Introdução1
Após indicativos que teríamos um promissor 2020, depois de anos de crise econômica que assolou, sobretudo, o mercado imobiliário brasileiro, a pandemia da Covid-19 deu origem a um novo ciclo de incertezas, dessa vez em nível global.
No intuito de conter a propagação do vírus, medidas restritivas severas foram impostas pelo Poder Público, determinando a suspensão de atividades consideradas “não essenciais” ou mesmo o caso de municípios que decretaram lockdowns2. O mercado imobiliário não ficou isento desse cenário, testemunhando canteiros de obra completamente parados, mão de obra escassa, fornecedores impossibilitados de suprir às necessidades dos empreendimentos.
Diante desse contexto, nesse breve artigo, abordaremos as consequências jurídicas dessa realidade pandêmica no mercado imobiliário. Elegeu-se um tema de relevância às incorporações, que vem a ser a possibilidade de que a obra seja entregue após o prazo de tolerância previsto contratualmente sem a configuração de mora e/ou inadimplemento do incorporador, diante da configuração de caso fortuito e força maior (“CFFM”).
I. Prazo de tolerância na incorporação imobiliária
Passa-se a uma aproximação acerca do artigo 43-A da Lei nº 4.591/1964, cujo prazo contemplado no seu caput se popularizou no mercado imobiliário e no Poder Judiciário, antes mesmo da sua positivação, como “prazo de tolerância”. Esse dispositivo legal prevê a possibilidade da inclusão de cláusula contratual, nos contratos de incorporação imobiliária, que estabeleça um prazo de tolerância de até 180 dias para entrega da unidade. Nesse caso, se a entrega da unidade ocorrer dentro do referido prazo, o incorporador não incorrerá em mora, nem em hipótese de inadimplemento contratual.
Diferentemente, constituiu-se a hipótese em que findo o prazo de tolerância estipulado, sem que o empreendimento seja concluído. Nesse caso, o adquirente terá a faculdade de: (i) faze jus a multa moratória de 1% (um por cento) ao mês dos valores pagos, no período que exceder o prazo de tolerância; (ii) buscar a resolução do contrato, sem prejuízo do recebimento da integralidade dos valores desembolsados pela unidade imobiliária e das penalidades estabelecidas; ou (iii) celebrar um distrato pela incorporadora pelos termos acordados pelas partes3.
O artigo 43-A da Lei nº 4.591/1964 positivou o entendimento de diversos tribunais estaduais, com destaque ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo4, assim como ao entendimento que vinha sendo consagrado pelo STJ desde 2017, quando do julgamento do Recurso Especial 1.582.318/RJ5. Ao nosso sentir, tanto a fundamentação do STJ na decisão sobre a matéria, quanto a positivação do prazo de tolerância na Lei nº 4.591/1964 foram acertadas. Isso porque a lei não pode ser avessa à realidade, devendo o legislador – e o aplicador do direito – considerar a realidade para bem aplicar a lei.
No caso das incorporações imobiliárias, a complexidade desses empreendimentos – que envolvem a articulação de diversos fatores de produção sujeitos à imprevisibilidade – impossibilita, em parcela considerável dos casos, precisar uma data exata para a entrega das unidades aos adquirentes. Diante dessa realidade e da enxurrada de ações judiciais sobre o tema, a jurisprudência e, posteriormente, o legislador, pacificaram a validade da cláusula de tolerância. Isso não significa que o incorporador não deverá aplicar toda a diligência possível a fim de não exceder o prazo de 180 dias pois, nesse caso, sofrerá as consequências da verificação do descumprimento contratual e legal.
Assim resta claro que a cláusula de tolerância foi necessária em razão da considerável complexidade e imprevisibilidade envolvida na viabilização das incorporações imobiliárias em território nacional. Aqui, chama-se a atenção à sujeição dos empreendimentos à liberação da carta de habitação por Prefeituras de Municípios que não estão aparelhadas para dar o retorno dentro de um prazo razoável.
De outro lado, uma vez entendida a necessidade da existência do prazo de tolerância no âmbito das incorporações imobiliárias, surge o debate relativo a quais seriam os efeitos caso ultrapassado esse prazo. Isto é, mesmo com a aplicação do prazo de tolerância de até 180 dias, poderia haver uma flexibilização, de sorte que o incorporador não incorre em mora e/ou inadimplemento mesmo diante da entrega da obra após ultrapassado o prazo de tolerância? A celeuma foi intensificada em decorrência dos céleres e inesperados efeitos trazidos pela Covid-19, que acarretaram, em muitas localidades, a paralisação e/ou suspensão dos fatores de produção.
II. Caso fortuito e força maior em tempos de pandemia
É notório que o coronavírus impactou diretamente as relações contatuais, notadamente aquelas celebradas antes da pandemia. Nesse cenário, passou-se a discutir os efeitos jurídicos da Covid-19 nos contratos, invocando-se, com uma frequência jamais vista, os institutos do CFFM. Dessa forma, antes que passemos à análise da possibilidade da extensão do prazo de tolerância em tempos pandêmicos, é necessário analisar brevemente o artigo 393 do Código Civil.
Enquanto o caput do artigo 393 do Código Civil delimita os efeitos do CFFM – isenção de responsabilidade do devedor pelos prejuízos dele resultantes (quebra do nexo de causalidade) – seu parágrafo único caracteriza sua ocorrência, afirmando que “o caso fortuito e de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir”. Denota-se que o CFFM configura-se por um evento inevitável (necessário), cujus efeitos são irresistíveis ao devedor quando da sua ocorrência (não era possível evitar ou impedir).
Ademais, o devedor que invoca a ocorrência de CFFM só se exime de responsabilidade caso não tenha contribuído para o resultado danoso. Ou seja, o fortuito insere-se no âmbito dos eventos que exorbitam os deveres gerais de diligência que o devedor está adstrito. A aplicação do instituto começa, portanto, onde a diligência se torna inútil para evitar o resultado.
Nesse contexto a pergunta que se faz é: os efeitos trazidos pela Covid-19 configuram hipótese de excludente de responsabilidade do devedor em razão do caso fortuito ou força maior? A resposta, como quase tudo que circunda o mundo do direito, é “depende”.
Conforme antes exposto, CFFM restam configurados6 quando a obrigação for impactada por um evento imprevisível que torne impossível seu cumprimento pelo devedor. Contudo, não se pode ceder à tentação simplista e descolada da boa técnica jurídica de afirmar que o coronavírus repercutiu de maneira idêntica em todos os contratos. Nem acontecimentos gravíssimos, como uma pandemia, causam impactos idênticos a todos os contratos, dependendo a sua caracterização7 da análise de causa e efeito da pandemia no negócio jurídico objeto de análise, bem como da impossibilidade do devedor de evitar tais consequências. Assim, compete à parte prejudicada a demonstração de que a obrigação tornou-se, efetivamente, impossível devido à pandemia.
Em suma, para que o incorporador tenha êxito ao invocar a excludente resultante da configuração de CFFM, deverá demonstrar, com base em fatos concretos, que os efeitos da pandemia geraram consequências que o impediram de realizar a prestação em conformidade com aquilo que foi estabelecido. Como antes mencionado, a prestação devidamente cumprida pelo incorporador reveste-se na conclusão do empreendimento dentro do prazo de tolerância estipulado pelas partes. Assim, percebe-se a importância da mensuração do elemento culpa do incorporador8 no sucesso ou insucesso na sua eventual pretensão de invocar a excludente em razão de CFFM.
III. Interpretação do prazo de tolerância à luz do Código Civil – o necessário diálogo entre o artigo 43-A da Lei 4.591/1964 e o artigo 393 do Código Civil
Assentadas as bases que tocam ao presente estudo, quais sejam, o prazo de tolerância previsto na Lei 4.591/1964 e o CFFM, disciplinados pelo Código Civil, passamos ao questionamento que nos guiou até aqui: pode o prazo de 180 dias previsto no artigo 43-A da Lei 4.591/1964 ser estendido em razão de consequências oriundas da pandemia?
Ao nosso sentir, o prazo de tolerância considera uma “imprevisibilidade genérica”. Não estão abarcados pela referida disposição, portanto, todos os eventos que possam atrasar o cronograma de obra, incluindo-se as hipóteses que podem ser trazidas em razão da configuração do CFFM.
Com isso em mente, temos que não há qualquer conflito entre o artigo 43-A da Lei 4.591/1964 e o artigo 393 do Código Civil. Isso é, o prazo de tolerância e a excludente de responsabilidade trazida pelas hipóteses de CFFM coexistem em perfeita harmonia, sendo ambos institutos aplicáveis em diferentes contextos. Por essa razão, não podemos excluir a possibilidade de o incorporador que, comprovadamente, tiver o seu cronograma impactado pelos efeitos da pandemia buscar a exclusão da sua responsabilidade ancorado no fortuito que impediu a entrega das unidades aos adquirentes no prazo pactuado, por não incorrer o incorporador em mora9. Inclusive, essa é a dicção do artigo 396 do Código Civil, dispondo este que “[n]ão havendo fato ou omissão imputável ao devedor, não incorre este em mora.”
Ressalta-se que a eventual postergação na entrega da obra, invariavelmente, tem o condão de prejudicar de forma igual, ou mesmo maior, o incorporador, que se vê cerceado de receber grande parte da parcela do preço, que costuma ocorrer após a expedição do habite-se, por meio de financiamento imobiliário aos adquirentes.
Pode-se arguir que, em determinados estados da federação, obras de construção civil foram paralisadas apenas por um certo período, eis que logo em seguida à paralisação generalizada das atividades a construção civil foi incluída em muitos locais no rol das chamadas atividades “essenciais”. Contudo, para a incidência dos institutos do CFFM, o prazo de paralização é apenas mais um elemento a se verificar. Isso porque o atraso na obra pode ser ocasionado por diversas razões além da expressa determinação de paralização das obras pelo Poder Público, como a falta de mão de obra ou de escassez de materiais de construção no mercado.
De outro lado, a arguição genérica de CFFM não exime a responsabilidade daquele incorporador inadimplente em razão de atrasos a ele imputáveis. Assim, passa-se à análise da conduta exigida do incorporador para a caracterização da excludente de responsabilidade ora analisada.
IV. Incorporação imobiliária e caso fortuito e força maior – conduta exigida do incorporador
É importante reconhecer que a possibilidade de o incorporador invocar a hipótese de CFFM não significa acobertar a sua inércia. Mesmo diante de um fato dito irresistível, exige-se uma conduta ativa do agente, decorrente dos deveres anexos à boa-fé objetiva, consagrada no artigo 422 do Código Civil.
O fato de o cronograma de obra ter sido prejudicado em razão dos efeitos de uma pandemia não afasta o legítimo interesse do adquirente de ser informado do status da obra. Dessa forma, resta claro que o incorporador tem o dever de manter os adquirentes atualizados sobre o estado do empreendimento e de possíveis atrasos com a maior antecedência possível.
Frisa-se que a configuração de CFFM é, realmente, exceção à regra. Ademais, o Poder Judiciário poderá aplicar a exceção de forma modulada, trazendo uma solução que não onere em demasiado uma parte, ainda que tal excludente seja o instituto cabível para se buscar o equilíbrio contratual por si só10. Como exemplo, pode-se ventilar o pagamento de um aluguel mensal pelo incorporador ao adquirente, em caso de superação do prazo de tolerância, em valor entre 0,5% a 0,35% ao mês, em vez do percentual de 1% ao mês, previsto pelo artigo 43-A, § 1º da Lei 4.591/1964. A análise do elemento culpa do incorporador será crucial para essa quantificação.
Tendo em vista que a prova quanto à ocorrência de CFFM dependerá do incorporador em eventual judicialização posterior, é aconselhável que todos os eventos que atrasem o cronograma de entrega sejam devidamente documentados. Apenas para citar alguns exemplos, o incorporador deverá: (i) registrar no relatório diário de obra, os atrasos, faltas e número de empregados disponíveis no canteiro de obra; (ii) reunir todos os decretos e outras regulações que impeçam ou suspendam atividades no canteiro de obras ou que impactem no fornecimento de matéria-prima; (iii) reunir e-mails e outras comunicações aos adquirentes em relação a anormalidades e eventuais atrasos como resultado direto do efeitos da pandemia; (iv) fazer prova das paralisações dos órgãos públicos em relação à emissão da carta de habite-se como resultado direito da pandemia; e (v) fazer prova da conduta proativa para dirimir os efeitos do retardamento da obra, na medida do possível e da razoabilidade, entre várias outras comprovações.
Ditas precauções serão o passaporte não apenas para eventualmente isentar a responsabilidade do incorporador efetivamente impactado pela pandemia, mas para afastar a conduta oportunista daqueles que tentam se esquivar dos efeitos da mora ou mesmo do seu inadimplemento sem um respaldo jurídico.
V. Conclusão
A seguir, indicamos aquelas conclusões que, ao nosso entender, melhor refletem as corretas soluções ao tema ora tratado:
(i) Os reflexos da pandemia, como regra geral, não isentam a responsabilidade do incorporador pela postergação da obra após o prazo de tolerância pactuado;
(ii) É recomendável que incorporador, para que possa comprovar a configuração da excludente de CFFM, disponha de farto conteúdo probatório acerca da ocorrência de eventos que tenham causado interferência na execução e bom termo da obra. Ademais, o incorporador deverá manter os adquirentes informados, minimizando as consequências para eles, bem como deverá atuar com condutas positivas para dirimir interferências no curso da obra e evitar o atraso11; e
(iii) O incorporador, dependendo das circunstâncias, poderá isentar-se dos efeitos da mora e/ou do inadimplemento na entrega da obra, mesmo após transcorrido o prazo de tolerância previsto no artigo 43-A, caput da Lei 4.591/1964.
___________
*Fabio Machado Baldissera é advogado e sócio do escritório Souto Correa Advogados. Doutor em Direito pela Universidad de Burgos (Espanha) e especialista em Direito Imobiliário pela FADISP. Diretor Estadual do Ibradim-RS, membro do Conselho Consultivo da Associação Gaúcha do Advogados do Direito Empresarial (AGADIE).
**Bernardo Borchardt é graduando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS.
___________
1- Esse artigo constitui-se numa adaptação mais reduzida de um artigo que está em processo de publicação pelo IBRADIM.
2- Esse foi o caso da cidade de Pelotas, no Estado do Rio Grande do Sul, cujo Decreto Municipal 6.300/2020 foi alvo de Ação Direta de Inconstitucionalidade interposta pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul. Vide: Disponível aqui. Acesso em 17 de set. de 2020.
3- Sobre os limites do distratos, vide: BALDISSERA. Fábio Machado; BORCHARDT. Bernardo. Incorporação imobiliária: alcance do Distrato nos termos do § 13º do artigo 67-A da Lei 4.591/1964. In: Lei dos Distratos: Lei 13.786/2018, Coletânea IBRADIM, Coord. Olivar Vilate, (São Paulo: Quartier Latam, p. 143 – 150.
4- Nesse sentido: TJSP, Apelação 0275522-40.2009.8.26.00, 2ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Álvaro Passos, j. 07/10/2014; TJSP, Apelação 0159707-78.2012.8.26.0100, 2ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des José Carlos Ferreira Alves, j. 16/09/2014; TJSP, Apelação 1054148-81.2013.8.26.0100, 9ª Câmara de Direito Privado. Rel. Des. Mauro Conti Machado, j. 14/04/2015.
5-STJ, REsp 1.582.318/RJ, 3ª Turma, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 12/09/2017, DJe 21/09/2017.
6- Segundo Jorge Cesa Ferreira da Silva: “Com alguma frequência, constata-se na prática uma certa confusão entre CF/FM e ‘fato necessário’, como se qualquer fato necessário, alheio à vontade das partes e, sobretudo, do devedor, gerasse a liberação deste. Essa confusão é identificada em questões postas tais como: seria a pandemia de Covid-19 ‘um evento’ de CF/FM? A resposta inafastável só pode ser uma: depende. De um lado, depende da análise dos efeitos do fato, como se verá a seguir. De outro, depende da causação do evento. Neste âmbito, há conexão com a culpa”. FERREIRA DA SILVA. Jorge Cesa. Caso fortuito e força maior: o papel da culpa para a sua caracterização. Disponível aqui.Acesso em 15 ago. 2020.
7- SCHREIBER, Anderson. Devagar com o andor: coronavírus e contratos: Importância da boa-fé e do dever de renegociar antes de cogitar de qualquer medida terminativa ou revisional. Disponível aqui. Acesso em 09 mai. 2020.
8- Vide: FERREIRA DA SILVA. Jorge Cesa. Caso fortuito e força maior: o papel da culpa para a sua caracterização. Disponível aqui. Acesso em 15 ago. 2020.
9- Em sentido análogo: “(...) suponhamos que um incorporador, em um específico empreendimento, tenha comprovado que a Covid-19 impactou aquela obra por 90 dias, e por conta disso, o imóvel somente ficou disponível para entrega 40 dias depois de vencido o prazo de tolerância. Leia-se: o termo pactuado se venceu, e não há mora do incorporador.” ABELHA, André. Quatro impactos da covid-19 sobre os contratos, seus fundamentos e outras figuras: precisamos, urgentemente, enxergar a floresta. Disponível aqui. Acessado em 17 de setembro de 2020.
10- Nesse sentido: “Ordem é o começo de tudo. Saber que o sistema jurídico não elegeu o caso fortuito como gatilho para o reequilíbrio de um contrato é o primeiro passo para estudar e discutir questões mais profundas.” ABELHA, André. Quatro impactos da covid-19 sobre os contratos, seus fundamentos e outras figuras: precisamos, urgentemente, enxergar a floresta. Disponível aqui. Acessado em 16 ago. 2020.
11- Nesse mesmo sentido: “Em qualquer circunstância, as medidas adotadas pelo devedor serão relevantíssimas para a aplicação da excludente. É o caso concreto que definirá tanto essa aplicação quanto os seus efeitos.” FERREIRA DA SILVA. Jorge Cesa. Caso fortuito e força maior: as questões em torno dos conceitos. Ocorrência de caso fortuito e força maior como hipótese de isenção, mitigação e da execução de certos deveres.Caso fortuito e força maior: as questões em torno dos conceitos. Acesso em 16 ago. 2020.