Migalhas Edilícias

Os contratos 'built to suit' e sua interpretação pelos tribunais

O objetivo do presente artigo não é tratar especificamente dos traços gerais da modalidade contratual, mas, sim, do comportamento jurisprudencial a partir dos mais recentes julgados que verificamos em nossa pesquisa.

26/1/2023

Notícias relatam que o contrato built to suit passou a ser firmado no Brasil a partir do final dos anos 90. Todavia, com a edição da lei 12.744/2012 e, especialmente nos últimos anos, o contrato se popularizou. Em meus estudos de mestrado (finalizados em 2016), ainda eram escassos os julgados que tratavam sobre o referido contrato. É verdade que muitas vezes a solução do conflito nessa modalidade contratual é resolvida via arbitragem e, em razão da confidencialidade, não se tem acesso ao resultado de diversos litígios apreciados por câmaras arbitrais.

Contudo, recentemente, quando elaborava a segunda edição do livro "Contratos built to suit: aspectos controvertidos decorrentes de uma nova modalidade contratual" (cuja primeira edição data de 2017 e a segunda será lançada no primeiro semestre de 2023), notei incremento de decisões judiciais que apreciaram e interpretaram litígios envolvendo o built to suit.

O objetivo do presente artigo não é tratar especificamente dos traços gerais da modalidade contratual, mas, sim, do comportamento jurisprudencial a partir dos mais recentes julgados que verificamos em nossa pesquisa.

Tal como defendemos no livro referido anteriormente e, ainda, em outros artigos a respeito da contrato built to suit1, é relevante que a interpretação do contrato leve em consideração a autonomia privada e, tal como determina o art. 54-A da Lei 8.245/1991, a prevalência das condições livremente pactuadas no contrato respectivo.

Nesse sentido, é imprescindível que o intérprete conheça os riscos envolvidos no built to suit, bem como os fundamentos que sustentam a economia dessa modalidade contratual. Ora, o empreendedor apenas tem interesse em construir sob medida ao futuro ocupante caso tenha razoável segurança jurídica de que conseguirá obter o retorno de seu investimento ao longo dos anos. Nesse sentido, o empreendedor normalmente contrata mediante sólidas garantias de pagamento da remuneração mensal, por parte do ocupante. Da mesma forma, tal como admite o § 1º, do art. 54-A, o empreendedor também insistirá que o ocupante renuncie ao direito de propor ação revisional de aluguéis (artigos 68 e seguintes), justamente para que não corra o risco de o valor estabelecido pelas partes ser reduzido, em razão de uma suposta alteração do preço de mercado da remuneração mensal.

Pois bem. Um dos primeiros julgados que analisou o contrato foi proferido antes mesmo do advento da lei 12.744/2012. O Tribunal de Justiça de São Paulo2, em 2011, corretamente, considerou que a natureza do contrato built to suit diferia daquela do contrato típico de locação. Segundo o julgado, o built to suit não é um contrato "puramente de locação de imóvel, visto que esta é apenas uma de suas facetas, na medida em que apresenta elementos dos contratos de construção, empreitada, financiamento e incorporação, além de outras características próprias".

Precisamente em razão da atipicidade do contrato e dos riscos envolvidos no contrato é que a Lei do Inquilinato (art. 4º) também admite que em caso de resilição unilateral e antecipada do contrato por parte do ocupante, a cláusula penal não sofra as reduções de um contrato típico de locação (normalmente proporcional ao período de ocupação e limitada apenas a três alugueres).

Como já referido, a determinação para que as partes respeitem o valor da multa imposta é questão imprescindível para a economia do contrato e eventual decisão que reduza a multa do contrato, com fundamento no art. 413, do Código Civil (diante de valor manifestamente excessivo) ou ainda com fundamento no art. 317, do mesmo diploma (em razão de fatos supervenientes e extraordinários), deve ser muito bem fundamentada, comprovando os requisitos que autorizam a revisão contratual.

Em nossa pesquisa jurisprudencial, verificamos que os tribunais, em sua maioria, têm respeitado os valores estabelecidos no contrato em caso de resilição unilateral por parte do ocupante, tornando a revisão uma situação bastante excepcional. Para tanto, fazemos referências a julgados do Tribunal de Justiça de São Paulo3, Tribunal de Justiça de Minas Gerais4, Tribunal de Justiça do Paraná5 e Tribunal Regional Federal da 3ª região6. Em tais casos e com fundamento no pacta sunt servanda, ao consignar as características do contrato, os referidos tribunais mantiveram o valor estabelecido no contrato, embora também seja possível verificar julgado que admitiu a redução da cláusula penal, com aplicação do art. 413, do Código Civil7.

Com relação ao valor da remuneração mensal, embora a Lei 8.245/1991 admita que as partes possam renunciar ao direito à ação revisional de alugueres, já aduzimos anteriormente8 que tal renúncia não significa que a parte lesada não possa requerer a revisão da remuneração na ocorrência de fatos supervenientes ou extraordinários, ou seja, situações bastante excepcionais ou pontuais podem ensejar o pedido de revisão contratual, com fundamento nos artigos 317 ou 478, ambos do Código Civil.

Não obstante tal permissão, também em nossa pesquisa verificamos que a revisão contratual tem sido medida excepcional. Antes da pandemia e em contrato firmado enquanto não editada a lei 12.744/2012, o Tribunal de Justiça de São Paulo9 afastou pedido revisional de aluguéis, após detida avaliação dos requisitos do contrato. Isso porque, segundo o julgado, 

[...] a fixação do aluguel, segundo a livre estipulação das partes, levou em conta não apenas a finalidade de servir de contraprestação pelo uso do bem, mas, sobretudo, de retorno do investimento realizado no local. Assim, diante dessa particularidade, inviável se apresenta cogitar de revisão do valor da contraprestação enquanto não se esgotar o prazo estabelecido no contrato. 

Já ao longo da pandemia e, sobretudo, com a elevação do índice normalmente utilizado pelos contratantes no built to suit, foram propostas ações judiciais com caráter revisional, aduzindo a elevação abrupta do Índice Geral de Preços do Mercado (IGPM) e, consequentemente, majoração repentina e desmedida da remuneração mensal paga pelo ocupante. Ocorre que em nossa pesquisa também verificamos que tais pleitos, em sua maioria, foram afastados pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, sob o argumento de que a pandemia e seus reflexos não permitem, automaticamente, o reajuste do preço e intervenção judicial no contrato empresarial10, embora tenhamos localizado julgado que admitiu a revisão uma vez comprovada dificuldade financeira por parte do ocupante11, situação que, em nossa opinião, não enseja a revisão do contrato12.

Mas ainda a demonstrar que o Poder Judiciário tem respeitado a vontade dos contratantes, citamos outro julgado, datado de 2020 e apreciado pelo Tribunal de Justiça do Paraná13. Naquele processo determinada instituição bancária firmou contrato built to suit com empresa de construção no ano de 2012 (antes da edição da Lei 12.744/2012) para edificação de agência bancária, que foi entregue em 2015. O contrato possuía prazo determinado de dez anos. Contudo, após dois anos de ocupação no imóvel, a instituição financeira realizou denúncia unilateral ao contrato, disponibilizando-se a pagar a multa estabelecida no contrato, que seguia a regra tradicional da locação (três alugueres de maneira proporcional).

Nesse cenário, o construtor procurou declarar a nulidade da referida cláusula, para que fosse aplicado o art. 473, parágrafo único, do Código Civil14, ou seja, considerando os investimentos que realizou, o objetivo do construtor era permitir que a denúncia unilateral só produzisse efeitos depois de transcorrido prazo compatível com a natureza e o vulto dos investimentos. Ao apreciar o contrato, a Des. Rel. Rosana Fachin aduziu que:

A despeito do poderio econômico do locatário Banco do Brasil S/A, trata-se de contrato empresarial firmado com conhecimento da locadora. A compreensão do conteúdo do contrato, de suas obrigações e das consequências financeiras da assinatura desse instrumento impede que se declare nulidade do contrato desde sua origem/formação. Conforme se pode depreender do áudio por ele juntado (mídia mov. 67.1), a Autora-apelante sabia da existência da cláusula impugnada desde o princípio das negociações, chegando a comentar sobre ela com o representante do Banco, mas com ela acabou anuindo. Segundo o representante do Banco, era possível propor a alteração de cláusulas contratuais, o que seria submetido ao jurídico do Banco. Oportuno frisar que a revisão contratual deve ocorrer somente de forma excepcional e limitada, quando configurada hipótese de abuso de direito ou de desequilíbrio contratual. A anulação de cláusulas contratuais, por sua vez, depende de conteúdo ilícito (art. 166, II CC).

Como se nota, ao avaliar as tratativas negociais, a relatora do caso entendeu que a denúncia antecipada e a multa estabelecida eram riscos próprios do contrato, aos quais havia anuído o empreendedor, porque "a renúncia convencional pela locadora ao direito de ser indenizada pela antecipação do termo contratual representa direito patrimonial disponível". A nulidade foi afastada e prestigiou-se a vontade das partes, afastando-se a aplicação do art. 473, parágrafo único, do Código Civil.

Em nossa avaliação e após pesquisa jurisprudencial, há boa compreensão dos tribunais a respeito das características do contrato empresarial built to suit e da necessidade de excepcional intervenção judicial. Esperamos que em 2023 a jurisprudência prossiga em seu caminho de conferir segurança jurídica, sobretudo às relações empresariais.

__________

1 Vide, por exemplo, GOMIDE, Alexandre Junqueira. A revisão dos contratos built to suit em tempos de pandemia. Migalhas. Coluna Migalhas Edilícias, 27/08/2020. Disponível aqui. Acesso em 09 jan. 2023.

2 TJSP, Apelação com Revisão 9156991-70.2008.8.26.0000 (992.08.037348-7), rel. Antônio Benedito Ribeiro Pinto, j. 04.05.2011.

3 TJSP, Apelação Cível 1004786-65.2020.8.26.0068; rel. Rosangela Telles; Órgão Julgador: 31ª Câmara de Direito Privado; Foro de Barueri – 2ª Vara Cível; j. 13/10/2021; Data de Registro: 13/10/2021. Vide, também, TJSP, Apelação Cível 1056478-46.2016.8.26.0100; rel.  Jayme Queiroz Lopes; Órgão Julgador: 36ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível – 5ª Vara Cível; j. 25/06/2020; Data de Registro: 25/06/2020, que também trata da tentativa de redução da multa contratual.

4 TJMG, Apelação Cível 1.0000.21.014326-9/001, rel. Des.(a) Fernando Caldeira Brant, 20ª Câmara Cível, julgamento em 07/04/2021, publicação da súmula em 08/04/2021

5 TJPR, 17ª Câmara Cível 0001228-91.2020.8.16.0194; rel. Des. Fabio André Santos Muniz; j. 27/06/2022. No mesmo sentido e pelo mesmo Tribunal, vide TJPR, 17ª Câmara Cível 0021361-25.2018.8.16.0001; Rel. Des. Marcel Guimarães Rotoli de Macedo; j. 19/05/2022.

6 TRF 3ª Região. Apelação cível 0025624-84.2008.4.03.6100/SP, Rel. Des. José Lunardelli; j. 15/12/2011.

7 TJSP, Apelação Cível 1002019-57.2016.8.26.0274; rel. Alfredo Attié; Órgão Julgador: 27ª Câmara de Direito Privado; Foro de Itápolis – 1ª Vara; j. 24/09/2019; Data de Registro: 27/09/2019.

8 Cite-se, novamente, o já referido artigo de nossa autoria: GOMIDE, Alexandre Junqueira. A revisão dos contratos built to suit em tempos de pandemia. Migalhas. Coluna Migalhas Edilícias, 27/08/2020. Disponível aqui. Acesso em 09 jan. 2023.

9 TJSP, Apelação Cível 1010336-32.2017.8.26.0008; rel. Antonio Rigolin; Órgão Julgador: 31ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional VIII – Tatuapé – 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 12/07/2022; Data de Registro: 12/07/2022. Antes da pandemia e a respeito da manutenção dos valores, vide também TJSP, Apelação Cível 1001315-32.2017.8.26.0008; rel. Carlos Henrique Miguel Trevisan; Órgão Julgador: 29ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional VIII – Tatuapé – 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 13/07/2018; Data de Registro: 13/07/2018.

10 Vide, por exemplo, TJSP, Apelação Cível 1134436-35.2021.8.26.0100; rel. Melo Bueno; Órgão Julgador: 35ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível – 13ª Vara Cível; j. 07/12/2022; Data de Registro: 13/12/2022. Vide também TJSP, Apelação Cível 1006728-08.2020.8.26.0562; rel. Paulo Ayrosa; Órgão Julgador: 31ª Câmara de Direito Privado; Foro de Santos – 4ª Vara Cível; j. 06/11/2020; Data de Registro: 06/11/2020 e TJSP, Apelação Cível 1065813-53.2020.8.26.0002; rel. Ferreira da Cruz; Órgão Julgador: 28ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional II – Santo Amaro – 5ª Vara Cível; j. 02/08/2022; Data de Registro: 03/08/2022.

11 TJPR, 18ª Câmara Cível 0058770-67.2020.8.16.0000, rel. Des. Marcelo Gobbo Dalla Dea, j. 03/03/2021. Em sentido, contrário, todavia, TJPR, 17ª Câmara Cível, 0039574-35.2021.8.16.0014, rel. Des. Tito Campos de Paula, j. 03/10/2022.

12 A respeito da dificuldade de cumprimento da obrigação e revisão contratual, remetemos o leitor para GOMIDE, Alexandre Junqueira. Risco contratual e sua perspectiva na incorporação imobiliária. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022, p. 329 e seguintes.

13 TJPR. Apelação Cível 0038166-97.2017.8.16.0030. Rel. Des. Rosana Amara Girardi Fachin, j. 10/06/2020.

14 "Art. 473. A resilição unilateral, nos casos em que a lei expressa ou implicitamente o permita, opera mediante denúncia notificada à outra parte. Parágrafo único. Se, porém, dada a natureza do contrato, uma das partes houver feito investimentos consideráveis para a sua execução, a denúncia unilateral só produzirá efeito depois de transcorrido prazo compatível com a natureza e o vulto dos investimentos".

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Coordenação

Alexandre Junqueira Gomide é doutor e mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Especialista e mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Fundador e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário – IBRADIM. Diretor de Relações Institucionais do Instituto dos Advogados de São Paulo – IASP. Advogado, professor e parecerista.

André Abelha é mestre em Direito Civil pela UERJ. Fundador e presidente do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário - IBRADIM. Presidente da Comissão Especial de Direito Notarial e Registral no Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Professor na pós-graduação em Direito Imobiliário da Puc-Rio e em outras instituições. Sócio do escritório Longo Abelha Advogados.