Texto de autoria de Sarah Jones
Tema recente e palpitante se instaurou na comunidade jurídica e social a partir do início do julgamento realizado pelo Superior Tribunal de Justiça no dia 10 de outubro do corrente ano afeto a locação por temporada por meio da plataforma digital nos condomínios edilícios em contraposição às disposições previstas na Convenção Condominial, normativa interna esta cogente aos que ali residem estendidas à terceiros quando devidamente registrada no Cartório de Registro de Imóveis.
Neste desiderato, alguns pontos sensíveis são alvo de apreciação pela Corte Superior, quais sejam: a natureza jurídica desta modalidade de locação/hospedagem advinda das inovações tecnológicas que permeiam o mundo ao qual estamos inseridos a par de enquadrá-la como atividade comercial ou meramente residencial; a possibilidade ou não de restrição de um dos direitos mais nobres previstos na Carta Constitucional inserto no art. 5º, inciso XXII, a dizer, propriedade; e mais sensível ainda, a (im) possibilidade das normativas internas condominiais abolirem um dos atributos da propriedade representados pela disposição do bem pelo condômino.
O primeiro ponto a ser desvencilhado neste artigo e de forma a não esgotar as discussões que permeiam sobre o tema remonta a configuração da natureza jurídica híbrida ou mista do AIRBNB e assemelhados ao tocar em pontos que se assemelham à natureza de locação ao disponibilizar por certo espaço de tempo o uso e gozo da propriedade, ao passo em que se reveste de certa característica de hospedagem a partir do anúncio do espaço residencial para efeito de alojamento mediante reserva de acomodação, caso assim seja aceita pelo anfitrião.
Desta forma, os aplicativos possuem uma natureza unicamente intermediária, assim como as empresas de administração de imóveis.
Suplantado este ponto, mesmo que precariamente, partimos para o enfrentamento do tema correlato a possibilidade ou não de limitação do direito de propriedade no condomínio edilício quando o proprietário disponibiliza a unidade autônoma por prazo não superior a 90 (noventa) dias a terceiros na modalidade intermediada pelo AIRBNB ou aplicativos assemelhados.
Para tanto cumpre trazer lições preliminares sobre o conceito de condomínio edilício delineado por Luiz Antônio Scavone Júnior ao assim tecer: "é definido como o conjunto de propriedades exclusivas em uma edificação considerada unitária, com áreas comuns que se vinculam às unidades autônomas"1.
Uma vez elaborada a convenção condominial, segundo determina o art. 1.331 do Código Civil, esta deve ser subscrita pelos titulares por, no mínimo, dois terços das frações ideais, tornando-se obrigatória para os adquirentes e para todos que ali residem e exerçam sobre o imóvel a posse ou detenção. Conforme alude o artigo 1.351 do Código Civil "Depende da aprovação de 2/3 (dois terços) dos votos dos condôminos a alteração da convenção; a mudança da destinação do edifício, ou da unidade imobiliária, depende da unanimidade dos condôminos".
Ademais disso, no que tange ao conceito de propriedade, em que pese o Código Civil não o defina expressamente, seu conceito se escora na disposição inserta no artigo 1.228 do referido normativo legal ao elencar os atributos do proprietário ao se ter como norte o estudo dos direito reais do Código Civil, senão vejamos: "O proprietário tem a faculdade de usar, gozar, e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem injustamente a possua ou detenha".
Elencados os devidos conceitos, eis o liame causador do imbróglio jurídico e doutrinário acerca da definição da natureza jurídica da locação por temporada pela modalidade AIRBNB ou assemelhados, e se a sua utilização desnatura a destinação tida por residencial.
Para aqueles que entendem que se trata de serviço de hospedagem enquadrados na lei 11.771/2008 haveria a necessidade de alteração da destinação do imóvel ou de algumas de suas unidades, devendo-se, para tanto, a deliberação da totalidade dos condôminos para se exigir a eficácia da utilização da plataforma AIRBNB ou assemelhados na disposição da unidade imobiliária.
Para os que a enquadram como locação por temporada, e caso a convenção preveja destinação residencial, não haveria qualquer óbice para utilização da plataforma digital, ao se entender pela viabilidade de aplicação desta modalidade contratual disciplinada no art. 48 da lei 8.245/91.
O cerne da discussão e causador de posicionamentos controversos recai sobre as disposições legais previstas no artigo 232 da Lei da Geral do Turismo (lei 11.771/08) e o artigo 483 da lei 8.245/91 especificamente. Apenas para demonstrar ambos os argumentos sobre o enquadramento da natureza jurídica de prestação de serviço, para os que assim entendem, e outro pelo argumento que a consideram como locação, cumpre exemplificar a primeira linha de convencimento com supedâneo em um trecho constante no Parecer elaborado pela OAB/SP4, in verbis:
"A possibilidade hoje, de exploração pelos proprietários ou assemelhados nos termos da lei para hospedagens de terceiros (possuidores) em modalidade de uso similar ao 'AirBnB' ou qualquer outra forma de utilização não prevista na Lei de Locação, bem como outros contratos atípicos de cessão onerosa do espaço e, eventual permissivo legal encontra óbice claro na Convenção do Condomínio e Regimento Interno, instrumentos máximos de normatização da comunidade condominial.
(...) Assim, a utilização da unidade condominial residencial em desconformidade com o previsto na Convenção e Regimento Interno do Condomínio pode sim, levar ao questionamento por qualquer condômino que se sinta prejudicado, seja em razão das questões de segurança envolvidas nesta modalidade de locação atípica ou de hospedagem, em face da entrada ou saída indiscriminada de pessoas no condomínio, muitas vezes, sem controle algum, como já assentado em jurisprudência dos Tribunais,quer pelo superuso das instalações, infraestrutura e equipamentos de uso comum a todos, previstos originalmente de forma igualitária pelo instituidor do Condomínio, mas que,em razão deste tipo de uso de alta rotatividade beneficia uma única unidade condominial com um uso anormal daí, a teoria do “superuso” aludida por J. Nascimento Franco (Condomínio, ed. RT, 5ª ed. 195), também agassalhada por nossa jurisprudência, quer seja pela destinação diversa das unidades condominiais em relação àquela prevista originalmente pelo instituidor do Condomínio, que pode ter sido fator preponderante para a decisão de aquisição daquela unidade pelo condomínio insatisfeito. E nessa hora, poderá o condômino questionar judicialmente a decisão, inclusive, responsabilizando pessoalmente o Síndico no caso de omissão dolosa."
Em sentido contraposto, eis o posicionamento defendido pelo Ministro Luis Felipe Salomão no início do julgamento da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, in verbis:
"A jurisprudência delimita de maneira clara o contrato de hospedagem – que tem como atividade predominante nesse tipo de serviço o complexo de prestações.
O contrato de hospedagem compreende a prestação de múltiplos serviços, sendo essa se não a tônica do contrato (...) elemento inerente à sua configuração".
"(...) A alegação de alta rotatividade de pessoas, ausência de vínculo dos ocupantes e suposto incremento patrimonial dos recorrentes, não demonstrado, não servem para a configuração da exploração comercial dos imóveis, sob pena de desvirtuar a própria caracterização da atividade".
Neste sentir, o ministro considerou, no caso concreto, que há evidência de locação por temporada – seja no imóvel em que os recorrentes alugam cômodos ou no imóvel que alugam em sua totalidade, por prazos de curta duração: "As relações negociais mais se aproximam aos contratos locação por temporada".
Ademais disso, em termos práticos, qual previsão comumente é disciplinada nas Convenções Condominiais no que concerne aos direito e deveres dos condôminos? São elas, de forma exemplificativa: "São direitos dos condôminos usar, gozar e dispor de sua unidade autônoma, de acordo com o respectivo destino, desde que não prejudique a segurança e solidez do edifício, que não cause dano aos demais condôminos e não infrinja as normas legais e as disposições desta convenção". Ou ainda: "O condomínio se destina exclusivamente para fins residenciais, sendo expressamente proibi-lo usá-lo para fins de qualquer outra natureza".
Nota-se que as disposições transcritas apenas retratam os atributos da propriedade e a sua destinação sendo silentes sobre a possibilidade expressa da utilização ou impossibilidade de locação da unidade imobiliária por temporada intermediada por aplicativos de AIRBNB ou assemelhados.
Essa realidade é notória nas convenções condominiais elaboradas pelas incorporadoras em momento anterior ao surgimento da plataforma de locação por dispositivo digital, a citar, o AIRBNB, nascido em São Francisco (EUA) no ano de 2007.
Pela disposição convencional ali delineada e para aqueles que trilham o posicionamento pelo enquadramento na modalidade de locação ao qual me filio, compreende-se pela viabilidade da transação da propriedade por inexistir no ordenamento jurídico pátrio disposição expressa sobre o tema.
Noutro passo, para aquelas convenções condominiais que proíbem expressamente a locação pelas plataformas digitais, haveria uma restrição legítima da propriedade?
Reconhecendo nessa modalidade de utilização do imóvel uma locação por temporada, nos termos previstos em lei, não seria razoável a sustentação pela sua proibição. Calcando-se nos ensinamentos tecidos por Maria Helena Marques Braeeiro Daneluzzi e Maria Lígia Coelho Mathias5:
"Se a lei não só prevê como autoriza e regulamenta essa modalidade de locação, não há como subsistir argumentação em sentido contrário. De duas uma, ou se está utilizando terminologia imprópria para a figura jurídica ainda em construção ou não se está e, por conseguinte, a faculdade legal para tanto, prevista no art. 48 da lei de locação não pode ser obstada em respeito ao direito de propriedade".
Nessa linha de entendimento, o condomínio não poderá deliberar sobre a proibição da atividade, pois, ainda que aprovada por maioria absoluta, tratar-se-ia de ato jurídico nulo, por não traduzir a forma prescrita em lei, nos termos do artigo 166, inciso IV, do Código Civil Brasileiro.
Esta conduta violaria o direito de propriedade e de fruição através da locação, amplamente garantidos por leis federais, bem como uma garantia constitucional do princípio da legalidade descrito no artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal, assim dizente: "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei".
Em sentido diverso, tramita no Senado Federal Projeto de lei sob o nº 2.474 de 20196 apresentado pelo Senador Ângelo Coronel (PSD/BA) ao propor o acréscimo do art. 50-A na Lei do Inquilinato, que estabelece como regra a vedação de aluguel por temporada por site e/ou aplicativos. A exceção é a autorização para tal aluguel permitida apenas se houver autorização expressa na convenção do condomínio, a qual estabelecerá regras mínimas, a fim de evitar outros conflitos. Eis o teor da redação proposta, in verbis:
"Art. 50-A. É vedada a locação para temporada contratada por meio de aplicativos ou plataformas de intermediação em condomínios edilícios de uso exclusivamente residencial, salvo se houver expressa previsão na convenção de condomínio prevista no art. 1.333 da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002(Código Civil).
§ 1º Caso a convenção do condomínio autorize, a locação para temporada contratada por meio de aplicativos ou plataformas de intermediação sujeita-se às seguintes regras:
I – o prazo da locação será expresso em dias, semanas ou meses, observado o limite do art. 48 desta Lei.
II – o locador, independentemente de culpa, é, perante o condomínio edilício e os demais proprietários ou moradores, civilmente responsável pelos danos causados por pessoas que, em razão da locação, tenham tido acesso ao imóvel ou às áreas comuns do condomínio edilício, ainda que essas pessoas não constem formalmente do contrato de locação.
III–a locação poderá ter por objeto uma unidade imobiliária parte de condomínio edilício ou apenas um ou mais cômodos ou recintos.
IV – o locador é considerado consumidor perante o titular do aplicativo ou plataforma de intermediação.§ 2º Não se aplica ao locador, seja proprietário ou apenas possuidor, a obrigação do cadastro prevista no art. 22 da Lei nº 11.771, de 17 de setembro de 2008, desde que não realize a atividade de locação do imóvel profissionalmente (art. 966 do Código Civil)." (Grifos nossos)
Esse projeto tem por justificativa a regulação do mercado de locações residenciais de curta temporada ao passar por enorme expansão a partir de plataformas tecnológicas que permitem aos proprietários alugar seus imóveis de forma mais ágil, e a turistas e viajantes diversos encontrarem opções de hospedagem diferentes das que são oferecidas pelos meios tradicionais, como hotéis e pousadas.
Pelas razões aduzidas na justificativa:
"São enormes os impactos decorrentes da chamada 'economia do compartilhamento', em geral realizada por meio de aplicativos e plataformas de intermediação disponíveis na internet.
Não se pode negar o impacto positivo do avanço tecnológico, mas também não é razoável ignorar variáveis que acabam desvirtuando formas de usufruir da propriedade privada, principalmente quando interferem nos direitos de outros proprietários. O atual 'vazio legislativo' contribui para o aumento de conflitos nessa área.
Conflitos surgem dessa nova forma de negociar por que de um lado estão aqueles que não querem ver o condomínio residencial se transformar em um espaço de hospedagem concorrente de hotéis e pousadas, que não querem a elevação da rotatividade de pessoas que passam a circular pelo condomínio, que não querem a redução do nível de segurança para os moradores, que não querem a elevação dos gastos com limpeza e manutenção predial, etc.
De outro lado estão aqueles que, baseados também no direito de usufruir de sua propriedade privada, querem dar a ela uma destinação com maior aproveitamento financeiro, que querem ter uma renda extra, etc.
Em razão das diversas variáveis que impactam o tema, é preciso estabelecer regras claras e objetivas que contribuam para a segurança jurídica dessas relações.
A proposição que trazemos considera a vontade dos condôminos como o principal fator a ser considerado nesses casos. Prevalecendo entre os condôminos o sentimento de que essa forma de aluguel não traz prejuízo àquela coletividade de proprietários, poderão autorizar esse tipo de uso das unidades habitacionais. Se houver em outro condomínio resistência à ideia, também fica aberta a possibilidade de proibição da medida por meio de processo de votação adequado.
Com isso, estará protegida a função social da propriedade e do próprio condomínio, e ainda o respeito à original destinação do condomínio e ao bem geral daquela coletividade".
Quanto ao quórum de aprovação a ser considerado pelo condomínio, assim considera o Projeto de Lei, in verbis:
"O quórum escolhido para que o condomínio mude sua convenção coletiva e autorize a locação por temporada contratada por meio de aplicativos ou plataformas de intermediação está em harmonia com o que já prevê o Código Civil. Nos artigos 1.333e 1351está estabelecido que o quórum para aprovação e alteração da convenção é de 2/3 dos condôminos. Entendemos ser este o percentual adequado, pois permite que o condomínio faça uma opção de forma consolidada, após processo de votação com ampla participação dos condôminos."
Por fim elenca ainda o projeto de lei que: "Havendo a autorização expressa da convenção do condomínio, regras mínimas devem ser estabelecidas a fim de evitar outros conflitos."
Diante desse mar ainda revolto sem definições claras, não há dúvidas de que o direito de propriedade poderá sofrer restrições por inexistir direito absoluto no ordenamento jurídico brasileiro.
Havendo limitações disciplinadas na convenção condominial, entendo plausível e razoável respeitar a vontade comum dos que ali residem cabendo à administração condominial representada pelo síndico, síndico profissional e/ou administradora condominial procederem alterações mais rígidas no regramento interno causadores de problemas vinculados a perturbação ao sossego, segurança e saúde quando atualmente ineficientes.
Ademais disso, cumpre ainda disciplinar regramentos específicos sobre a nova prática de locação via plataforma digital por fugir à regra da locação usual adotada pelos proprietários, bem como a implantação de treinamento dos profissionais que ali laboram no intuito de se adequar à realidade presente no seio condominial valendo, sempre, pelo bom senso dos seres habitantes.
Viver em comunidade não é tarefa fácil, porém exige certa dose de educação e respeito com o próximo, uma vez que a propriedade "compartilhada" exige comportamentos diversos da vontade individual quando estamos diante do direito de vizinhança.
* Sarah Jones é advogada especialista em Direito do Estado pela UFBA. MBA em Direito Imobiliário pela DALMASS e árbitra da 2ª Câmara de Conciliação e Arbitragem de Goiânia/GO.
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1 SCAVONE JÚNIOR. Luiz Antônio. Direito Imobiliário – Teoria e prática. – 13ª ed. rev. e atual. e ampla. – Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 890.
2 Art. 23. Consideram-se meios de hospedagem os empreendimentos ou estabelecimentos, independentemente de sua forma de constituição, destinados a prestar serviços de alojamento temporário, ofertados em unidades de freqüência individual e de uso exclusivo do hóspede, bem como outros serviços necessários aos usuários, denominados de serviços de hospedagem, mediante adoção de instrumento contratual, tácito ou expresso, e cobrança de diária. § 1o Os empreendimentos ou estabelecimentos de hospedagem que explorem ou administrem, em condomínios residenciais, a prestação de serviços de hospedagem em unidades mobiliadas e equipadas, bem como outros serviços oferecidos a hóspedes, estão sujeitos ao cadastro de que trata esta Lei e ao seu regulamento.
3 Art. 48. Considera - se locação para temporada aquela destinada à residência temporária do locatário, para prática de lazer, realização de cursos, tratamento de saúde, feitura de obras em seu imóvel, e outros fatos que decorrem tão-somente de determinado tempo, e contratada por prazo não superior a noventa dias, esteja ou não mobiliado o imóvel.
4 BRASIL. PARECER JURÍDICO ELABORADO PELA OAB/SP SOBRE HOSPEDAGEM AIRBNB EM CONDOMÍNIOS EDILÍCIOS EXCLUSIVAMENTE RESIDENCIAIS. Acesso em 11 de novembro de 2019.
5 BRASIL. Artigo jurídico. Acesso em 10 de outubro de 2019.
6 BRASIL. SENADO FEDERAL. PROJETO DE LEI 2.474 DE 2019. Acesso em: 18 de dezembro de 2019.