Décadas de difusão do pensamento de Dworkin, Wittgenstein, Heidegger, Gadamer, Warat et al na classe jurídica nacional teria que, evidentemente, produzir frutos.
As críticas, construções e modelos produzidos por autores com a visão de mundo dos ora citados, geraram enormes tensões no meio jurídico e teriam que chegar, de modo inexorável, ainda que com atraso, ao Registro de Imóveis.
O positivismo, com todas as suas variações, legalista e cruento, frente às realidades interpessoais, sempre incapaz de ver além de uma linguagem retrógada, se mostrou o arruinador de si mesmo, e finalmente foi reconhecido como aquilo sempre fora: uma limitada (por auto-definição) fórmula de resolver questões ou conflitos humanos; estes, sempre mais pronunciados e complexos, necessitam de instrumentos apropriados, não sendo mais cabível que a sutileza de marreta e bigorna conduza às soluções almejadas pela sociedade aberta. Não, o positivismo não tem a resposta para os dramas jurídicos numa sociedade aberta; sim, há que encontrar outros fundamentos para o agir registral.
Já o jusnaturalismo, coitado, feneceu antes mesmo de se propor como alternativa viável no contexto legalista de nossas escolas, de nossas cartas magnas, leis, portarias, resoluções, provimentos e outras espécimes normativas, tanto menos cotadas, quanto mais exigentes. Para cada José Pedro Galvão de Souza surgiam dez Warat e os seus alternativos.
Diante dessa dualidade, sendo por certo o mundo mais rico e variegado, exigindo mais esforços do intérprete, o jusnaturalismo em terra brasilis ao menos produziu singular obra: a teoria do saber prudencial, tendo por mentor o magistrado paulista Ricardo H. M. Dip. O Des. Dip pontifica que os registros são instituições da comunidade, dotadas de autonomia diante do Estado; os registradores seriam como que juízes do certo, devendo deslindar todos os casos que lhes são apresentados com um saber prudencial. Esse saber prudencial próprio dos registradores, guarda certa analogia com o saber jurisdicional, onde labutam os juízes do justo. Nesse contexto, os registradores são independentes, não temem melindrar o Estado, tampouco se olvidam de interpretar a norma, quando o caso assim estiver a exigir. Estão aí os valiosos princípios registrais, que se contam em dezenas, aptos a formar na cabeça do registrador um norte preciso; tudo isso é amalgamado pelo juízo de prudência, virtude criada e desenvolvida quando se contempla a grandeza do mister qualificador. Tais princípios são evidentes para aqueles que reconhecem a natureza das coisas; basta, portanto, aplicá-los.
E assim ficaríamos na faina diária, equilibrando os conceitos vetustos do legalismo com a obra da prudência. Eis que surge a lume a obra Qualificação Registral Imobiliária à Luz da Crítica Hermenêutica do Direito, do registrador e professor gaúcho Jéverson Luis Bottega, mestre por Coimbra e pela UNISINOS, a nos mostrar que sim, o fenômeno registral também carece de navegação por águas mais profundas.
O autor pretende demonstrar que a verdadeira face da qualificação registral deve residir, num Estado Democrático de Direito, na aplicação dos preceitos hermenêuticos críticos, sendo sem dúvida o registrador antes um agente público, secundado não por normativas estanques ou por uma subjetiva e indefinida sabedoria prudencial (indefinível hoje, diga-se, quando tudo e todos são questionados, num tempo em que as verdades auto-demonstráveis foram como que abandonadas).
O objetivo da obra de dissertação é ousado (porém factível, já que tal desiderato também está presente naquelas duas vertentes antes mencionadas e que granjearam amplo sucesso até o presente): “criar um ferramental necessário para blindar o [desamparado] registrador contra discricionariedades interpretativas”.
Utilizando sofisticados conceitos filosóficos, uma profunda pesquisa no que há de mais atual, e tendo como premissa, escopo e amparo uma “Crítica Hermenêutica do Direito”, cerebrina construção do jurista Lenio Streck, o autor retrata o Registro de Imóveis como sendo o fundamento imprescindível para a livre circulação dos bens numa sociedade justa. Diante dessa realidade fundante do registro e sua cada vez mais renovada vocação, há que se reconhecer o caráter de atividade estatal dos registros, cuja realização é entregue a profissionais do direito mediante um certame, na genial construção da delegação de serviço púbico (dizemos genial, pois ao mesmo tempo em que há inquestionável ganho em eficiência, de outro lado, o Estado desincumbe-se de despesas de sustento de mais uma imprescindível máquina pública).
Sendo atividade estatal, o que incrivelmente ainda não é consenso, mediante o regime próprio da delegação constitucional (que não desnatura, ao contrário, reafirma esta característica), é inexorável que se chegue a outra conclusão: a qualificação registral é um ato administrativo. Ora, se estamos diante de um ato administrativo, impende que desde já afastemos a discricionariedade e o subjetivismo. Atos administrativos não se coadunam com a falta de fundamentação motivada, nem aceitam decisões conflitantes proferidas pelo mesmo órgão (um “cartório” pode decidir de modo oposto a outro vizinho, deixando o usuário perplexo e desamparado; talvez isso seja explicado pelo fato de serem os registros públicos como que entidades solitárias, como que átomos a procura de uma molécula ... talvez daí o grande apreço por normas de serviços e consolidações normativas).
Para Jéverson L. Bottega é preciso perceber o registro de imóveis frente às características do serviço por ele desenvolvido, afastando os pré-juízos (e pré-conceitos, diga-se) do senso comum. Ao distribuir segurança jurídica, única forma de garantir o preceito constitucional da inviolabilidade do direito à propriedade, resta evidente a preponderância do interesse público; se assim ocorre, não é possível descaracterizar o registrador como agente público.
Mas se é agente público, o registrador não se limita a simples executividade, atuando apenas na técnica administrativa. É um jurista, na concepção de que faz o que é correto diante de um arcabouço normativo. Como artífice de um ato administrativo, não pode atuar de modo discricionário, ausentes quaisquer margens de conveniência e oportunidade. Ao contrário, é sempre vinculado ao Direito.
A Crítica Hermenêutica do Direito é a base teórica que conduz o registrador para além dos atuais modelos de qualificação. Por isso, o autor não transige com raciocínios registrais ad hoc num campo em que se deve buscar a coerência e a previsibilidade. O objetivo da qualificação é a resposta correta. Resposta correta somente se tem quando não se é influenciado por elementos não-jurídicos, como a moral, a política, a economia. Afastar a discricionariedade conduz à correção do agir.
Segundo o autor, as teorias do saber prudencial e da legalidade não consideram a “virada ontológica-linguística que ocorreu na filosofia”. A filosofia hermenêutica superará a visão que atribui essência natural às coisas, deixando de lado de uma vez tanto o “livre convencimento”, quanto o “prudente critério”. Rejeita-se de pronto a construção legalista literal bem como aquela que conduz à criação do sentido discricionário de um texto legal.
Ao defender a qualificação registral em diversas etapas, após e caso superadas as antecedentes, o autor pretende, em suma, municiar o registrador de uma teoria hermenêutica que o capacite na tarefa de evitar discricionariedades.
Jéverson L. Bottega maneja filosofia pesada para negar a existência de essência nas coisas, seja na lei, seja na natureza; seu domínio teórico é abundante; sua contribuição à ciência registral é por demais evidente. Resta agora que os outros grandes da ciência façam o devido contraponto, se houver.