Migalhas Edilícias

A necessária distinção entre Direito Urbanístico e Direito do Ordenamento Territorial

A necessária distinção entre Direito Urbanístico e Direito do Ordenamento Territorial.

17/8/2018


Texto de autoria de Vinícius Monte Custodio

1. Introdução

O urbanismo1 esteve presente na história da humanidade desde a Antiguidade (v.g., na cidade imperial egípcia, na polis grega e na civitas romana), por exemplo, embasando normas sobre segurança e salubridade das edificações, com vistas à qualidade estética e ao ordenamento racional dos aglomerados urbanos2. Rigorosamente, contudo, o urbanismo ocupa-se da regulação edilícia apenas naquilo que respeita à edificação no conjunto da cidade, e não os aspectos técnico-funcionais das edificações individualmente consideradas3.

Ordenamento territorial é sobremodo mais recente do que o urbanismo, tendo aparecido, pela primeira vez, na França, na comunicação oficial "Pour un plan national d'aménagement du territoire" feita pelo ministro Claudius Petit no Conselho de Ministros em 1950, em que afirmou que o ordenamento territorial é a procura no quadro geográfico da França de uma melhor repartição dos homens em função dos recursos naturais e da atividade econômica4. A Carta Europeia de Ordenamento Territorial, elaborada pelo Conselho da Europa em 20 de maio de 1983, na cidade espanhola de Torremolinos, entende o ordenamento territorial como a expressão espacial de políticas econômicas, sociais, culturais e ecológicas de toda a sociedade. Ele é, pois, uma aproximação interdisciplinar e global voltada ao desenvolvimento equilibrado das regiões e à organização física do espaço segundo uma concepção orientadora.

2. Os diferentes conceitos de Direito Urbanístico

A doutrina não é uníssona quanto à definição do que se entende por Direito Urbanístico. Num conceito restrito, o Direito Urbanístico é "o sistema das normas jurídicas que, no quadro de um conjunto de orientações em matéria de Ordenamento do Território, disciplinam a atuação da Administração Pública e dos particulares com vista a obter uma ordenação racional das cidades e da sua expansão"5. Por esta concepção, então, o Direito Urbanístico não contempla a regulamentação jurídica do espaço rural nem as regras de equilíbrio entre a cidade e o campo.

Num conceito intermédio, o Direito Urbanístico, "ainda que ultrapasse as fronteiras da cidade, ou que não seja alheio às implicações de ordem econômica, social e ambiental que resultem das opções do ordenamento do território", é essencialmente "o conjunto de normas e princípios jurídicos que disciplinam a atuação da Administração e dos particulares com vista ao correto ordenamento da ocupação, utilização e transformação dos solos para fins urbanísticos" — grifos nossos6. Logo, não pertence ao Direito Urbanístico nenhuma atividade humana que se projete sobre o território senão aquelas que pretendam transformá-lo com fins urbanizadores e edificatórios.

Num conceito amplo, o Direito Urbanístico "é o conjunto de técnicas, regras e instrumentos jurídicos, sistematizados e informados por princípios apropriados, que tenha por fim a disciplina do comportamento humano relacionado aos espaços habitáveis"7. Por espaços habitáveis entende-se os efetivamente habitados, e não aqueles meramente potenciais, tais como os corpos hídricos (oceanos, mares, rios etc.), o espaço aéreo e os satélites (naturais e artificiais)8. Em suma, a disciplina urbanística coincide com a disciplina do território com solo9.

Para nós, o conceito intermédio é o que melhor esclarece o sentido e o alcance do Direito Urbanístico. De um lado, ele não incorre nas falhas existentes no conceito restrito, já que não restringe esse ramo jurídico ao solo urbano. Do outro lado, embora seja tão abrangente quanto o conceito amplo no tocante ao objeto, ele limita o Direito Urbanístico ao planejamento, gestão e disciplina do uso, ocupação e parcelamento do solo para fins urbanísticos. Assim, não inviabiliza a distinção entre Direito Urbanístico, Direito do Ordenamento Territorial e, inclusive, Direito Ambiental.

3. Os principais critérios distintivos entre Direito Urbanístico e Direito do Ordenamento Territorial

A relevância da distinção conceitual entre Direito Urbanístico e Direito do Ordenamento Territorial não é meramente acadêmica; antes, é mesmo prática e necessária, porque, em Estados federalistas como o nosso, "a definição e a identificação da matéria própria do ordenamento do território e do urbanismo tem especial importância para efeitos da separação de atribuições entre os diversos escalões do poder territorial" — grifos do original10.

Assim, o primeiro critério distintivo é o critério do âmbito territorial de aplicação, segundo o qual o Direito Urbanístico e o Direito do Ordenamento Territorial, ainda que com algumas sobreposições, diferenciar-se-iam pela escala. Enquanto este apenas faria sentido e teria utilidade em escala nacional ou regional, porque se preocupa com a manutenção ou a recuperação dos equilíbrios regionais (v.g., entre a capital e a província; entre o litoral e o interior; entre regiões ricas e regiões pobres; e entre zonas urbanas e zonas rurais); aquele seria essencialmente local, não cabendo falar em urbanismo nacional nem regional, porque lidaria tão somente com o ordenamento racional da cidade11.

O segundo é o critério da natureza jurídica dos procedimentos, segundo o qual o Direito Urbanístico empregaria procedimentos imperativos ou autoritários, enquanto que o Direito do Ordenamento Territorial reger-se-ia por medidas de cariz incitativo ou concertado12.

O terceiro é o critério da eficácia jurídica das normas, segundo o qual o Direito Urbanístico seria predominado por normas jurídicas concretas e precisas (de uso, ocupação e transformação dos solos), ao passo que o Direito do Ordenamento Territorial caracterizar-se-ia por normas jurídicas diretivas (de orientação e coordenação de ações a desenvolver nos quadros geográficos nacional e regional) e gerais (definidora de opções e estabelecedora de critérios de organização espacial).

O último é o critério finalista, o mais consistente para nós, segundo o qual o Direito Urbanístico diferiria do Direito Ordenamento Territorial pelos distintos fins com que se intervém nos solos. Enquanto o primeiro é o ramo jurídico que tem como finalidade o planejamento, gestão e disciplina do uso, ocupação e transformação do solo para fins urbanísticos; o último é o ramo jurídico que tem por finalidade articular e sintetizar todas as políticas socioeconômicas e setoriais com repercussão no solo, visando ao desenvolvimento equilibrado das regiões e à organização física do território segundo uma concepção orientadora.

Assim, pela teoria que vimos desenvolvendo até aqui, a decisão estratégica de construção, por exemplo, de uma linha de trem de alta velocidade interligando o município do Rio de Janeiro ao município de São Paulo seria operacionalizada por meio de um projeto previsto num programa setorial (de transporte) pertencente a um plano nacional, regional e/ou estadual de ordenamento territorial. Posteriormente, chegando ao nível local, tal projeto seria operacionalizado pelos planos urbanísticos municipais (dos diversos municípios ao longo do trajeto da linha, sem prejuízo da eventual celebração de consórcios públicos entre eles para o planejamento urbanístico de interesse comum), em especial o plano diretor, que haveriam de se articular com o planejamento de ordenamento territorial.

4. Competências constitucionais em matéria de Direito Urbanístico e Direito do Ordenamento Territorial

No âmbito do Direito Urbanístico, a Constituição da República atribui competência legislativa concorrente à União, estados e Distrito Federal (art. 24, inc. I), cabendo à União legislar sobre normas gerais (§ 1º) e aos estados e ao Distrito Federal suplementar a legislação federal (§ 2º). Na falta de norma geral da União, os estados e o Distrito Federal exercerão competência legislativa plena para atender a suas peculiaridades (§ 3º), até que a superveniência de lei federal sobre normas gerais suspenda a eficácia da lei estadual naquilo que esta for incompatível com aquela (§ 4º). Cabe ainda aos estados, com base na interpretação lógico-sistemática do art. 30, inc. IV, estabelecer normas gerais sobre a criação, organização e supressão de distritos. E também têm competência exclusiva para, mediante lei complementar, instituir regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, constituídas por agrupamentos de municípios limítrofes, para integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum (art. 25, § 3º). Compete aos municípios, nos termos do art. 30, inc. II, "suplementar a legislação federal e a estadual no que couber" – grifos nossos. O cabimento dessa competência suplementar municipal, em matéria urbanística, decorre diretamente de sua competência para "promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano" (art. 30, inc. VIII); e para executar a política de desenvolvimento urbano (art. 182, caput).

No âmbito do Direito do Ordenamento Territorial, a União goza de competência exclusiva para elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação territorial (art. 21, inc. IX). A União tem, ainda, competência exclusiva para "instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos" (art. 21, inc. XX), é dizer, somente lei federal pode estabelecer normas gerais sobre Direito do Ordenamento Territorial. Diferentemente dos planos urbanísticos, de viés menos estratégico e mais operacional, a ideia subjacente aos planos de ordenamento territorial é a da coerência espacial nas políticas socioeconômicas e setoriais, evitando-se com isso, por exemplo, a abertura de estradas que induzam ao desmatamento de florestas; a construção de aeroportos em cidades nas quais não exista demanda; a atividade agrícola em regiões onde não se disponha de meios de transporte para escoar a produção etc. Já os estados têm competência implícita (art. 25, §§ 1º e 3º) para aprovar planos estaduais, metropolitanos e microrregionais de ordenamento territorial, visando à articulação e interligação do planejamento de ordenamento territorial, de escala supramunicipal, com o planejamento urbanístico, de escala municipal ou, quando muito, metropolitana.

5. Conclusão

Nesta apertadíssima síntese procurou-se demonstrar, a partir do direito positivo brasileiro, com enfoque no regime constitucional de distribuição de competências, que a distinção entre Direito Urbanístico e Direito do Ordenamento não se justifica meramente por uma razão purista ou acadêmica, desprovida de significância real ou prática. A despeito da inexistência de um marco legal, bem como de planos, de ordenamento territorial no Brasil, está suficientemente claro que a Constituição da República endereçou aos entes políticos papéis distintos no que respeitam a essas duas funções públicas (urbanismo e ordenamento territorial), pelo que toca ao jurista identificar o sentido e o alcance de cada uma delas para um correto desenvolvimento e aplicação do Direito no país.

__________

1 Para uma versão completa das ideias aqui esboçadas, cf. nosso Direito Urbanístico e Direito do Ordenamento Territorial: contributos para sua distinção conceitual na ordem jurídica brasileira. In: Revista do Curso de Direito da Faculdade da Serra Gaúcha, vol. 12, n. 21, 2017, p. 60-84.
 
2 AMARAL, D. F. do. Ordenamento do território, urbanismo e ambiente. In: Revista Jurídica do Urbanismo e do Ambiente, n. 1. Coimbra: Almedina, 1994, p. 11.

3 Por essa razão, do ponto de vista da técnica legislativa, consideramos descabida a diretriz geral do art. 2º, inc. XIX, do Estatuto da Cidade, recentemente introduzida pela Lei Federal nº 13,699, de 02 de agosto de 2018, que dispõe sobre condições de acessibilidade, utilização e conforto nas dependências internas das edificações urbanas.

4 AMARAL, D. F. do. op. cit., p. 13.

5 Idem, ibidem, p. 17.

6 MONTEIRO, C. O embargo e a demolição de obras no Direito do Urbanismo. Dissertação (Mestrado em Direito). Universidade de Lisboa, 1995, p. 7; 9-10.

7 MOREIRA NETO, D. de F. Introdução ao Direito Ecológico e ao Direito Urbanístico, 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 56.

8 Idem, ibidem, p. 51.

9 SPANTIGATI, F. Manual de Derecho Urbanistico, trad. Traducciones Diorki. Madri: Montecorvo, 1973, p. 29.

10 OLIVEIRA, F. P. Portugal: território e ordenamento. Coimbra: Almedina, 2009, p. 27.

11 AMARAL, D. F. do. op. cit., p. 15.

12 FERNANDEZ, A. C. Instituciones de Derecho Urbanístico. Madri: Montecorvo, 1977, p. 36 apud MUKAI, T. Direito Urbano e Ambiental, 4. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 28.

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Coordenação

Alexandre Junqueira Gomide é doutor e mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Especialista e mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Fundador e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário – IBRADIM. Diretor de Relações Institucionais do Instituto dos Advogados de São Paulo – IASP. Advogado, professor e parecerista.

André Abelha é mestre em Direito Civil pela UERJ. Fundador e presidente do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário - IBRADIM. Presidente da Comissão Especial de Direito Notarial e Registral no Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Professor na pós-graduação em Direito Imobiliário da Puc-Rio e em outras instituições. Sócio do escritório Longo Abelha Advogados.