Texto de autoria de Olivar Vitale
O presente trabalho tem como objetivo analisar legislação, doutrina, tanto brasileira quanto italiana, e um pouco de jurisprudência, a respeito da onerosidade excessiva e a possibilidade de revisão contratual (modificação quantitativa), em especial por razão da Covid-19.
Introdução
Desde meados de fevereiro, começo do mês de março de 2020, estamos vivendo momento único no mundo. Inúmeros países, por seus governos, estão determinando o isolamento social, também chamado de lockdown. Com isso, as ruas estão vazias, os comércios e shopping centers em geral estão fechados, algumas fábricas com operação suspensa e a população trancafiada em suas residências.
A imprevisibilidade do que se está vivendo parece óbvia. Soubessem os cidadãos da situação que passaríamos, decerto diversas relações jurídicas não seriam entabuladas. Se entabuladas, provavelmente preveriam a atual situação e as consequências diversas a cada contrato.
Mas a questão principal é: diante desse evento imprevisível, que direitos e deveres remanescem às partes contratantes? Nas contratações pecuniárias, permanece a obrigação do devedor efetuar o pagamento? Pode o devedor requerer a resolução do contrato ou a sua revisão? É direito do credor simplesmente não aceitar a resolução? E a revisão?
Alguns disclosures são importantes antes de adentrar na argumentação em si. O presente artigo não persegue a questão da força maior e do caso fortuito, delimitados no artigo 393 do Código Civil. A lei é clara ao determinar em mencionado dispositivo que o devedor não responde pelos prejuízos resultantes da força maior ou do caso fortuito, a não ser que tenha se responsabilizado expressamente por eles. Entretanto, nada trata em relação à avença em si, às obrigações contraídas, sua conservação, revisão ou até mesmo resolução, motivo pelo qual o tema força maior/caso fortuito não foi encaixado nesse estudo.
Além disso, fundamental registrar que as relações objetivas nesse arrazoado, apesar de serem de direito privado, propositadamente não englobam relações consumeristas, eis que o específico novel, em seu artigo 6º, assegura expressamente ao consumidor, ora devedor, o direito à modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou a sua revisão por motivo de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas (teoria da base objetiva do negócio jurídico).
Pois bem. Com menos de um mês da declaração da Pandemia, pululam inúmeros artigos jurídicos a respeito das consequências da covid-19. A maioria deles recomendando a serenidade e negociação entre as partes. A razão da elaboração desse artigo, entretanto, é focar na questão das posições de devedor e credor diante da inusitada situação imprevista, especialmente à luz da legislação civilista em vigor e, ultrapassada sem sucesso toda a senda conciliatória, a alternativa, ou não, de resolução ou revisão do contrato entabulado.
1. Dos princípios do Código Civil
Antes mesmo de adentrar na questão em si, fundamental à conclusão do raciocínio pontuar os princípios basilares do nosso ordenamento jurídico, mais precisamente o Código Civil.
Diante de inusitada situação vivida com a Pandemia Covid-19, o que se espera das partes envolvidas, em quaisquer situações jurídicas ora postas em prova, é a aplicação dos princípios que norteiam a relação em sociedade em nosso país. São eles, principalmente, boa-fé objetiva1, conservação dos contratos2, função social do contrato3 e equilíbrio econômico.
O princípio da boa-fé objetiva, como bem pontuado por Judith Martins-Costa, é regra de conduta que pauta a atuação das partes quando da aplicação ou renegociação das cláusulas de acomodação do contrato às circunstâncias, sendo incidente ao exercício jurídico4.
Já o princípio da conservação dos contratos trata da busca pela conservação, tanto do legislador quanto do intérprete, do negócio jurídico realizado pelos agentes5.
Ainda, o princípio da função social do contrato, nas palavras de Maria Helena Diniz, "não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio, quando presentes interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana". Ou seja, resumindo em apertada síntese, limita a autonomia contratual no que toca à dignidade da pessoa humana. Ao se falar em contrato firmado, cujos efeitos estão abalados pelo momento de Pandemia, não se cogita o não atendimento à sua função, especialmente considerado o equilíbrio no momento de sua celebração.
Por fim, o princípio do equilíbrio econômico, na opinião do mesmo Junqueira de Azevedo, é um "princípio interpretativo", eis que leva em conta os institutos da lesão6 e onerosidade excessiva, ambos, esses sim, previstos expressamente em nosso ordenamento civil. A mesma Judith Martins-Costa ensina que o princípio do equilíbrio econômico é deduzido de um conjunto de regras e de institutos contidos no Código Civil, parecendo incontroverso estarem o seu sentido e os seus limites orientados por aquelas mesmas regras e institutos.
Explanado cada um deles, importante pontuar que o real motivo de iniciar esse artigo pelos princípios diz respeito à importância do entendimento de que são importantíssimos à interpretação legal mas, principalmente, para nortear a conduta das partes, do legislador e do Judiciário, mormente em situações singulares como a presente, da covid-19.
Não têm aludidos princípios, entretanto, o condão de se sobrepor a regras específicas do mesmo Código Civil, norma legal do qual os próprios exsurgem. Isto é, ao tratarmos adiante dos artigos 478 e 479 do Código Civil, tais princípios decerto a esses artigos não se sobrepõem, e nem poderiam, como também não ocorre em outras inúmeras situações específicas previstas no mesmo Código Civil.
Não se nega que nesse momento, de desequilíbrio em todos os sentidos, fundamental a aplicação dos princípios acima. Tanto pelas partes quanto pelo intérprete da lei ao acomodar a vontade das partes.
Por assim dizer, em necessária negociação para reanálise de alguma contratação, sem dúvida cabe às partes conduta a respeitar a boa-fé objetiva, buscando a melhor acomodação das condições do contrato à nova realidade. O mesmo se argumenta no tocante ao almejado reequilíbrio econômico da situação jurídica, visando sempre à conservação da avença, mantendo-se assim, inclusive, a função social do contrato.
2. Da onerosidade excessiva. Resolução e/ou Revisão (modificação equitativa)
Como operadores do Direito, nessa esteira, sem dúvida nos cabe a orientação para as partes agirem conforme os ditames acima elencados, explanados e legalmente previstos.
Certamente no mais das vezes isso evitará a indesejada resistência de pretensão do devedor, ora alegadamente incapaz de cumprir o quanto pactuado, em razão do Covid-19 e suas consequências.
Mas nem sempre o desejado é alcançado.
E por corolário demandas judiciais serão propostas tendo como motivação a covid-19 e como matéria de fundo o desejo do devedor em romper a sua obrigação ou, ao menos, torná-la menos onerosa.
Para tanto, fundamental o estudo do ordenamento jurídico, de maneira a tentar elucidar o que há de direito e dever de cada uma das partes em momento inusual como o presente.
Pois bem. Prevê o artigo 478 do Código Civil que "nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação".
Por sua vez, e na sequência, eis a dicção do artigo 479 do mesmo códex: "a resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato".
Que o Covid-19 é acontecimento extraordinário e imprevisível parece não restar dúvida, conforme anteriormente argumentado.
Cabe à parte devedora, portanto, na atual existência de Pandemia, comprovar que a sua continuada ou diferida prestação se tornou excessivamente onerosa na situação jurídica entabulada, e ao menos ligeiramente demonstrar inovada e considerável vantagem para a outra. Nesse caso, se assim comprovado, poderá o devedor pleitear a resolução do contrato, eximindo-se da obrigação.
A dúvida que remanesce é se o devedor poderia requerer a revisão contratual, em vez de sua resolução.
Muito argumentam que sim. Como se verá, até mesmo parte da jurisprudência pátria. E mais do que isso. Alguns se apoiam nos princípios civilistas acima delineados, como se todo um sistema de direito civil fosse regrado por princípios a se sobrepor às regras específicas contidas na mesma norma. Razão não lhes assiste, por mais que venha ganhando corpo essa malfadada corrente.
E isso porque o regramento legal é cristalino e tem a sua razão de ser.
As partes apresentam as suas condições e então contratam. Cada qual só aceita se amarrar à avença porquanto atendidas aquelas suas debatidas e negociadas condições.
Um evento imprevisível e extraordinário surge e ameaça tudo quanto ajustado pelas partes. O legislador brasileiro, bebendo da fonte do ordenamento jurídico italiano que também assim regra a matéria, bem previu que desde que comprovado o imprevisto e demonstrada a onerosidade excessiva ao devedor, e a vantagem do credor, pode o primeiro se eximir da obrigação, rompendo o quanto contratado.
Por outro lado, o mesmo legislador, visando conservar o contrato, empoderou o credor, permitindo que esse oferte a revisão da avença, por meio da modificação equitativa de sua prestação.
Diferente não poderia ser. Facultasse ao devedor requerer judicialmente a revisão do contrato por onerosidade excessiva, e não apenas a sua resolução, teria o legislador imputado ao credor o dever de aceitar condições contratuais que talvez jamais aceitasse no momento da contratação, impondo a ele ônus econômico por vontade alheia, sem o seu consentimento7. Isso é fundamental eis que respeita toda uma base equilibrada entre essas partes, conferindo a exclusividade da força da revisão a quem optaria por manter o quanto contratado mas, por razões alheias à sua vontade, é obrigado a decidir entre aceitar a resolução ou, minorando a sua perda, oferecer a revisão.
A pergunta ainda latente é se seria justo impor ao devedor que a avença seja mantida, mesmo tendo esse requerido a sua resolução, caso o credor se valha do artigo 479 do Código Civil. E nesse caso a resposta é positiva. Trata-se de direito potestativo do credor. Note-se que, de uma forma ou outra, a obrigação do devedor será menos gravosa que aquela contratada originalmente, motivo pelo qual há presunção segura de que algum benefício ele terá. Além disso, a lei é clara ao definir que a modificação há que ser equitativa, isto é, o Juízo instado a decidir a respeito da lide deverá, para a fixação da nova prestação contida na avença mantida, fazê-lo com equidade, ou seja, visando ao restabelecimento do devido equilíbrio contratual.
Importante pontuar que essa sistemática do Código Civil brasileiro segue a legislação italiana, e a doutrina majoritária por lá, que, no mesmo sentido, confere ao devedor o direito de pedir a resolução do contrato em situação não prevista, mas apenas ao credor pleitear a sua revisão.
Ainda, haverá quem defenda a possibilidade da revisão do contrato pelo devedor, valendo-se de regra geral do artigo 317 do mesmo Código Civil. Ledo engano, conforme ora se explica.
O artigo 317 do Código Civil prevê que "quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação".
Primeiramente, está aqui a tratar única e exclusivamente de montante específico previsto em prestação, ou seja, pecúnia.
No mais, como se depreende inclusive do inicial projeto de lei convertido em lei, no caso o nosso Código Civil, com todas as alterações que geraram o texto final, estar-se-á tratando única e exclusivamente da aplicação da correção monetária, tão importante em um país que sucedeu diversos planos econômicos, com intervenções governamentais, que geraram o desequilíbrio contratual a ser restabelecido.
Não menos importante é o fato do artigo 317 aparecer no capítulo "do objeto do pagamento e sua prova" e do artigo 315 do mesmo códex, logo anterior ao 317, prever que "as dívidas em dinheiro deverão ser pagas no vencimento, em moeda corrente e pelo valor nominal, salvo o disposto nos artigos subsequentes" (grifamos).
A jurisprudência pátria, no que diz respeito à onerosidade excessiva, é praticamente uníssona no sentido de que os requisitos são "contrato de execução continuada ou diferida, vantagem extrema de outra parte e acontecimento extraordinário e imprevisível, cabendo ao juiz, nas instâncias ordinárias, e diante do caso concreto, a averiguação da existência de prejuízo que exceda a álea normal do contrato, com a consequente resolução do contrato diante do reconhecimento de cláusulas abusivas e excessivamente onerosas para a prestação do devedor"8.
Evocando a título exemplificativo a única jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema encontrada em favor da possibilidade de revisão contratual pelo devedor em caso de onerosidade excessiva, em que há um perigoso e a nosso ver equivocado mix dos artigos 478 e 479, com o 317, todos do Código Civil, a ministra Nancy Andrighi mescla os institutos aqui mencionados, inclusive o Código de Defesa do Consumidor em relação não consumerista, o que resulta em grande confusão, decidindo que "não obstante a literalidade do art. 478 do CC/02, entendo ser possível aplicar o instituto também na mesma direção indicada pelo CDC – e respeitados, obviamente, os requisitos específicos estipulados na Lei civil – especialmente pela necessidade de se dar valor ao princípio da conservação dos negócios jurídicos que foi expressamente adotado em diversos outros dispositivos do CC/02... É de ser citado, ainda, o art. 317 do mesmo Código, que guarda maiores proporções com o tema aqui versado..." Tudo para, a final, por razões alheias ao aqui estudado, decidir pela "não ocorrência da onerosidade excessiva, faltando à pretensão a verificação da circunstância fática exigida pelo art. 478 do CC/02"9.
Essa fundamentação acima esposada, que nem sequer resultou na revisão do contrato pelo devedor, por razões outras, não é recente (2009) e, ao menos pelo que estudamos, é isolada.
Mantem-se, portanto e entretanto, o regramento cristalino legal de que o pedido do devedor em caso de onerosidade excessiva há que ser tão somente o da resolução do contrato, sob pena de impor ao credor a aceitação de prestação necessariamente inferior à ajustada por sua vontade originariamente, sem que concorra para tanto, o que é não admitido em nosso ordenamento civil.
Como se vê, por mais que parte da doutrina10 e da jurisprudência tente fazer do artigo 317 uma extensão da interpretação dos artigos 478 e 479, todos do Código Civil, por vezes inclusive invocando os princípios gerais contidos no Código Civil, fato é que o artigo 317 nada tem que ver com modificação equitativa, tal qual previsto no artigo 479, tratando somente da eventual intervenção judicial para aplicação de correção monetária à obrigação pecuniária, nada além disso.
3. Conclusão
O legislador brasileiro prevê socorro ao devedor que, diante de fator extraordinário e imprevisto como o Covid-19, esteja diante de ônus excessivo no cumprimento das obrigações previstas em contrato entabulado, desde que demonstre ainda a surgida vantagem ao credor.
Esse socorro, entretanto, é o de se eximir da obrigação, não o de rever as condições do negócio, à revelia do credor em que momento algum buscou se furtar do quanto pactuou.
Por fim, pode ainda o credor, esse sim já ciente de que as bases contratuais não serão mantidas por manifestação do devedor, pleitear a conservação do contrato, propondo uma modificação equitativa, a qual, uma vez não prontamente aceita pelo devedor, o que se espera tendo em vista que a pretensão foi judicializada, será devidamente apurada e decidida pelo julgador, obrigando as partes a cumprir a nova condição.
*Olivar Vitale é advogado, sócio fundador do VBD Advogados. Presidente do IBRADIM. Membro do Conselho de Gestão da Secretaria da Habitação do Estado de São Paulo. Conselheiro Jurídico do Secovi-SP e do Sinduscon-SP. Diretor da MDDI (Mesa de Debates de Direito Imobiliário). Membro do Conselho Deliberativo do Instituto Brasileiro de Direito da Construção – IBDiC. Professor e coordenador da UniSecovi, da ESPM-SP, da especialização/MBA da POLI-USP, professor da Escola Paulista de Direito – EPD, da Faculdade Baiana de Direito e de outras entidades de ensino.
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1 Código Civil, Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.
2 Código Civil, Art. 142. O erro de indicação da pessoa ou da coisa, a que se referir a declaração de vontade, não viciará o negócio quando, por seu contexto e pelas circunstâncias, se puder identificar a coisa ou pessoa cogitada, Art. 144. O erro não prejudica a validade do negócio jurídico quando a pessoa, a quem a manifestação de vontade se dirige, se oferecer para executá-la na conformidade da vontade real do manifestante, Art. 157, § 2º Não se decretará a anulação do negócio, se for oferecido suplemento suficiente, ou se a parte favorecida concordar com a redução do proveito e Art. 170. Se, porém, o negócio jurídico nulo contiver os requisitos de outro, subsistirá este quando o fim a que visavam as partes permitir supor que o teriam querido, se houvessem previsto a nulidade.
3 Código Civil, Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato.
4 Martins-Costa, Judith. A Boa-fé no Direito Privado, Marcial Pons, 2015, p. 607
5 Junqueira de Azevedo, Antonio. Negócio Jurídico: existência, validade e eficácia. 4ª edição, Saraiva, SP, 2010. p. 66
6 Código Civil, Art. 157. Ocorre a lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta.
7 Marino, Francisco Paulo de Crescenzo, Revisão Contratual, Ed Almedina, fev/2020, p. 73
8 Resp nº 1.034.702/ES, 4ª Turma, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJU de 05.05.2008
9 STJ, Resp 977.007, GO, negado provimento, V.U., 24 de novembro de 2009.
10 Dinis, Maria Helena, Código Civil Anotado, Ed. Saraiva, 14ª edição, São Paulo, 2009, p. 398.