Texto de autoria de André Abelha
Houston, we have a problem. Preocupação no mercado imobiliário1. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) proibiu as centrais eletrônicas de registro de imóveis (“Centrais”) de cobrar quaisquer valores dos usuários finais das suas plataformas. O que está em jogo? Para entendermos, precisamos voltar brevemente no tempo2.
Parece uma eternidade, mas o público em geral só começou a ter acesso à internet em 1996. Ainda estávamos em 1998, e os paulistas já saíam na frente na prestação de serviços registrais eletrônicos, quando a Associação dos Registradores Imobiliários de São Paulo (ARISP) disponibilizou um serviço integrado para pedidos de certidões na Capital. Era o pontapé inicial.
Mais de uma década se passou sem grandes novidades, até que em 2009, a Lei nº 11.977 trouxe a previsão oficial para a implementação, no Brasil, do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis, para interconectar os cartórios e viabilizar serviços registrais em elevado padrão técnico. A Lei, no art. 38, p. único, previu que os cartórios deveriam disponibilizar “serviços de recepção de títulos e de fornecimento de informações e certidões em meio eletrônico”.
Seis anos depois, o CNJ editou o Provimento 47/2015, cujo artigo 3º estabelece que o intercâmbio de documentos eletrônicos e informações ficaria a cargo das Centrais a serem criadas nas 27 Unidades Federativas, uma única em cada local. O mesmo Provimento determinou: (i) que as Centrais seriam criadas pelos próprios registradores, e reguladas por ato da Corregedoria local; (ii) onde não fosse possível ou conveniente a criação da Central local, poderia ser utilizada a Central de outro Estado ou do DF; e (iii) que as Centrais deveriam se coordenar para universalizar o acesso ao tráfego eletrônico em todo o País.
Como o marco normativo da universalização do acesso ao registro eletrônico estava finalmente posto, as principais entidades registrais3 comprometeram-se, em 2016, a criar a Coordenação Nacional das Centrais de Serviços Eletrônicos Compartilhados do Registro de Imóveis4. Esse esforço resultou na criação do portal (Portal E-Registradores)5, que disponibiliza diversos serviços virtuais:
Resumidamente, as Centrais fornecem os seguintes serviços eletrônicos:
• Serviços enquadrados na Lei 11.977/2009: (i) E-protocolo, para a recepção de títulos; (ii) Certidões digitais, para o fornecimento de matrículas; e (iii) Pesquisa de bens, para a busca de bens imóveis em nome da pessoa física ou jurídica pesquisada;
• Serviços corporativos: (i) Intimações e consolidação da propriedade fiduciária, centralizando e padronizando o envio de documentos pelas instituições financeiras; (ii) Pesquisa prévia, que fornece relatório das matrículas associadas a uma pessoa; (iii) Matrícula on-line, que permite a consulta instantânea dos dados de uma matrícula; (iv) Monitor registral, que monitora as ocorrências de uma matrícula em determinado período, avisando o usuário; (v) Repositório confiável de documento eletrônico, que permite o armazenamento de documentos para atos registrais, tais como contratos sociais, certidões, procurações e outros, evitando nova apresentação a cada pedido de registro ou averbação; e
• Serviços gratuitos: (i) Central Nacional de Indisponibilidade, que distribui uma ordem de indisponibilidade para os cartórios ligados à plataforma; (ii) Penhora on-line, que permite ao Judiciário e entidades beneficiadas pela gratuidade o protocolo de ordens de penhora, arresto e sequestro, e ainda pesquisa de bens e obtenção de matrículas; e (iii) Ofício eletrônico, utilizado por órgãos federais, autarquias e entes públicos, evitando a necessidade de uso de papel, impressão e postagem.
Atualmente já estão integradas ao Portal as Centrais do Distrito Federal (DF) e dos Estados indicados em verde:
Hoje o sistema já contabiliza mais de um bilhão de atos. Enquanto escrevo, a soma é de 1.006.297.4166 de atos, e ao ser lido por você esse número já cresceu bastante.
Recapitulando: 2009, a previsão do SREI e dos serviços eletrônicos; 2015, o Provimento CNJ 47 prevendo as Centrais; 2016, criou-se a Coordenação Nacional das Centrais e implementou-se o portal e-Registradores.
Chega o ano de 2017, e com ele a Lei nº 13.465, uma norma multitemática que tratou de regularização fundiária e muito mais, e ali no meio estabeleceu que o SREI seria implementado, em âmbito nacional, pelo Operador Nacional do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (ONR), este regulado pelo CNJ. O parágrafo 6º do art. 76 previu que os serviços eletrônicos seriam disponibilizados sem ônus “ao Poder Judiciário, ao Poder Executivo federal, ao Ministério Público, aos entes públicos previstos nos regimentos de custas e emolumentos dos Estados e do Distrito Federal, e aos órgãos encarregados de investigações criminais, fiscalização tributária e recuperação de ativos”.
O Provimento CNJ nº 89, de 18 de dezembro de 2019, também tratou do SREI e do ONR, na linha da Lei nº 13.465/17. E, no espírito da Lei 11.977/09 e do Provimento CNJ 47/2015, reforçou o papel das Centrais. Entre as novidades, vieram o Código Nacional de Matrícula (CNM) e o Serviço de Atendimento Eletrônico Compartilhado (SAEC), o qual, nos termos do art. 16, p. único, é “uma plataforma eletrônica centralizada que recepciona as solicitações de serviços apresentadas pelos usuários remotos e as distribui às serventias competentes”.
Já em 2020, o CNJ, em decisão plenária do dia 23 de junho7, ratificou a liminar concedida pela Corregedoria Nacional de Justiça, que proibira a cobrança de taxas e contribuições por serviços prestados pelas Centrais, sob o fundamento de que “não cabe a nenhuma central cartorária do País efetuar cobranças dos seus usuários, ainda que travestidas de contribuições ou taxas, pela prestação de seus serviços, sem previsão legal”, e que “a atividade extrajudicial é um serviço público, exercido em caráter privado, cujos valores dos emolumentos e das taxas cartorárias pressupõem a prévia existência de lei estadual ou distrital”.
Essa decisão motivou, no dia seguinte, a edição do Provimento CNJ nº 107, de 24 de junho de 2020, o qual, proibiu “a cobrança de qualquer valor do consumidor final relativamente aos serviços prestados pelas centrais registrais e notariais, de todo o território nacional, ainda que travestidas da denominação de contribuições ou taxas, sem a devida previsão legal”.
De acordo com o Provimento: (i) os custos de manutenção, gestão e aprimoramento dos serviços prestados pelas centrais devem ser ressarcidos pelos delegatários, interinos e interventores vinculados as entidades associativas coordenadoras; (ii) as entidades associativas podem custear tais despesas, em nome de seus associados; e (iii) as Corregedorias locais devem inserir as Centrais em seu calendário de correições e inspeções, com a finalidade de verificar a observância das normas vigentes que lhe são afetas.
A própria Corregedoria Nacional de Justiça, ao tomar conhecimento, pela imprensa8, de notícias sobre a inclusão de custos cartorários nos financiamentos imobiliários da Caixa Econômica Federal, proferiu decisão no dia 3 de julho, já com base no Provimento CNJ 107/2020, suspendendo a contratação, pelas Centrais, de qualquer contrato ou convênio com a Caixa para a inclusão de custos operacionais.
As Centrais alegam que o recente posicionamento do CNJ contraria o entendimento pacificado do próprio órgão, que por várias vezes teria reconhecido expressamente a legalidade de tal cobrança, para reembolso dos custos.
Ainda segundo as Centrais, se mantida a proibição, é preciso criar uma alternativa para o custeio dos serviços, pois: (i) os registradores somente estão obrigados a implementar plataformas individuais em suas próprias serventias para se integrarem ao sistema, não tendo que custear os serviços interoperacionais das Centrais; (ii) associações privadas não podem ratear o custeio entre os registradores não-associados, nem podem impedir que os registradores associados deixem de sê-lo; e (iii) ainda que prevaleça o Provimento CNJ 107/2020, sua interpretação e aplicação não pode abarcar os Serviços Corporativos, que são facultativos, e ofertados como forma de tornar o acesso à informação ainda mais eficiente.
Este é o cenário, caro leitor. Urge que se encontre uma solução que mantenha ativos os serviços que, em seu conjunto, representaram verdadeiro avanço para a celeridade e segurança dos negócios imobiliários.
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1 Confira matéria veiculada no Valor Econômica, com o título “Fim de plataforma eletrônica preocupa incorporadoras”. Disponível em clique aqui. Acesso em 15.jul.2020.
2 Este não é um artigo opinativo, e visa apenas a ordenar os fatos para sua melhor compreensão.
3 O compromisso foi firmado pelo Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB), com a participação da Associação dos Notários e Registradores do Brasil (ANOREG/BR) e de associações do DF e de 10 Estados: DF, SP, TO, AM, SE, MS, MG, PA, GO, RS e PA.
4 O Comitê Gestor da Coordenação Nacional das Centrais de Serviços Eletrônicos Compartilhados do Registro de Imóveis é formado por membros do IRIB, da ANOREG/BR e das entidades locais que já possuam Central em funcionamento.
5 Com a denominação de Portal de Integração dos Registradores de Imóveis do Brasil.
6 Informação disponível em clique aqui. Acesso em 19.ago.2020.
7 Nos autos do Pedido de Providência nº. 0003703-65.2020.2.00.0000, em que foi requerido o Colégio Registral Imobiliário de Minas Gerais. Íntegra disponível em clique aqui. Acesso em 15.jul.2020.
8 A decisão citou a notícia veiculada pelo UOL, com a manchete “Caixa vai incluir imposto e custo cartorário em financiamento de imóvel”. Disponível em clique aqui. Acesso em 15.jul.2020.