Não são raros os exemplos de cidades que sofreram com a degradação de seus centros e que buscaram, de diversas formas, a sua revitalização, nem sempre com sucesso.
Tomando como exemplo São Paulo, assistimos um processo de espraiamento da Cidade e de acentuado deslocamento do centro financeiro e de grande parte do comércio estabelecido no centro para outras regiões.
Há quem atribua como causa inicial desse êxodo das empresas rumo a outras centralidades, o fato de ter sido implantado na década de 70, o denominado "calçadão", solução urbanística pela qual se restringiu sobremaneira o tráfego de veículos na região central, prestigiando o deslocamento a pé.
Com o tempo, os calçadões se tornaram espaços desagradáveis, seja pela qualidade do piso, seja pela ausência de definição de faixas de circulação para veículos de serviços ou ainda, pelo desconforto de, em dias de chuva por exemplo, se chegar ao destino pretendido apenas a pé.
O fato é que com a desocupação dos imóveis voltados a atividades não residenciais nessa região dos calçadões, as mazelas do abandono acabaram sendo irradiadas para outras áreas do centro da Cidade nas quais não se tinha introduzido a solução dos calçadões.
Ainda que não haja apenas um motivo causador do esvaziamento do centro da Cidade, mas sim a conjugação de vários fatores, o que se verifica é que a região se encontra degradada e em absoluta situação de abandono, em que pese ainda podermos constatar uma ou outra hercúlea e isolada iniciativa de lá desenvolver uma atividade empresarial.
Não bastasse o aspecto histórico (riqueza do patrimônio cultural do qual podemos destacar o Teatro Municipal, Bibliotecas, Museus, monumentos, etc), o centro oferece todos os importantes equipamentos públicos (mercados públicos, sacolões, dezenas de unidade de ensino público infantil, fundamental e médio, unidades de ensino técnico público, além das unidades do SENAI, SESI, SENAC, ambulatórios especializados, UBS, dezenas de hospitais, agências do Correios, Poupatempo e as várias estações de Metrô e estações de ônibus).
Para agravar essa situação de esvaziamento da região central, o advento da pandemia da COVID-19 provocou mais esvaziamento, alcançando alto índice de vacância dos imóveis e baixa probabilidade de futura ocupação diante da modificação da cultura de trabalho, com a implementação do trabalho remoto.
A propósito, interessante reportagem trazida pela revista The Economist destaca essa situação que também está sendo experimentada em Manhattan onde a taxa de vacância dos escritórios está em seu maior recorde. Muitas lojas e restaurantes que tinham como clientes, os trabalhadores que iam aos seus escritórios, com o trabalho remoto, tais estabelecimentos estão fechando ou enfrentando graves problemas para manter-se na ativa.
Essa situação, conforme relata a reportagem, levou o Prefeito Eric Addams e o Governador do Estado Kathy Hochul a apresentarem um plano para transformar a cidade de Nova Iorque, com 40 iniciativas atacando três amplas áreas: distritos comerciais, mobilidade e moradia, sempre levando em conta crescimento e equidade (fonte).
Uma das iniciativas se volta na transformação dos imóveis até então utilizados para atividades não residenciais, para unidades destinada à moradia.
Assim contextualizada a situação, é que devemos analisar a alteração trazida no Código Civil, referente à mudança de destinação de um condomínio edilício.
No âmbito dos condomínios edilícios, a exigência de unanimidade para a alteração da destinação do edifício ou mesmo de uma única unidade autônoma, sempre se mostrou como um grande empecilho às transformações arquitetônicas, de molde que, por iniciativa do Senador Carlos Portinho (PL 4.000/21), foi modificada a redação do artigo 1351, do Código Civil para permitir a alteração da destinação da edificação mediante a aprovação de 2/3 dos condôminos, o que certamente contribuirá para tal finalidade.
Acontece, todavia, que não se pode perder de vista que a alteração da destinação da edificação pode afetar o direito de propriedade dos condôminos, na medida em que é possível encontrar proprietários de unidades autônomas que exerçam o seu direito de propriedade há muito e não desejam a modificação, a qual pode inclusive causar prejuízos financeiros expressivos. Por exemplo: um escritório de advocacia há muito situado em um determinado edifício que seja transformado em edifício exclusivamente residencial. De um momento para o outro, diante da alteração, estaria esse condômino impedido de seguir com a exploração de sua atividade empresarial diante da decisão assemblear de alterar a destinação do edifício para uso residencial.
Deparamo-nos aqui com o primeiro questionamento: a alteração da destinação do edifício é impositiva (todas as unidades deverão ter a nova destinação, conforme deliberado em assembleia) ou autorizativa (os condôminos que quiserem dar às suas unidades a nova destinação, passam a estar autorizados a assim proceder)?
À primeira vista, parece-nos que o texto legal é imperativo, ou seja, 2/3 dos votos dos condôminos podem mudar a destinação do edifício ou da unidade autônoma, cabendo aqui lembrar o disposto no artigo 1.336 do Código Civil, que impõe como dever dos condôminos "IV - dar às suas partes a mesma destinação que tem a edificação, e não as utilizar de maneira prejudicial ao sossego, salubridade e segurança dos possuidores, ou aos bons costumes".
Todavia, vale ressaltar que essa interpretação literal do artigo poderá levar a teratológicas situações, por exemplo, em que 2/3 dos condôminos titulares de unidades destinadas a uso não residencial deliberem que as demais unidades correspondentes a 1/3 do condomínio tenham sua destinação modificada para uso residencial (ou vice-versa), o que poderia caracterizar situação de abuso de direito que não compatibilizaria com o objetivo da norma.
O que parece dar guarida à imposição da mudança da destinação do edifício por deliberação de 2/3 dos condôminos é antes de tudo, o respeito ao princípio constitucional do cumprimento da função social da propriedade (art. 5º, inciso XXIII).
Nesse sentido, a recomendação que se faz para aqueles que pretendam modificar a destinação do edifício mediante aprovação de 2/3 (dois terços) dos votos dos condôminos, que o faça calcado em justificativas técnicas demonstrando que tal como se encontra o edifício, não se tem exploração sustentável, tampouco estão as unidades autônomas, ao menos em sua maioria, cumprindo sua função social.
Assim, justificada a alteração da destinação, não nos parece viável que algum condômino descontente com a mudança possa impedir que ela se opere.
Outra questão que se apresenta se refere ao quórum para alteração da fachada.
Como se sabe, o inciso III do artigo 1336 do Código Civil impõe como dever do condômino "III - não alterar a forma e a cor da fachada, das partes e esquadrias externas"; tal como previsto no inciso I do artigo 10 da lei 4591/64.
Ocorre que se a Assembleia Condominial aprovar, por 2/3 dos condôminos, modificar a destinação do edifício, seria plausível exigir a aprovação da unanimidade dos condôminos para alterar a fachada da edificação?
A nosso ver, a exigência do quórum especialíssimo da unanimidade não se mostra razoável devendo aqui prevalecer a máxima "a maiori, ad minus", razão pela qual as alterações de fachada que decorram exatamente da modificação de destinação da edificação poderiam ser aprovadas pelo quórum de 2/3 dos condôminos.
Outro ponto que cabe reflexão está relacionado à irretroatividade da lei.
Sem pretender exaurir o tema, não se pode deixar de consignar que a lei nova não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada conforme assegurado pelo inciso XXXVI do art. 5º da Constituição Federal.
No âmbito condominial, há muito se consolidou o entendimento de que, diante da natureza estatutária dispositiva da convenção de condomínio, o Código Civil se sobrepõe às normas da convenção anteriormente instituída, não obstante em reiteradas oportunidades, igualmente se verificou que, não tendo sido revogados expressamente os artigos 1º a 27, da lei 4.591/64, aplicam-se seus dispositivos para condomínios constituídos antes de 11 de janeiro de 2003.
Por isso, cabe indagar sobre a hipótese de condomínio com determinada destinação instituído antes da alteração do artigo 1351, CC, contemplando regra na convenção de que a alteração somente poderia ocorrer mediante quórum de unanimidade, se esta regra estaria superada e derrogada pela lei 14.405/22.
A princípio, tratando-se as normas da convenção de condomínio de meras restrições ao direito de propriedade, contornos ao seu exercício, a alteração da destinação não constituiria uma limitação, no sentido conferido por Pontes de Miranda, de subtração do direito de propriedade, de modo que esta alteração aprovada pela maioria qualificada teria o condão de impor a todos os condôminos esta nova conformação da propriedade, no âmbito deste condomínio, posto que não diminui o conteúdo do direito de propriedade, mas apenas o reduz.
Tal alteração todavia exigirá uma análise específica em cada situação em concreto, posto que a convenção de condomínio poderá contemplar regras mais restritivas e não necessariamente sujeitas à supressão pela lei nova, especialmente quando afetar a esfera jurídica patrimonial de algum condômino, não de forma genérica, mas de forma específica e determinante.
Por tratar de matéria relacionada ao direito de propriedade, garantido nos termos do inciso XXII do art. 5º da C. F., cabe questionar: a alteração do artigo 1.351 do Código Civil seria inconstitucional? Na nossa opinião, não.
Com o devido respeito às opiniões contrárias, dentre elas, aquela constante do parecer exarado pela respeitabilíssima Comissão de Direito Condominial da OAB, Subseção São Paulo, não há inconstitucionalidade na alteração, a qual, inclusive em controle de constitucionalidade preventivo, pela Comissão de Constituição e Justiça, assim não foi entendido. Como é sabido, o direito de propriedade, apesar de constituir direito fundamental, deve sempre observar sua função social, a qual se expressa inexoravelmente no âmbito condominial na compatibilização dos direitos e deveres dos condôminos, conforme deliberações nas assembleias gerais, mediante o quórum qualificado quando a lei assim determinar, observado o consagrado princípio da pluralidade dos direitos reais limitados concebido por Wilson de Campos Batalha. A alteração da destinação é uma das hipóteses que somente poderá valer a partir da aprovação pela maioria qualificada de 2/3 dos condôminos, de modo que a alteração, atendido o quórum, será legal, impondo inclusive aos dissidentes o dever de cumprimento da nova deliberação.
As circunstâncias do caso em concreto merecem ser analisadas, à luz até mesmo do princípio norteador do ordenamento jurídico brasileiro – a intangibilidade da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF), posto que também não vislumbra coerente, justo e ético, que se desconsidere o uso efetivo da propriedade, sob o argumento de que os demais desejam outra destinação para o edifício. Seria então o caso de se buscar uma indenização para aquele que se sentir prejudicado pela decisão da maioria? Cumpre sopesar direitos fundamentais de modo a construir uma solução jurídica compatível com o sistema, o que pode ensejar, desde a definição de uma destinação mista, até a venda da unidade pelo condômino, com a aplicação dos artigos 14 e 15, da lei 4591/64 de modo que a maioria pudesse adjudicar as unidades da minoria. Eventual pleito indenizatório, nesta hipótese, dependeria da demonstração da ocorrência de ato ilícito, como a própria demonstração do abuso do direito (art. 187, CC), não simplesmente da alteração da destinação, ainda que possa ser causadora de prejuízo ou insatisfação do condômino dissidente, posto que a alteração constituiria, em regra, exercício regular de direito.
Como se verifica, em apertada análise, o tema é deveras controvertido, de extrema relevância e aplicação prática, merecendo especial atenção e cuidado em sua aplicação, de modo a atender aos melhores interesses do condomínio, em sua maioria qualificada, atendendo, desta forma, a função social da propriedade.
Muitas outras repercussões decorrem da análise dos programas de requalificação dos imóveis que vem sendo incentivados em diversos municípios, o que será objeto de outros comentários futuros.