Texto e autoria de Hamilton Quirino Câmara
Repercussões do caso Encol
Ao se falar em incorporação imobiliária, e particularmente em retomada de obras paralisadas, não há como ignorar o chamado Caso Encol, do qual participamos desde o final de 1997 e cuja experiência foi relatada por nós em livro específico1.
Com a paralisação de obras em todo o país (mais de setecentas!), verificamos o seguinte quadro em milhares de transações firmadas entre a empresa e os compradores: falta de instrumentos públicos de promessa de compra e venda; falta, em muitos empreendimentos, do memorial de incorporação perante o Registro de Imóveis; existência, em vários casos, de hipotecas que gravavam o terreno e as benfeitorias e centenas de ações judiciais em curso. Mesmo assim, milhares de compras foram realizadas – muitas delas à vista, numa demonstração de que muitas pessoas adquirem imóvel na planta sem a devida cautela.
Houve ainda pedidos de falência contra a empresa, ajuizados em Brasília. Posterior pedido de concordata distribuído e deferido em Goiânia deslocou para a capital do Estado de Goiás o foro competente, sendo ali, afinal, decretada a falência.
Como foi amplamente divulgado na época, houve grande clamor popular, mas o Governo não ajudou e nada se conseguiu dos bancos oficiais.
Ao contrário, o Governo, ou mais precisamente o Banco do Brasil, é que teria apressado o processo de quebra, na detalhada e documentada versão do então dono da Encol, Pedro Paulo de Souza2.
Assim, os próprios adquirentes, com recursos próprios, é que assumiram a grande maioria das obras, seguindo o passo a passo da lei 4.591/64: criação das Comissões de Representantes (artigo 50); averbação do direito real junto ao Registro de Imóveis (artigo 35, § 4o); destituição da incorporadora (artigo 43,VI); obtenção de alvarás judiciais para assunção das obras abandonadas (no caso de empresa falida -artigo 43, III) e leilões extrajudiciais em relação às unidades inadimplentes (artigo 63).
Além do livro já mencionado, que escrevemos contando a história de alguns empreendimentos do Rio de Janeiro, merece ser lido também "O Esqueleto Ressuscitado" – "Como um grupo de vítimas da Encol conseguiu resolver seus problemas". O grupo relata a experiência vivida para retomar e concluir o empreendimento Maison Bouganville, em Santo André, no ABC paulista. Uma frase de Platão mencionada no livro dá bem a noção deste trabalho: "Sejamos razoáveis, busquemos o impossível"3.
Mas o certo é que, passados mais de vinte anos, mesmo tendo atingido cerca de 42 mil famílias, o caso Encol não foi suficiente para evitar que, ainda hoje, muita gente continue a comprar imóvel na planta sem uma assessoria jurídica prévia, correndo sérios riscos. Embora em escala menor, não são poucas as empresas que deixaram e vêm deixando de concluir as obras dos empreendimentos imobiliários.
Tal fato decorre de má-gestão ou mesmo de má-fé, pois a atual legislação dá mais segurança jurídica e financeira aos investidores imobiliários (bancos, incorporadoras e outros agentes), através da alienação fiduciária e do patrimônio de afetação.
Outra questão relevante diz respeito à situação das hipotecas que gravam imóveis construídos ou em fase de produção, quando surge o problema de caixa. A Encol possuía cerca de 250 empreendimentos (parados ou prontos) com hipoteca pendente.
Até então (anos noventa), a tendência era a prevalência da hipoteca em detrimento do comprador, o que veio a mudar radicalmente, a partir de centenas de ações judiciais, visando à declaração judicial da ineficácia do gravame, culminando com a Súmula 308 do STJ:
"A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel." DJ 25.04.2005.
De toda forma, o caso Encol, que teve relação direta com a criação do patrimônio de afetação e os seguros destinados a garantir o término da obra, veio a despertar grande interesse no mundo acadêmico, como se pode ver da monografia da advogada Janiara Decker, de Canoas, RS, da Faculdade de Direito do Centro Universitário Ritter dos Reis, com o título "Falência do incorporador, a proteção e os efeitos sobre o adquirente de boa-fé"4.
A autora, em trabalho de grande pesquisa científica, demonstra a evolução ocorrida após o caso Encol em relação ao direito do consumidor, enfatizando o próprio Código Civil de 2002, que incorporou princípios importantes como a função social do contrato e a boa fé objetiva.
Hoje ainda há obras paralisadas de grande número de edifícios, de diversas incorporadoras, mas em menor número. O que se observa com frequência alarmante é o atraso de um, dois e até três anos. São jovens que vão se casar, um filho que vai sair de casa, alguém que lutou para conseguir o primeiro imóvel, e tais atrasos geram um grande número de problemas, difíceis de serem ressarcidos pela via judicial. O mesmo se pode dizer de empreendimentos comerciais ou mistos.
Retomada das obras pelos compradores: Ainda é uma boa solução
Diante de uma obra com atraso considerável, ou mesmo abandonada, ainda é muito comum a distribuição de ação que postula a rescisão do negócio, com devolução do valor pago, mais perdas e danos materiais e morais.
Se formos pesquisar a jurisprudência, inclusive do STJ, vamos encontrar inúmeros acórdãos condenando a incorporadora a indenizar o comprador, em caso de obra abandonada ou com grande atraso.
Nada há de errado nesse tipo de ação judicial, que, inclusive, ganhou nova roupagem com o advento da lei 13.786, de 27 de dezembro de 2018, que "altera as leis 4.591, de 16 de dezembro de 1964, e 6.766, de 19 de dezembro de 1979, para disciplinar a resolução do contrato por inadimplemento do adquirente de unidade imobiliária em incorporação imobiliária e em parcelamento de solo urbano".
Contudo, se a empresa está com dificuldade financeira grave, às beiras da insolvência, é arriscado trocar uma fração de terreno e benfeitorias adicionadas, por uma sentença que pode tornar-se inexequível (é o conhecido jargão de ganhar e não levar).
Assim, muitas vezes, independente de eventual ação para cobrar o prejuízo, sem postular a rescisão, pode-se recorrer à retomada das obras, para o que existe, naturalmente, um longo caminho a percorrer, mas que, muitas vezes, é a melhor solução.
O ponto de partida será a notificação judicial do incorporador, para que retome a obra, sob pena de destituição, na dicção do artigo 43 da lei 4.591:
Art. 43 – Quando o incorporador contratar a entrega da unidade a prazo e preços certos, determinados ou determináveis, mesmo quando pessoa física, ser-lhe-ão impostas as seguintes normas: (...)
VI – se o incorporador, sem justa causa, devidamente comprovada, paralisar a obra por mais de 30 (trinta) dias, ou retardar-lhes excessivamente o andamento, poderá o juiz notificá-lo para que no prazo de 30 (trinta) dias as reinicie ou torne a dar-lhes o andamento normal. Desatendida a notificação, poderá o incorporador ser destituído pela maioria absoluta dos votos dos adquirentes, sem prejuízo da responsabilidade civil ou penal que couber, sujeito à cobrança executiva das importâncias comprovadamente devidas, facultando-se aos interessados prosseguir na obra.
Inicialmente, a única providência judicial exigida é a prévia notificação, para constituição em mora do incorporador, ao dizer o texto legal que "o juiz notificará".
Fora daí, todo o desenrolar da destituição do incorporador, com as consequências advindas, é feita de forma extrajudicial (inclusive o leilão a ser feito em relação aos inadimplentes).
Quando o empreendimento está sob a tutela do patrimônio de afetação, mais atribuições são outorgadas aos compradores, como a outorga de escritura definitiva pela Comissão de Representantes, conforme o artigo 31-F, § 5º.
De toda forma, a intenção clara do legislador é que todo o processo se faça fora da via judicial.
Como está claríssimo no texto legal transcrito, "desatendida a notificação, poderá o incorporador ser destituído pela maioria absoluta dos votos dos adquirentes, sem prejuízo da responsabilidade civil ou penal que couber, sujeito à cobrança executiva das importâncias comprovadamente devidas, facultando-se aos interessados prosseguir na obra".
Assim, o mais difícil, até então, é reunir a metade absoluta (metade mais um) dos adquirentes, para destituir o incorporador, pois essa nova situação, de fato e de direito, não depende de chancela judicial.
Imissão de posse para a efetiva retomada das obras
O ponto mais nevrálgico vem a ser a imissão da posse do empreendimento, após destituído o incorporador. Afinal de contas, ao tomar para si o empreendimento abandonado, os adquirentes assumem também o ônus relativo à segurança do local e dos riscos deixados pelo incorporador.
O autor do projeto que resultou na lei 4.591 (Caio Mário), ressalta os pontos principais desta garantia legal dada aos compradores:
"Verificado o fato - paralisação ou retardamento excessivo - o incorporador será notificado para reinicia a obra ou imprimir-lhe andamento normal".
"Realizada esta, e decorrido o prazo de 30 dias sem que as obras se reiniciem ou o andamento readquira a normalidade, os interessados não precisam a juízo para resolver o contrato, porque a lei lhes oferece a faculdade de, pela sua vontade, destituírem o incorporador".
"Na verdade, lançá-los nos azares de uma demanda para, ao fim de luta porfiada, conseguirem com a resolução do contrato a liberdade de prosseguir com outro incorporador, ou tomarem diretamente a direção da edificação, sempre constituiu o maior obstáculo para que os interessados se movimentassem".
"Desde porem que a destituição se pode fazer sem necessidade de recurso à autoridade judicial, os interessados já têm a faculdade de examinar a oportunidade de deliberarem".
"Destituído o incorporador, os interessados se libertam dos compromissos e poderão prosseguir nas obras, sem que àquele assista mais qualquer direito".
"Ao revés, restam-lhe apenas deveres, dos quais é imediato o de restituir as importâncias comprovadamente devidas, que lhe poderão ser reclamadas por via executiva (art. 43, alínea VI)5.
Na grande maioria das vezes, o incorporados não se opõe e até colabora nessa fase, pois, afinal, se ele está com dificuldade de terminar a obra, os próprios compradores irão fazer isso no seu lugar. E assumir os demais ônus daí decorrentes.
Só excepcionalmente é que isso não ocorre, quando, então, torna-se indispensável recorrer à Justiça, com ação de imissão de posse, e pedido de tutela de urgência. Com efeito, para prosseguir a obra, é indispensável exercer a posse do empreendimento, pois é impossível fazê-lo à distância. Em algumas cirurgias é possível fazer pela medicina robótica. Mas na construção civil ainda não existe outra fórmula que não seja meter a mão na massa.
Neste sentido, recorre-se à jurisprudência do TJ/RJ, citando-se decisão constante da apelação cível 0050623-22.2012.8.19.0203, relator o Desembargador Gabriel de Oliveira Zefiro, em julgamento de 17 de abril de 2015, na 13ª Câmara Cível:
Civil. Ação de imissão de posse ajuizada por Comissão de Adquirentes em face da incorporadora de empreendimento imobiliário. Sentença de procedência do pedido. Julgamento antecipado da lide corretamente efetivado, com escopo na prova documental adunada aos autos, porquanto bastaram para o convencimento do destinatário (art. 130 do CPC), não havendo necessidade de prova pericial. Rejeição da preliminar de cerceio de defesa. Prova dos autos a evidenciar que o incorporador não registrou o memorial descritivo de incorporação e não providenciou a renovação da licença de construção, o que denota constrangimento ao artigo 32, "g", da lei 4591/64 e às normas de polícia edilícia. Além disso, a demandada foi notificada para regularizar o andamento da obra no prazo de 30 dias, ao qual não acudiu, o que culminou na sua destituição pela maioria dos votos dos adquirentes em assembleia legitimamente constituída, nos termos do art. 49, §1º, da lei 4591/64, em que a presença do incorporador ou construtor só é obrigatória quando convocantes, conforme exegese que resulta do §3º do art. 49 da referida lei. Sentença de procedência do pedido corretamente prolatada. Desprovimento ao recurso que pretendia revertê-la, porquanto manifestamente improcedente. Decisão pautada no art. 557, caput, do CPC.
Conclusão
Ferramenta colocada à disposição dos compradores de imóveis na planta, a retomada de obras abandonadas ainda é pouco utilizada, por desconhecimento de muitos, ou pela prática, habitual, de simplesmente ir a Juízo. Contudo esse procedimento, que não depende de tutela judicial, salvo a prévia notificação de constituição em mora, e eventual ação de imissão de posse, é feita pelos próprios adquirentes, através das deliberações de sua Assembeia Geral.
Hamilton Quirino Câmara é fundador e ex-presidente da CIMA - Câmara Imobiliária de Mediação e Arbitragem. Vice-presidente Imobiliário e árbitro do CBMA - Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem. Mediador do TJ/RJ e SECOVI RIO. Membro da Comissão de Direito Imobiliário e Urbanístico da OAB/RJ, da ABAMI e do IBRADIM. Autor dos livros Manual do Sindico, Gestão Condominial, Condomínio Edilício e Falência do Incorporador Imobiliário (Caso Encol). Colaborador dos jornais O GLOBO e EXTRA acerca das questões imobiliárias.
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Referências bibliográficas
Câmara, Hamilton Quirino - Falência do Incorporador Imobiliário, o Caso Encol, 2004, Ed. Lumen Juris
Souza, Pedro Paulo de, Encol, O Sequestro – Tudo o que você nao sabia. 2010, Bremen
Mituo Terame, Fausto Cestari Filho, Wilson Carrillo Dburanello, Odair Moretto e Paulina de Cássia Sanches Fildélfio, Ediões Inteligentes, Sao Paulo, 2006.
Pereira, Caio Mario da Silva, Condomínio e Incorporações, Forense, 11ª edição, págs. 252/253, (texto atualizado por Sylvio Capanema de Souza e Melhim Namem Challub).
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1 Câmara, Hamilton Quirino, Falência do Incorporador Imobiliário, o Caso Encol, 2004, Ed. Lumen Juris
2 Souza, Pedro Paulo de, Encol, O Sequestro – Tudo o que você nao sabia. 2010, Bremen
3 Mituo Terame, Fausto Cestari Filho, Wilson Carrillo Dburanello, Odair Moretto e Paulina de Cássia Sanches Fildélfio, Ediões Inteligentes, Sao Paulo, 2006.
4 Decker, Janiara, Falência do incorporador, a proteção e os efeitos sobre o adquirente de boa-fé, UniRitter, Canoas, RS, 2011.
5 Pereira, Caio Mário da Silva, Condomínio e Incorporações, Forense, 11ª edição, págs. 252/253, (texto atualizado por Sylvio Capanema de Souza e Melhim Namem Challub).