Os programas de requalificação urbana são um poderoso instrumento de revitalização de certas regiões de uma cidade, especialmente quando se encontram em processo de degeneração. A pandemia de covid-19 estimulou o lançamento, quase simultâneo, de dois importantes programas: (i) no Rio de Janeiro, o Programa Reviver Centro, com o objetivo macro de atrair novos moradores e promover a recuperação urbanística, social e econômica do bairro; e (ii) em São Paulo, o Programa Requalifica Centro, que igualmente traz incentivos a fim de atrair investimentos para essa importante região da capital paulista.
Um dos estímulos que tais programas costumam prever é a conversão do uso de prédios comerciais para transformá-los, após reforma, em edifícios de uso residencial ou misto. Mas, como se sabe, a maioria dos edifícios possui muitos proprietários, e os arts. 1.343 e 1.351 do Código Civil, exigem a anuência da unanimidade dos condôminos para a aprovação da construção e da conversão de uso. Um quórum virtualmente impossível em muitos casos.
Em artigo anterior, demonstramos que: (i) nos casos em que o retrofit da edificação não implicar modificação do número de unidades autônomas, nem alteração de destinação de uso, a aprovação da intervenção estará aprovada com o quórum qualificado que represente, simultaneamente, 2/3 das unidades e 80% das frações ideais, por força da caracterização “urbanística” definida pelo art. 17 da lei 4.591/64; e (ii) nas demais hipóteses, a unanimidade é a regra, mas estando a edificação nos limites da área abrangida por plano público de requalificação urbana, cabe ao condômino ou minoria dissidente demonstrar, no caso concreto, a inexistência de motivo urbanístico, sob pena de o poder de veto caracterizar abuso do direito, em desconformidade com a função social da propriedade, podendo a transformação ser promovida desde que seja observado o mesmo quórum do referido artigo 17.1
Agora, mais um passo foi dado. O Senado Federal aprovou o projeto de lei 4000/2021, que altera a redação do art. 1.351 do Código Civil, afastando a exigência de unanimidade para deliberar sobre alteração da destinação de condomínio edilício e definindo para esse fim o quórum de 2/3 dos condôminos.
Ao flexibilizar a exigência de unanimidade nessa hipótese, a alteração legislativa contribui para a implementação de políticas públicas de revitalização de determinadas regiões urbanas, mediante readequação urbanística de edificações com investimentos privados.
A par desse interesse específico e imediato, a medida atende à necessidade de intervenção construtiva mediante retrofit para requalificar edificações desgastadas pela ação do tempo ou pela obsolescência de sua concepção original, de modo a dotá-las de funcionalidade compatível com os usos, costumes e demandas da sociedade contemporânea.2
Além dessas situações específicas, novas demandas de retrofit surgiram a partir do início dos anos 2020, por força da alteração da dinâmica do trabalho provocada pela covid-19 e da consequente desativação parcial de atividades profissionais em prédios comerciais, que veio a justificar a adequação de áreas em apartamentos para exercício de atividades profissionais. 3
Essas e outras demandas da mesma natureza são atendidas em parte pelo Projeto 4.000/21, que, contudo, carece de ajustes para excepcionar também a regra do art. 1.343 do Código Civil, que exige unanimidade para criação e/ou extinção de áreas comuns e privativas, pois, em regra, o retrofit comporta reformulação das plantas das partes comuns e das áreas internas das unidades, inclusive por efeito de intervenção estrutural, emprego de novos mecanismos tecnológicos na substituição dos sistemas de instalações etc.
Frise-se, ainda, ser conveniente dar solução aos interesses dos condôminos dissidentes mediante procedimento extrajudicial.
É importante relembrar que o problema já existia no passado recente em nosso país, para o qual a lei 4.591/64 definiu solução nos seus arts. 14, 15 e 17, mediante definição de quórum majoritário para reconstrução do edifício, seja por motivos urbanísticos ou por destruição ou ameaça de ruína decorrente de sinistro, bem como instituiu disciplina própria para os efeitos da deliberação em relação aos condôminos dissidentes.
Sobrevindo o Código Civil de 2002, seu art. 1.357 assimilou a regra do art. 14 da lei 4.591/64 para a reconstrução em caso de sinistro,4 mas silenciou sobre a reconstrução por motivos urbanísticos ou arquitetônicos prevista no art. 17 dessa lei especial, que fixa para esse fim o quórum de 2/3 das unidades, correspondentes a 80% do terreno5, e sobre o procedimento de adjudicação decorrente dessa deliberação, instituído pelo seu art. 15.6
Essas disposições especiais não foram derrogadas pelo Código Civil e a matéria nelas tratada não foi regulada por lei posterior, daí porque permanecem em vigor “diante da lacuna do atual Código Civil”7 e coexistem no sistema com as normas gerais do Código Civil, solucionando-se os casos de incompatibilidade pelo critério da especialidade,8 pelo qual prevalecem as regras especiais sobre quórum majoritário estabelecido pela Lei 4.591/1964 para deliberação sobre reconstrução quando justificada por motivos urbanísticos, bem como sobre o procedimento de adjudicação das frações ideais dos dissidentes à maioria por valor avaliado judicialmente (Lei 4.591/1964, arts. 15 e 17).
Ademais, tratando-se de reconstrução objeto de legislação municipal destinadas a atender às “exigências fundamentais de ordenação da cidade”9 e aos propósitos de realização das funções da cidade10, as normas especiais da Lei 4.591/1964 devem ser interpretadas em conexão com as normas constitucionais do direito urbanístico (CF, art. 24, I) e da propriedade urbanística (CF, art. 30, I, II e VIII, e art. 182, § 2º).11
Todavia, o procedimento judicial previsto nessas normas pode inviabilizar sua efetividade, sobretudo em relação à urgente necessidade de tornar habitáveis edificações localizadas em regiões urbanas degradadas.
Assim, a alteração legislativa proposta pelo PL 4.000/21 é oportuna e conveniente para afastar questionamentos capazes de retardar ou comprometer a implementação das políticas públicas destinadas ao adequado aproveitamento da propriedade urbanística de acordo com as normas de ordenação da cidade.
Contudo, para que cumpra efetivamente seu propósito, a alteração legislativa deve ser complementada para fixar quórum majoritário para execução de retrofit de que resulte não apenas mudança de destinação do edifício, de que trata o art. 1.351 do Código Civil, mas, também, a reconstrução que contemple alterações de áreas comuns ou privativas, de que trata seu art. 1.343. Para evitar abusos, o ideal é que a redução de quórum seja específica para tais situações, mantendo-se a exigência de unanimidade para os demais casos.
Nesse sentido, parece conveniente que a regra do art. 1.351 seja excepcionada especificamente para o efeito de demolição, reconstrução ou alienação justificadas por motivos urbanísticos, arquitetônicos ou por determinação do poder público em caso de insegurança ou insalubridade, mediante inclusão de um art. 1.351-A no Código Civil que defina para esse fim quórum de 2/3 das frações ideais.
Além disso, a existência de procedimento judicial de adjudicação no art. 15 da lei 4.591/64 pode induzir a questionamentos que frustrem o efeito da proposição legislativa aqui considerada, sendo indispensável sua substituição por mecanismos que tornem efetivas em prazo razoável as deliberações da maioria.
Assim, propõe-se o ajuste do projeto de lei no sentido de que, além das regras gerais dos arts. 1.343 e 1.351, seja incluído no Código Civil o art. 1.351-A, pelo qual fique definido, em caráter excepcional, o quórum correspondente a 2/3 das frações ideais para deliberações sobre demolição ou alienação do edifício, bem como para sua reconstrução que envolva conversão de uso, aumento ou redução de áreas comuns ou privativas, desde que justificadas por razões urbanísticas ou arquitetônicos e, ainda, por determinação do poder público em caso de insegurança ou insalubridade, e a ele sejam acrescentados parágrafos que definam procedimento especial de solução de controvérsias compatível com a prevalência do interesse da coletividade condominial e com a atual política legislativa de desjudicialização, visando conferir a necessária celeridade à requalificação urbanística essencial à realização das funções da cidade.
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1 CHALHUB, Melhim Namen; ABELHA, André. Projetos de retrofit e conversão de uso em condomínios pulverizados: como superar o desafio da unanimidade? Disponível em https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-edilicias/349230/projetos-de-retrofit-e-conversao-de-uso-em-condominios-pulverizados. Acesso em 15.02.2022.
2 Segundo a Norma de Desempenho NBR 15575-1, a reconstrução mediante retrofit caracteriza-se como “remodelação ou atualização do edifício ou de sistemas, através da incorporação de novas tecnologias e conceitos, normalmente visando à valorização do imóvel, mudança de uso, aumento da vida útil e eficiência operacional e energética.” (ABNT 2013, parte 1).
3 O tema é tratado mais detidamente na 6ª edição da obra Incorporação Imobiliária, GenForense, 2022, pp. 61 e ss.
4 Código Civil: “Seção III – Da extinção do condomínio – Art. 1.357. Se a edificação for total ou consideravelmente destruída, ou ameace ruína, os condôminos deliberarão em assembleia sobre a reconstrução, ou venda, por votos que representem metade mais uma das frações ideais.”
5 Lei 4.591/1964: “Art. 17. Os condôminos que representem, pelo menos 2/3 (dois terços) do total de unidades isoladas e frações ideais correspondentes a 80% (oitenta por cento) do terreno e coisas comuns poderão decidir sobre a demolição e reconstrução do prédio, ou sua alienação, por motivos urbanísticos ou arquitetônicos, ou, ainda, no caso de condenação do edifício pela autoridade pública, em razão de sua insegurança ou insalubridade. § 1º A minoria não fica obrigada a contribuir para as obras, mas assegura-se à maioria o direito de adquirir as partes dos dissidentes, mediante avaliação judicial, aplicando-se o processo previsto no art. 15.”
6 Lei 4.591/1964: “Art. 15. Na hipótese de que trata o § 3º do artigo antecedente, à maioria poderão ser adjudicadas, por sentença, as frações ideais da minoria. § 1º Como condição para o exercício da ação prevista neste artigo, com a inicial, a maioria oferecerá e depositará, à disposição do Juízo, as importâncias arbitradas na vistoria para avaliação, prevalecendo as de eventual desempatador. § 2º Feito o depósito de que trata o parágrafo anterior, o Juiz, liminarmente, poderá autorizar a adjudicação à maioria, e a minoria poderá levantar as importâncias depositadas; o Oficial de Registro de Imóveis, nestes casos, fará constar do registro que a adjudicação foi resultante de medida liminar. § 3º Feito o depósito, será expedido o mandado de citação, com o prazo de dez dias para a contestação. § 4º Se não contestado, o Juiz, imediatamente, julgará o pedido. § 5º Se contestado o pedido, seguirá o processo o rito ordinário. § 6º Se a sentença fixar valor superior ao da avaliação feita na vistoria, o condomínio em execução restituirá à minoria a respectiva diferença, acrescida de juros de mora à prazo de 1% ao mês, desde a data da concessão de eventual liminar, ou pagará o total devido, com os juros da mora a conter da citação. § 7º Transitada em julgado a sentença, servirá ela de título definitivo para a maioria, que deverá registrá-la no Registro de Imóveis. § 8º A maioria poderá pagar e cobrar da minoria, em execução de sentença, encargos fiscais necessários à adjudicação definitiva a cujo pagamento se recusar a minoria.”
7 FACHIN, Edson Luiz, Comentários ao Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2003, v. XIV, p. 15. LOUREIRO, Francisco Eduardo, Código Civil comentado, coord. Cezar Peluso. São Paulo: Manole, 12. ed., 2018, p. 1.337.
8 MAXIMILIANO, Carlos, Hermenêutica e aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Editora Forense, 9. ed., 1979, nº 141.
9 Constituição Federal: “Art. 182. (...). § 2º A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.”
10 Lei 10.257/2001 (Estatuto da Cidade): “Art. 39. A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas, respeitadas as diretrizes previstas no art. 2o desta Lei”.
11 Tratamos da matéria em nosso Incorporação Imobiliária, GenForense, 6ª edição, 2022, itens 1.1.3 e 1.4.8.