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Covid-19, contratos de locação e onerosidade excessiva (?)

Covid-19, contratos de locação e onerosidade excessiva (?)

25/3/2020

Texto de autoria de Carlos Gabriel Feijó de Lima

Possivelmente este não será o primeiro artigo (nem o último) sobre os efeitos do COVID-19 aos contratos em curso em todo o país.

Inspirado na iniciativa de outros colegas, como André Roberto Machado (que recentemente publicou no LinkedIn artigo sobre o tema), dediquei-me especificamente ao que antecipo como uma das consequências do COVID-19 no Poder Judiciário: teses e tentativas de resolução e revisão contratual por parte de locadores e locatários.

Contextualizando, quase ao mesmo tempo em que as medidas de prevenção ao COVID-19 foram veiculadas, aí incluídos os decretos estaduais que fecharam parte do comércio, como shoppings centers, centros comerciais e lojas, locatários por todo o país passaram a notificar seus locadores, informando a impossibilidade de pagamento, requerendo isenção, revisão ou até resolução dos respectivos contratos de locação, sob o argumento de que os (devastadores) efeitos econômicos da novo coronavirus teriam levado à impossibilidade de adimplir com as obrigações estabelecidas.

Em alguns casos mais sofisticados, as notificações vieram acompanhadas de alguns breves argumentos jurídicos, dentre os quais destaco um que chamou bastante a minha atenção: o COVID-19 e seus efeitos são fatos imprevisíveis que levam à onerosidade excessiva no pagamento do aluguel como pactuado, rompendo-se o equilíbrio contratual.

A fim de satisfazer as pretensões deste breve artigo, pretende-se analisar o genérico fundamento acima.

O desequilíbrio contratual e o enriquecimento sem causa são, sem dúvida, abominados pelo ordenamento jurídico pátrio. Não à toa, a criatividade legislativa e doutrinária buscou, ao longo dos anos, remédios aptos ao seu combate, sendo o mais destacado o instituto da Onerosidade Excessiva (que passaremos a denominar "OE").

Esculpida no art. 478 da lei 10.406/2002 ("CC"), a OE ocorre se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, nos contratos de prestação diferida ou continuada, levando à revisão1 ou à resolução contratual.

Dentro do paradigma da "OE", o desequilíbrio se dá, então, entre as prestações e/ou obrigações das partes descritas no contrato, restando de um lado a onerosidade demasiada (com maior papel) e do outro a vantagem exagerada (com menor papel).

Neste ponto, vale destacar que a OE não se confunde com outros institutos como a impossibilidade jurídica da prestação, o caso fortuito e a força maior2, a deterioração da coisa locada ou a revisão locatícia, não analisados no presente artigo.

Isto posto, passa-se à premissa central de toda a discussão que cerca a OE (na verdade, todos os institutos aptos à modificação contratual): suas circunstâncias não são presumíveis.

Atendendo ao "dogma" (mas que comporta exceção) do ônus probatório, esculpido no art. 373 da lei 13.105/2015 ("CPC"), se a OE é o fato constitutivo do direito à revisão ou resolução contratual, cabe ao alegante prová-la, arcando com as consequências jurídico-processuais desta condição.

Nesse sentido, para se aplicar com responsabilidade a OE, é preciso entender que o desequilíbrio contratual superveniente não é algo que se avalia (ou prova) do ponto de vista subjetivo das partes, mas sim na perspectiva objetiva do contrato. Explicamos.

Originariamente, na formação do contrato, a vontade das partes, os seus interesses, a alocação de riscos e, claro, os aspectos econômicos estruturam um complexo equilíbrio contratual, valendo lembrar os ensinamentos do saudoso Antônio Junqueira de Azevedo que, com a lucidez que lhe era característica, se referia às circunstancias negociais, enquanto fios condutores da eficácia jurídica da manifestação de vontade das partes3.

Ou seja, é a partir destes aspectos subjetivos que se funda o equilíbrio contratual originário4.

Fruto do subjetivismo das partes, seria equivocado pensar que o equilíbrio contratual se determina somente por fatores econômicos, sendo certo que a intenção e interesses das partes ao contratar é muito mais complexa do que simples dígitos ou valores, mesmo que, em muitos casos, sejam um fator ímpar para a sua conclusão.

Esse equilíbrio contratual originário, fruto do subjetivismo que funda o contrato, sem dúvida, tem na sua delimitação um desafio à concretude, sendo (demasiadamente) laborioso tentar estabelecer o ponto exato de estabilidade5. Em outras palavras, dizer o que é o equilíbrio contratual casuisticamente é quase impossível.

Contudo, e em especial pelo advento da Lei 13.874/2019, há uma presunção de que as relações contratuais, não submetidas aos diplomas protetivos de nosso ordenamento, são equilibradas, nos termos do art. 421-A do CC, destacando-se mais uma vez o ônus probatório acerca da OE.

Assim, mesmo que não totalmente delimitado e, talvez, um pouco impreciso, é o equilíbrio contratual originário que servirá como parâmetro da verificação da OE, visando a proteção daquilo que cristalizou na conclusão do contrato6, passando a ser apreciado objetivamente.

Permitindo um parêntese, essa metáfora da cristalização é certeira no que toca a concretização do equilíbrio contratual. Ele se dá no contrato e lá permanece; o equilíbrio é das prestações contratuais e não das partes; o que era subjetivo agora é objetivo. E, é sobre este, agora objetivo, equilíbrio que se debruça a investigação acerca da OE.

Aspectos subjetivos do devedor da prestação como endividamento, mal caminhar de suas atividades econômicas, perda ou suspensão de vínculo laboral e outras mazelas não podem, em tese, levar ao reconhecimento da OE, por se tratarem de elementos subjetivos supervenientes ao contrato7.

O que se pretende verificar na OE é se o acontecimento superveniente diz respeito e afeta a lógica por trás das prestações contratuais; se algo altera a dinâmica prescrita, a ponto de produzir um grande descompasso no que antes estava equilibrado. E, assim, serve o reconhecimento da OE para que não se encontrem as partes fora da realidade do seu querer originário ou vitimadas pela impossibilidade de cumprimento da avença8.

Como muito bem destaca Ricardo Pereira Lira, sempre à frente de seu tempo, não se trata de dificuldade de adimplemento, mas sim de uma avaliação objetiva da prestação, em si e por si9, não se podendo falar em uma apreciação subjetiva da situação das partes contratantes.

Para que não passe em branco, necessário falar do outro requisito da OE: a extrema vantagem, muitas vezes referenciada como mero elemento acidental10, consequência da onerosidade demasiada em si.

Vale lembrar Carlos Maximiliano, que já afirmava não se poder presumir palavras supérfluas ou inúteis na Lei, sem prejuízo de se fazer valer seu espírito11.

Em verdade, se pensarmos no desequilíbrio como o deslocamento do fiel da balança, forçoso visualizar subida vertiginosa de um dos "pratos", com a queda do outro. Esta é a imagem que melhor descreve a OE.

Por esta razão, por mais que não seja um requisito peremptório, a extrema vantagem deve ser entendida como, ao menos, elemento balizador12 para caracterização da OE.

Outro importante requisito, é a imprevisibilidade e extraordinariedade do evento, que deverá importar na verificação de alea anormal, absolutamente distante da alocação de riscos pretendido pelas partes13 naquele já mencionado equilíbrio originário.

Nesse sentido, o enunciado 366 da IV Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal (utilizado com frequência pela melhor jurisprudência nacional14) comporta integralmente a conclusão acima: "O fato extraordinário e imprevisível causador de onerosidade excessiva é aquele que não está coberto objetivamente pelos riscos próprios da contratação".

Trata-se, portanto, a imprevisibilidade de fundamental elemento para a ocorrência da OE15, mas que deve cerrar fileira com os demais, sob pena de insuficiência.

Finalmente, a OE se verifica somente naqueles contratos de execução diferida e continuada, ou seja, naqueles que estabelecem o cumprimento de obrigações futuras e que se prolongam no tempo16.

Feitos estes breves esclarecimentos acerca da OE, retomamos o argumento exposto no princípio.

A locação urbana, regida pela Lei 8.245/91, por óbvio não se apresenta como um negócio isolado, inabalável por qualquer intempere17, sofrendo incidência direta das normas descritas no Código Civil. Contudo, pretender genericamente a caraterização da OE por eventos, mesmo que notórios, é esvaziar o significado do instituto e produzir efeito ainda mais nefasto: insegurança jurídica.

Dentro desta lógica, vale lembrar que a OE (na verdade, a revisão contratual em geral) é sempre excepcional, tendo, inclusive, recebido críticas por se tratar de hipótese remota de ocorrência18.

Passemos ao cotejamento do caso concreto com os esclarecimentos feitos acima.

Quanto à imprevisibilidade, neste ponto, não parece absurdo entender o COVID-19 como um evento imprevisível e extraordinário em relação à alocação dos riscos contratuais de maneira geral, desde que naqueles pactos celebrados com certa distância temporal dos eventos da pandemia. Isto porque, em função das necessidades de combate da proliferação do novo Coranavirus, diversos novos contratos vêm sendo firmados já inseridos nesse novo contexto.

Igualmente, não se pode duvidar que a locação urbana é contrato de execução diferida e continuada.

Desta feita, a controvérsia repousa nos elementos mais centrais da OE: a onerosidade demasiada de um contratante em relação à vantagem extrema do outro.

Por mais catastrófica que seja a pandemia do COVID-19, com nefastos resultados para a vida patrimonial de grande parcela dos brasileiros, tal fato não importa per se na modificação do equilíbrio contratual originário, mas sim em modificações subjetivas das partes contratantes.

Já discorremos acima que estas dificuldades no cumprimento, mesmo que oriundas de um evento imprevisível e extraordinário, não são capazes de alterar o equilíbrio das prestações contratuais. Pensando no contrato de locação: mesmo durante a pandemia, pelo valor “x” se loca o imóvel “y”, sem alteração desta dinâmica.

Refletindo sobre a onerosidade demasiada de umas partes, faz sentido buscar o balizador da extrema vantagem para afastar em definitivo a ocorrência da OE. Assim, indagamos: qual seria a vantagem extrema da outra parte? Receber o aluguel pactuado em tempos difíceis? Não nos parece razoável entender como vantagem extrema o mero adimplemento da obrigação.

Os aspectos subjetivos dos contratantes, dentro do paradigma da OE, não tornam o adimplemento algo excepcional.

Mais uma vez, reforça-se a ressalva de que não tratamos neste artigo de outros cenários aptos a modificar ou afetar a relação contratual (e, talvez, aplicáveis à pandemia do COVID-19), mas tão somente da OE aos contratos de locação.

Finalmente, forçoso lembrar que não há presunção da OE. Em exercício de quase vidência, não seria impossível imaginar que, em determinado caso concreto, com específicas considerações contratuais, possa ser caracterizada a OE por eventos decorrentes da pandemia. Contudo, tal ônus paira sobre o alegante.

Em conclusão, construir uma relação causa-efeito genérica entre o novo Coronavírus e a OE nos contratos de locação, isto sim, é impensável, correndo-se o risco de que se subverter a excepcional lógica da OE, instituto fundamental para a proteção de outras relações que dela merecem a tutela.

Carlos Gabriel Feijó de Lima é advogado. Professor. Pós-Graduado em Direito Privado Patrimonial pela PUC-Rio. Pós-Graduado em Direito Imobiliário pela UCAM. Vice-presidente da CDI do IAB. Secretário-geral da CDUDI da OAB/RJ.

__________

1 Enunciado 176 da III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal: “Em atenção ao princípio da conservação dos negócios jurídicos, o art. 478 do Código Civil de 2002 deverá conduzir, sempre que possível, à revisão judicial dos contratos e não à resolução contratual.”

2 WANDERER, Bertrand. A inaplicabilidade, em regra, dos institutos da lesão e da onerosidade excessiva aos contratos interempresariais. Universidade de Brasília (Dissertação de Mestrado), 2013. Pág. 110

3 JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Antonio. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. 4ª edição atualizada de acordo com o novo Código Civil. Saraiva, 2002. Pág. 17

4 CARDOSO, Luiz Philipe Tavares de Azevedo. A onerosidade excessiva no direito civil brasileiro. Dissertação (Mestrado) – Universidade de São Paulo, Faculdade de Direto do Largo do São Francisco, São Paulo, 2010. Pág. 95.

5 LEAL, Larissa Maria de Moraes; ALBUQUERQUE JUNIOR, Roberto Paulino de. A resolução do contrato por onerosidade excessiva no Código Civil Brasileiro de 2002 e sua aplicação no Superior Tribunal de Justiça. Revista Jurídica da FA7, nº 13, Fortaleza, 2016. Pág. 55

6 CARDOSO, Luiz Philipe Tavares de Azevedo. A onerosidade excessiva no direito civil brasileiro. Dissertação (Mestrado) – Universidade de São Paulo, Faculdade de Direto do Largo do São Francisco, São Paulo, 2010. Pág. 98.

7 Idem. Pág. 98.

8 VILLAÇA AZEVEDO, Alvaro. Inaplicabilidade da teoria da imprevisão e onerosidade excessiva na extinção dos contratos. Disponível em https://ablj.org.br/revistas/revista36e37/revista36e37%20%C3%81LVARO%20VILLA%C3%87A%20AZEVEDO%20Inaplicabilidade%20da%20teoria%20da%20imprevis%C3%A3o%20e%20onerosidade%20excessiva%20na%20extin%C3%A7%C3%A3o%20dos%20contratos.pdf. Pág. 65

9 PEREIRA LIRA, Ricardo. A onerosidade excessiva nos contratos. Revista de Direito Administrativo, 1985. Pág 11.

10 WANDERER, Bertrand. A inaplicabilidade, em regra, dos institutos da lesão e da onerosidade excessiva aos contratos interempresariais. Dissertação (mestrado) – Universidade de Brasília, 2013. Pág. 113

11 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito. 16ª Ed, Forense, Rio de Janeiro, 1997. Pág. 251

12 GOMES, Orlando. Contratos, 26ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. Pág. 215

13 SOUZA, Adalberto Pimentel Diniz de. A onerosidade excessiva nos contratos aleatórios. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, Faculdade de Direto do Largo do São Francisco, São Paulo, 2014. Pág. 32.

14 TJ-RJ - APL: 00400202120068190001 RJ 0040020-21.2006.8.19.0001, Relator: DES. GABRIEL DE OLIVEIRA ZEFIRO, Data de Julgamento: 20/03/2013, DÉCIMA TERCEIRA CAMARA CIVEL, Data de Publicação: 18/12/2013 10:32; STJ - AREsp: 1005264 MS 2016/0280372-3, Relator: Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, Data de Publicação: DJ 13/12/2017; TJ-SP - APL: 02605225920078260100 SP 0260522-59.2007.8.26.0100, Relator: Maria Lúcia Pizzotti, Data de Julgamento: 25/03/2013, 20ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 28/03/2013.

15 SOUZA, Adalberto Pimentel Diniz de. A onerosidade excessiva nos contratos aleatórios. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, Faculdade de Direto do Largo do São Francisco, São Paulo, 2014. Pág. 132

16 BARCELOS, Soraya Marina. Fundamentos da obrigatoriedade dos contratos: o interesse social no contexto da imprevisão. Revista Jurisprudência Mineira, nº 194, Belo Horizonte, 2010. Pág. 32

17 WALD. Arnoldo. Direito Civil. Direito das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 310.

18 HORA NETO, João. A resolução por onerosidade excessiva no novo código civil: uma quimera jurídica?. Revista da ESMESE, nº 04, 2003. Pág. 50.

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Coordenação

Alexandre Junqueira Gomide é doutor e mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Especialista e mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Fundador e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário – IBRADIM. Diretor de Relações Institucionais do Instituto dos Advogados de São Paulo – IASP. Advogado, professor e parecerista.

André Abelha é mestre em Direito Civil pela UERJ. Fundador e presidente do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário - IBRADIM. Presidente da Comissão Especial de Direito Notarial e Registral no Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Professor na pós-graduação em Direito Imobiliário da Puc-Rio e em outras instituições. Sócio do escritório Longo Abelha Advogados.