Migalhas de Vulnerabilidade

O caso Larissa Manoela e os paradoxos entre autonomia e proteção de crianças e adolescentes

A lógica de substituição da autonomia dos filhos pelas escolhas parentais parte de uma questionável hierarquização que prestigia a perspectiva adulta e, frequentemente, desprotege os sujeitos a quem o ordenamento jurídico declara dedicar atenção privilegiada.

31/8/2023

Era Dia dos Pais quando, em 2023, foi ao ar uma reportagem feita com a atriz Larissa Manoela Taques Elias dos Santos. Naquele domingo, ela expôs conflitos intensos com os genitores, que, ao administrarem o patrimônio acumulado pela filha durante uma infância e uma adolescência dedicadas à atividade profissional, parecem ter abusado das prerrogativas derivadas da autoridade parental. A atriz narra que os seus representantes detinham controle absoluto dos rendimentos derivados de sua precoce carreira artística. Restava-lhe, em verdade, apenas uma escassa mesada mensal para gastos pessoais.

É verdade que o art. 1.689 do Código Civil de 2002 prevê que aos pais compete, no exercício do poder familiar, administrar os bens dos filhos menores, e mesmo deles usufruir. Mas este poder previsto em diploma normativo deve ser funcionalizado a partir do melhor interesse da criança e do adolescente.

Tanto tal aspecto se confirma que o Superior Tribunal de Justiça, em 2018, viabilizou a pretensão de prestação de contas de um filho em face da própria genitora, a qual havia se responsabilizado por gerir pensão por morte do genitor do adolescente durante a menoridade civil. O processo, embora em segredo de justiça, foi noticiado pela sítio eletrônico do tribunal e abordou a conversão insuficiente, pela ré, de valores em produtos e serviços capazes de assegurar a dignidade do jovem. Segundo a compreensão da Corte, o indício de mau uso das prerrogativas de administração patrimonial dos bens da prole autoriza este encaminhamento.

Como se percebe, a lógica de substituição da autonomia dos filhos pelas escolhas parentais parte de uma questionável hierarquização que prestigia a perspectiva adulta e, frequentemente, desprotege os sujeitos a quem o ordenamento jurídico declara dedicar atenção privilegiada.

Ilustrativamente, Larissa Manoela exteriorizou que: "só queria entender então esse negócio. Como estava essa questão financeira, que nunca me era apresentada, que eu não sabia o que eu recebia ou o que estava sendo pago". De fato, a exclusão de quem é considerada absoluta ou relativamente incapaz para os atos da vida civil de qualquer processo decisório autoriza que o abuso parental se revele – e os aspectos patrimoniais nem configuram os mais preocupantes efeitos deste acontecimento.

As cifras milionárias que acompanham o caso são mais um ingrediente, unido a um rosto comum a toda uma geração de expectadores brasileiros, para que a mídia invista neste conflito familiar como exitosa receita para comover um extenso público.

Por exemplo, menos solidariedade entre a sociedade civil despertam os processos decisórios tensos envolvendo a capacidade civil de crianças e adolescentes transexuais que desejam algum grau de modificação corporal ou jurídica para compatibilizarem a expressão de seu gênero a estes demais aspectos. E, do ponto de vista do próprio trabalho infantil, a realidade brasileira não é de contratos análogos aos de Larissa Manoela.

Atualmente, o Código Civil Brasileiro é insuficiente para solucionar a pretensão de ampliação de participação infantojuvenil em discussões que lhes digam respeito. Embora o Estatuto da Pessoa com Deficiência (lei 13.146 de 2015) tenha comprovado que é possível repensar os limites clássicos da incapacidade civil para melhor adequar os paradoxos entre autonomia e proteção de vulneráveis, para a infância e para a adolescência, houve pouco progresso legal desde a primeira codificação nacional, em 1916.

De maneira a explicitar uma nova forma de se conceber a relação envolvendo a autoridade parental e a autonomia dos filhos o Código Civil da Argentina (lei 26.994/2014) inaugura a autonomia progressiva dos adolescentes em seu artigo 26. Em linhas gerais, permite-se que os filhos exerçam com certa liberdade atos que envolvam seus direitos, bem como que sejam ouvidos em todos os processos judiciais que lhes digam respeito. Podem, inclusive, participar ativamente na tomada de decisões que os envolvam.

Entendeu-se que, de forma progressiva, conforme o desenvolvimento psicofísico, o filho adquire uma maior consciência que reflete nos atos e nas decisões que permeiam a sua vida. Por exemplo, o Código Civil da Argentina prevê que os adolescentes entre 13 (treze) e 16 (dezesseis) anos de idade determinem os tratamentos a que se submetem, desde que não sejam invasivos e que não comprometam o seu estado de saúde ou lhes tragam a algum risco à vida e à integridade física. Quando se tratar de tratamentos invasivos o adolescente deve dar o seu consentimento assistido pelos pais. E quando o adolescente completar 16 (dezesseis) anos será considerado adulto para as decisões que se vinculem ao cuidado do próprio corpo.

Conceber a autonomia progressiva é de fato acolher a nova realidade que se impõe, é superar o estático conceito de capacidade civil que se baseia em faixas etárias, em que em um momento não se pode nada - menoridade - e em outro pode-se tudo - maioridade.

Enquanto o Brasil seguir no entendimento de que o menor de 16 anos de idade é absolutamente incapaz, coaduna-se com práticas parentais despóticas e que em muitos casos não prioriza o melhor interesse das crianças e adolescentes, sejam em questões patrimoniais – como é o caso da Larissa Manoela – ou existenciais.

Dizer que uma pessoa é capaz ou incapaz é reduzir a sua existência e o seu desenvolvimento, pois a cada dia, a cada semana, a cada mês e a cada ano existe um crescimento, um aprendizado, uma compreensão do mundo e de si mesmo. Logo, a autonomia não é estática. É progressiva. A escuta da criança ou do adolescente envolvendo aspectos patrimoniais e existenciais de sua vida deve ser um Direito vetor não apenas das demandas judiciais, mas em instâncias administrativas, familiares, educativas, etc.

O Direito brasileiro deve implementar mecanismos que estimulem uma maior autonomia infanto-juvenil e não apenas a punição por práticas parentais desviantes do standard normativo. As discussões recentes sobre a revisão do Código Civil de 2002 podem ser proveitosas para a incorporação de soluções mais contemporâneas sobre estes recém-qualificados sujeitos de direito em nosso ordenamento jurídico.

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Coordenação

Thamis Dalsenter é coordenadora acadêmica do Instituto de Direito da PUC-Rio. Doutora em Direito Civil pela UERJ. Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional da PUC-Rio. Professora de Direito Civil do Departamento de Direito da PUC-Rio.