"O jovem conhece as regras, mas o velho conhece as exceções"
William Shakespear
O problema
Aceite o que não se pode mudar, e mude o que não se pode aceitar. A pandemia de Covid-19 afetou o mercado imobiliário, as empresas e as pessoas de todos os modos possíveis, em todas as direções. Nada será exatamente como antes.
No turismo, os hotéis foram atirados em um jogo impossível para conseguir hóspedes. Em 2020 a queda foi vertiginosa1, chegando a assustadores 10% de ocupação, com empreendimentos fechando as portas país afora. Mesmo nas férias escolares a previsão de ocupação média ficou em 50%, a exemplo do Estado de São Paulo2. Para se adaptar e sobreviver, começou-se a estudar, em alguns casos, a conversão para uso residencial da totalidade ou de parte das unidades então disponíveis para hospedagem, como o Hotel Gloria e outros dez hotéis no Rio de Janeiro3.
Outro efeito da pandemia, não inédito, foi o esvaziamento de bairros comerciais tradicionais, como o centro da cidade do Rio de Janeiro, cuja vacância de salas e lojas, em fevereiro/2021, já beirava absurdos 40%, sem nenhum sinal de arrefecimento da crise4.
Para tentar reverter a tendência de degeneração desse importante espaço urbano, a Prefeitura do Rio lançou o Programa Reviver Centro, com o objetivo macro de atrair novos moradores e promover a recuperação urbanística, social e econômica da região5. Além de prever incentivos fiscais, o programa estimula a locação social, a construção de novas moradias e a conversão do uso de prédios comerciais para transformá-los, após reforma, em edifícios de uso residencial ou misto.
Na mesma linha, o Prefeito de São Paulo sancionou a lei municipal nº 17.577, de 20 de julho de 2021, que trata do Programa Requalifica Centro, que também prevê incentivos a fim de atrair investimentos para a região.6
Planos como o Reviver Centro (Rio de Janeiro) e o Requalifica Centro (São Paulo), para serem bem-sucedidos, necessitam do óbvio: uma adesão relevante dos particulares proprietários das edificações locais, a ponto de realmente fomentar a transformação da região, e é neste ponto que surge um obstáculo relevante a ser ultrapassado. A maioria dos edifícios tem seu domínio pulverizado, com muitos donos, e os arts. 1.343 e 1.351 do Código Civil, geralmente, e sem reflexão, reforçados pelas convenções condominiais, exigem a anuência da unanimidade dos condôminos para se aprovar a alteração. Um quórum virtualmente impossível em muitos casos. Como, então, superar este desafio?
Antes de avançarmos, porém, é preciso desviar a rota para não nos perdermos em uma perigosa salada conceitual, distinguindo-se três figuras distintas, que podem ou não estar juntas na remodelação de um edifício, e que influenciam diretamente as soluções propostas neste artigo: retrofit, criação (e/ou extinção) de unidades autônomas, e alteração de uso.
1.1. Retrofit
O retrofit está definido na Norma de Desempenho NBR 15575-1, da ABNT, como a "remodelação ou atualização do edifício ou de sistemas, através da incorporação de novas tecnologias e conceitos, normalmente visando valorização do imóvel, mudança de uso, aumento da vida útil e eficiência operacional e energética"7, no âmbito de uma incorporação imobiliária ou fora dela.
Sim, caro leitor: tais figuras nem sempre estão juntas, e nem sempre estão isoladas. E sua triagem nem é tão difícil. Basta nos guiarmos pela razão de ser da concepção dos artigos 28 e seguintes da Lei de Condomínios e Incorporações: a proteção, desde o longínquo ano de 1964, muito antes do advento do Código de Defesa do Consumidor, do adquirente de unidade na planta, assim considerada aquela que ainda depende de relevantes intervenções construtivas e aprovação da municipalidade para estar apta ao uso do comprador.
Então, sempre que o empreendimento se caracterizar pelo compromisso de entrega, aos adquirentes, de unidades imobiliárias e/ou áreas comuns a serem construídas ou substancialmente reformadas, o empreendedor, antes de iniciar a alienação dos imóveis, deve promover no cartório imobiliário o arquivamento dos documentos previstos no art. 32 da lei 4.591/648.
O que isso tem a ver com o quórum de aprovação? Veremos adiante. Por ora, basta guardarmos o conceito.
- Clique aqui e confira a íntegra da coluna.
*Melhim Chalhub é membro do Instituto dos Advogados Brasileiros, da Academia Brasileira de Direito Civil, da Academia de Direito Registral Imobiliário, Cofundador e Membro do Conselho Consultivo do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário – IBRADIM. Autor dos livros Incorporação Imobiliária, Alienação Fiduciária – Negócio Fiduciário e Direitos Reais, entre outros.
**André Abelha é mestre em Direito Civil pela UERJ. Presidente do IBRADIM. Presidente da Comissão Especial de Direito Notarial e Registral no Conselho Federal da OAB. Program on Negotiation and Leadership (Harvard University). Professor de cursos de Pós-Graduação em Direito Imobiliário e Direito Civil. Coordenador da coluna Migalhas Edilícias. Membro da Comissão de Direito Imobiliário da OAB/RJ e do Conselho Técnico da Federação Internacional Imobiliária/RJ. Autor e coautor de livros e artigos em Direito Imobiliário.
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1 Novo coronavírus impacta gravemente setor hoteleiro. Smartus. Matéria publicada em 25.mar.2020 com dados da Associação Brasileira da Indústria de Hotéis (ABIH Nacional) disponível aqui. Acesso em 11.jul.2021.
2 Hotéis devem atingir até 50% de ocupação em julho no estado de SP, apontam dados do setor. Reportagem publicada e 9.jul.2021 em O Globo, com projeção da ABIH-SP. Disponível aqui. Acesso em 11.jul.2021.
3 Confiram-se as seguintes reportagens: (i) Com menos hóspedes, 11 hotéis do Rio planejam transformar parte dos quartos em residências e escritórios. O Globo. Matéria publicada em 22.jun.2021. Disponível aqui; e (ii) Conversão de uso é alternativa para hotéis e lajes corporativas. GRI Club. Matéria publicada em 18.jun.2021. Disponível aqui. Ambos os acessos em 12.jul/2021.
4 Os dados variam em cada pesquisa, mas há consenso sobre uma vacância de pelo menos 30%: (i) Um em cada três imóveis para alugar no Centro do Rio está desocupado. O Globo. Matéria publicada em 27.mai.2021. Disponível aqui; e (ii) RJ tem quase 40% dos escritórios de alto padrão vazios — não só pela pandemia. CNN Brasil. Matéria publicada em 21.jan.2021. Disponível aqui.Todos os acessos em 11.jul.2021.
5 Prefeitura lança Reviver Centro, plano para atrair novos moradores e estimular a recuperação urbanística, social e econômica da região. Prefeitura Rio. Matéria publicada em 26.jan.2021. Disponível aqui. Acesso em 11.jul.2021. Inteiro teor do PL aprovado na Câmara. Disponível aqui. Para mais detalhes sobre o Programa Reviver Centro. Todos os acessos em 24.jul.2021.
6 A referida Lei Municipal é objeto de pelo menos uma ação anulatória no TJSP (processo 1044733-40.2021.8.26.0053), ainda não julgada, sob o fundamento de supostos vícios legislativos, mas nenhum dos fatos alegados impacta o objeto deste artigo.
7 A versão mais atual, de 2013, está disponível para aquisição, mas a definição pode também ser encontrada em versão anterior, de 2010, disponível aqui (p. 7, item 3.26). Ambos os acessos em 12.jul.2021.
8 Eduardo Moreira Reis trata do tema em interessante artigo, e afirma o seguinte: “Em face de tais elementos, lança-se aqui a segunda pergunta deste breve ensaio: seria lícito ao empreendedor do retrofit voluntariamente atrair para si o regime jurídico das incorporações, aprovando perante a municipalidade seu projeto interventivo e obtendo o alvará da obra, registrando no Registro de Imóveis o memorial previsto no art. 32 da Lei 4.591/64, optando pelo patrimônio de afetação, nos termos do art. 31-A da Lei e requerendo ao Fisco o Regime Especial Tributário das Incorporações, nos termos da lei 10.931/2004 e legislação complementar? Nosso entendimento particular é que SIM, pois todos os princípios constitucionais e legais envolvidos na produção construtiva, especialmente a habitacional, como os de proteção à aquisição da moradia própria, de proteção ao consumidor, de proteção à ordem urbanística e tributária e de liberdade econômica são atendidos, em maior ou menor grau, pelo regime legal das incorporações. Não vislumbramos qualquer prejuízo público ou privado decorrente da aplicação das regras de tal regime, ao invés da aplicação das regras gerais dos contratos imobiliários. E a identidade entre o retrofit com venda prévia de unidades e a incorporação, criando uma "zona cinzenta" em termos conceituais, especialmente no caso de intervenções construtivas mais onerosas e complexas, nos parece plenamente justificadora da opção por tal regime, até que um regime legal próprio seja positivado". REIS, Eduardo Moreira. Os empreendimentos com retrofit e o regime das incorporações imobiliárias: alguns aspectos registrais e contratuais. In: Estudos de Direito Imobiliário: Homenagem a Sylvio Capanema de Souza. ABELHA, André (Coord.). Porto Alegre: Paixão Editores, 2020, p. 270-281.