monetárias são tributadas diretamente pelo IRPJ e pela CSLL, com alíquota efetiva que pode chegar a 34%.
Assim, por mais que o Lucro Presumido seja uma (boa) opção para as incorporadoras, nota-se que a adesão ao RET tende a ser a alternativa mais vantajosa sob o ponto de vista tributário, permitindo uma redução atrativa da carga tributária.
Extinção do Patrimônio de Afetação – Desnecessidade de averbação de ato específico
Até a entrada em vigor da lei Federal 14.382/22, o texto do art. 31-E da Lei de Incorporações Imobiliárias se limitava a prever quais as hipóteses de extinção do Patrimônio de Afetação. Contudo, a lei não deixava claro se, nas hipóteses previstas no inciso I do mencionado artigo2, ocorreria a extinção automática do Patrimônio de Afetação ou se seria necessário providenciar averbação específica na matrícula imobiliária.
Tal omissão abria espaço para interpretação por parte dos oficiais de registro de imóveis, que, por muitas vezes, com fundamento no art. 252 da lei Federal 6.015/733, exigiam que os adquirentes das unidades imobiliárias ou a própria incorporadora promovessem averbação específica na matrícula-mãe ou nas certidões de matrícula autônomas, consolidando a extinção do Patrimônio de Afetação para que, então, somente após esse ato registral, fosse possível realizar novos atos de alienação do imóvel. Isso gerava um ônus para o incorporador e o adquirente, que precisavam arcar com o pagamento de emolumentos.
Com a inclusão do parágrafo 1º ao art. 31-E, pela lei Federal 14.382/2022, fica consolidado que não há necessidade de averbação específica de extinção do Patrimônio de Afetação para os casos previstos no inciso I do artigo, bastando, portanto, que seja providenciada a "averbação da construção, registro dos títulos de domínio ou de direito de aquisição em nome dos respectivos adquirentes e, quando for o caso, extinção das obrigações do incorporador perante a instituição financiadora do empreendimento".
Fato é que, na prática, já existiam oficiais do registro de imóveis que entendiam pela desnecessidade da averbação específica da extinção do Patrimônio de Afetação. Contudo, ainda existiam aqueles que mantinham a exigência de averbação específica, o que gerava insegurança para o mercado.
Assim, seguindo os objetivos da lei Federal 14.382/22, a entrada em vigor do parágrafo 1º do art. 31-E da Lei de Incorporações Imobiliárias encerra qualquer discussão quanto à necessidade de averbação específica na matrícula do imóvel da extinção do Patrimônio de Afetação, de modo a trazer maior segurança aos adquirentes de unidades autônomas e às incorporadoras, além de evitar procedimentos burocráticos desnecessários, permitindo o encerramento da incorporação imobiliária de forma mais célere.
Debate envolvendo o RET e a extinção do Patrimônio de Afetação. Benefícios das alterações trazidas pela lei Federal 14.382/22
Quanto ao RET, apesar de a existência do Patrimônio de Afetação ser condição para adesão a esse regime de tributação, a antiga redação do art. 31-E da Lei de Incorporações Imobiliárias não deixava claro se, com a extinção do Patrimônio de Afetação, ocorreria também a extinção do RET. Esse cenário de ausência de previsão legislativa expressa gerou discussões junto à Receita Federal e, consequentemente, insegurança às incorporadoras quanto à opção e à forma de tributação pelo regime especial.
Na Solução de Consulta Cosit nº 244/14, por exemplo, a Receita Federal proferiu entendimento no sentido de que a extinção do Patrimônio de Afetação impediria a manutenção da incorporadora no RET, como uma aplicação da lógica dos requisitos para adesão ao RET. Ou seja, se o Patrimônio de Afetação é um requisito inafastável para adesão ao RET, não seria possível se manter no RET após a extinção do Patrimônio de Afetação. Nesse sentido, as unidades comercializadas até a extinção do Patrimônio de Afetação (mesmo que os valores financiados fossem recebidos posteriormente) estariam sujeitas ao RET, enquanto aquelas unidades vendidas após a extinção do Patrimônio de Afetação não seriam tributadas pelo regime especial.
Fato é que essa discussão deveria ter se encerrado com a inclusão do art. 11-A da lei Federal 10.931/044 por meio da lei Federal 13.970/19, que vincula a vigência do RET até o "recebimento integral do valor das vendas de todas as unidades". Ou seja, com a inclusão do artigo, estaria claro que, mesmo após a extinção do Patrimônio de Afetação, a receita advinda da venda de todas as unidades que compõem o memorial de incorporação, independentemente da data de recebimento da integralidade do pagamento, seriam tributadas pelo RET. Porém, como a alteração legislativa só aconteceu em 2019, a Receita Federal adotou o posicionamento de que essa alteração só estaria vigente para "receitas das unidades que compõem o memorial de incorporação e quando auferidas após 27 de dezembro de 2019" (Solução de Consulta Cosit nº 28 de 2022).
De acordo com o posicionamento da Receita Federal, o marco temporal da alteração legislativa deveria acontecer, uma vez que a norma não tem natureza interpretativa, sendo impossível sua retroação. Isso porque (de acordo com a Receita Federal) até a edição da lei Federal 13.970/2019 "não se sujeitavam ao RET-Incorporação as receitas decorrentes das vendas de unidades imobiliárias realizadas após a conclusão da respectiva edificação".
Assim, a inclusão do §3º ao art. 31-E pela lei Federal 14.382/2022 serviu para esclarecer que a extinção do Patrimônio de Afetação não implica extinção do RET. Ou seja, para fins tributários, a incorporadora não está sujeita às limitações temporais do Patrimônio de Afetação. Essa é uma questão bastante relevante e que impactará os negócios das incorporadoras, na medida em que traz maior clareza e segurança quanto à aplicabilidade do RET.
Contudo, e considerando todo o histórico de Soluções de Consulta detalhado acima, apesar de recebido com conforto pelos contribuintes, a alteração do §3º do art. 31-E da Lei de Incorporações Imobiliárias poderá não ser tão bem recebida pela Receita Federal, uma vez que o mesmo posicionamento adotado quando da alteração ocorrida em 2019 pode vir a ser aplicado novamente. Assim, é possível (mas não se pode prever) que a Receita Federal apresente entendimento de que apenas as receitas de venda decorrentes de operações feitas após a publicação da lei Federal 14.382/22 - que tenham ocorrido após a extinção do Patrimônio de Afetação - poderão ser tributadas pelo RET.
A nosso ver, ao contrário do posicionamento da Receita Federal, a inclusão do art. 11-A à lei Federal 10.931/044 por meio da lei Federal 13.970/19, bem como a alteração da Lei de Incorporações, no que diz respeito ao RET, pela lei Federal 14.382/2022, têm sim natureza interpretativa. Isso porque, tais inclusões não criaram regras para aplicação do RET, tão somente esclareceram a adequada interpretação da abrangência de sua aplicação, ou seja: que o RET se aplica em relação a todas as unidades de uma incorporação, independentemente de essas unidades serem vendidas antes ou depois da extinção do Patrimônio de Afetação, ficando toda a receita decorrente da venda das unidades imobiliárias sujeita à tributação pelo regime especial.
Apesar dessas considerações, será necessário aguardar o posicionamento da Receita Federal quanto ao tema para se ter maior segurança quanto à tributação, pelo RET, da receita de venda das unidades imobiliárias após a extinção do Patrimônio de Afetação para incorporações que já tenham desafetado o patrimônio antes da vigência da lei Federal 14.382/22.
Impactos no setor das incorporações
Não há dúvidas de que o objetivo da lei Federal 14.382/2022 foi de desburocratizar procedimentos, reduzir prazos e custos, bem como gerar maior segurança aos adquirentes de imóveis, de modo a estimular o desenvolvimento do mercado imobiliário. Certo é que muitas alterações trazidas pela lei Federal 14.382/2022 visam esclarecer e consolidar, por meio da inclusão de dispositivos nas legislações correlatas, procedimentos que já vinham sendo utilizados no mercado.
Nesse sentido, acredita-se que a entrada em vigor desses dispositivos pode gerar um aquecimento do mercado, uma vez que a segurança quanto aos procedimentos ali tratados pode estimular tanto novos investimentos no mercado que gerarão novos empreendimentos, quanto a aquisição de unidades.
No mesmo sentido, a garantia de que a extinção do Patrimônio de Afetação não resulta na exclusão do RET permite que os incorporadores tenham maior segurança de utilizar o regime especial na tributação das receitas decorrentes da incorporação imobiliária. Contudo, é importante monitorar se a Receita Federal irá adotar posicionamento restritivo, aplicando a alteração do §3º do art. 31-E apenas para receitas de vendas a partir de 2023.
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1 CHALHUB, Melhim Namem – Da incorporação imobiliária – 3ª Ed. revista e atualizada – Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2010, p.66
2 Art. 31-E. O patrimônio de afetação extinguir-se-á pela:
I - averbação da construção, registro dos títulos de domínio ou de direito de aquisição em nome dos respectivos adquirentes e, quando for o caso, extinção das obrigações do incorporador perante a instituição financiadora do empreendimento; [...]
3 Art. 252 - O registro, enquanto não cancelado, produz todos os efeitos legais ainda que, por outra maneira, se prove que o título está desfeito, anulado, extinto ou rescindido.