Introdução
O cuidado é parte integrante da vida, uma característica própria da humanidade, desde a mais antiga história do mundo. O cuidado humano surge com a própria vida tendo por finalidade preservá-la, fortalecê-la e aperfeiçoá-la. Inicia como um meio de sobrevivência e também como expressão de interesse e afeto (WALDOW, 1992).
Na perspectiva de compreender o que é cuidado, encontramos diversos significados complexos trabalhados por diferentes concepções teóricas. Assim a palavra “cuidado” remete a ideia de fazer algo, de realizar uma ação, assumindo a conotação de atenção, simpatia, preocupação com alguém ou alguma coisa e a ideia de amor, carinho e dedicação.
Na perspectiva foucaultiana, o cuidado é substituído pelo cuidado de si, discutido por ele no início dos anos de 1980, quando o filósofo discute a produção de subjetividade a partir da relação do sujeito consigo mesmo, abordando por meio do conhecimento socrático-platônico da arte da existência.
A temática do cuidado de si aparece nas obras de Foucault no período denominado como Foucault tardio ou último pensamento, especialmente ao escrever a história da sexualidade em seu terceiro volume - A História da Sexualidade III – o cuidado de si. Para tanto, também aborda aspetos da subjetividade trabalhados na Hermenêutica do Sujeito.
No curso ministrado no College de France, e que foi posteriormente editado na obra Hermenêutica do Sujeito, Michel Foucault afirma que era necessário estudar no pensamento antigo, mais especificamente grego e romano, o conceito de cuidado de si, a fim de se entender melhor as relações de sujeito e verdade.
Foucault reporta que um dos estatutos do sujeito era o sujeito do cuidado de si, que se tratava de uma prática da liberdade que implica a criação e invenção de si mesmo como sujeito. Logo, a partir do conhecimento de si, as pessoas poderiam realizar dietas, exercícios, sexo, banhos, sem a necessidade de recorrer a especialistas, já que a pessoa mais indicada para esse cuidado é o próprio sujeito. O cuidado de si implica a relação de si consigo, um trabalho incansável de construção de si mesmo (FOUCAULT, 1994).
O conceito do cuidado de si (denominado de epiméleia heautou) é, para Foucault, rico e complexo e pode ser definido sinteticamente como o ocupar-se de si mesmo, preocupar-se consigo. Para este pensador, ele, o cuidado de si, não cessou de constituir um princípio fundamental característico na filosofia ao longo de quase toda a cultura grega, helenistica e romana (FOUCAULT, 2011).
Ademais, os trabalhos que um sujeito realiza vinculados ao cuidado de si aparecem como uma fórmula com a qual resistir aos embates e processos de (des)subjetivação por parte do Estado através das biopolíticas (BUB et al., 2006).
Nesse contexto, o presente estudo objetiva refletir sobre a importância do cuidado de si e da resistência a des(subjetivação) para o cuidado com o outro, na perspectiva de Michel Foucault.
Para tanto, realizamos a análise de alguns temas presentes no terceiro volume da História da Sexualidade – O Cuidado de Si (FOUCAULT, 1985), assim como de outros textos que tratam da temática, como a Hermenêutica do sujeito e ainda de livros e artigos de outros pensadores para melhor compreender a relação do cuidado de si com o cuidado do outro, abarcando também os aspectos da biopolítica para o cuidado de si e do outro.
O cuidado de si para Foucault
O cuidado de si para Michel Foucault é uma via alternativa para rever o modelo de sujeito e sociedade desenvolvidos e praticados na modernidade, uma vez que o cuidado de si é a atitude que o sujeito estabelece consigo mesmo no propósito de alcançar a verdade acerca de sua própria natureza. Exige um exercício ético e espiritual, no qual o indivíduo preocupa-se consigo por meio de práticas de si, envolvendo aprendizado e reflexão em direção ao próprio interior, autodeciframento, exame, exercício sobre si mesmo, transformação de si, autocontrole.
Para tanto, é necessário que haja o retorno a si, ou a saída de um estado subjetivo de descuido de si, uma seja, uma mudança ou transformação da subjetividade. Em seu livro “A Hermenêutica do Sujeito”, Foucault (2004), coloca que o cuidado de si é uma espécie de aguilhão que deve ser implantado na carne dos homens, cravado na sua existência, e constitui um princípio de agitação, um princípio de movimento, um princípio de permanente inquietude no curso da existência.
O termo grego para cuidado de si, epimeleia heautou, envolve a ideia de cuidar de si mesmo, ocupar-se consigo mesmo, preocupar-se consigo mesmo. A noção de epimeleia heautou foi se ampliando e tomando diversos caminhos e significações partindo da filosofia grega, passando pelo helenismo e chegando até a espiritualidade cristã (GRABOIS, 2011). Para discorrer sobre tais as transformações do conceito de cuidado de si na tradição ocidental, Foucault investiga três momentos: o socrático-platônico, a idade de ouro nos séculos I e II d.C. e na passagem aos séculos IV e V d.C.
Tal transformação influenciou claramente as culturas posteriores. O cuidado de si tornou-se um verdadeiro fenômeno cultural como princípio de toda conduta racional, em toda forma de vida ativa que queria obedecer ao princípio da racionalidade. Assim, o objetivo de Foucault ao discutir o cuidado de si em diferentes momentos históricos era de destacar as relações subjetividade/verdade de uma maneira mais geral, colocando-as na dimensão histórica e, sobretudo, mostrar que, com a evolução, o cuidado de si tornou-se um verdadeiro fenômeno cultural como princípio de toda conduta racional, em toda forma de vida ativa que queria obedecer ao princípio da racionalidade moral.
O momento socrático-platônico é considerado como o momento do surgimento do cuidado de si na reflexão filosófica. Neste período o cuidar de si é uma atividade política, na qual é necessário ocupar-se consigo mesmo, preocupar-se consigo, conhecer-se para conseguir cuidar do outro, governar cidades. Destacam-se as ideias de Sócrates, Platão e Hipócrates. No que se refere às práticas de cuidado de si, apontam-se diversas técnicas que são destinadas aos jovens e que requerem concentração, tais como as de meditação, de memorização do passado, de exame de consciência, do retiro, de resistência às tentações, de respiração e de preparação para o sonho (FOUCAULT, 2006). Além disso, ressaltam-se práticas relacionadas com a dieta (FOUCAULT, 1984).
Posterior ao momento socrático-platônico, Foucault discute a idade de ouro para o cuidado de si, a qual abrange os séculos I e II d.C, havendo transformações no cuidado de si neste período, uma vez que o objetivo a ser alcançado passa a ser a finalidade em si mesmo e não a cidade, como no período anterior. E a forma principal passa a estar relacionada a uma prática de si e não mais ao conhecimento de si (FOUCAULT, 2006).
O cuidado de si é considerado então, uma obrigação permanente que deve durar a vida toda, não tendo uma idade para ela iniciar na vida da pessoa, não sendo considerado nunca muito cedo nem muito tarde para ter cuidados com a própria alma (FOUCALTU, 2010).
No momento cristão, III e IV d. C., o cuidado de si está relacionado à renúncia de si e não ao retorno a si, como na Antiguidade greco-romana. Nesse período se propõe o sacrifício, a renúncia a si em função de uma palavra dita por outro. O sujeito passa a ser guiado por meio da confissão cristã (FOUCAULT, 2012). Portanto, a moralidade cristã baseia-se na renúncia a si como forma de salvação. O indivíduo moderno constituído pela norma e pela disciplina, não tem no seu processo de constituição uma relação consigo mesmo, pois as regras impedem que tal relação ocorra. Sendo assim, o cuidado de si, sob a ótica do cristianismo, volta-se unicamente para o cuidado do outro, perdendo-se a autonomia do sujeito.
Ao verificarmos as noções de cuidado de si e sua interligação com momentos históricos, identificamos as principais características do cuidado de si, como cuidar da própria alma, aprender a viver, ter a possibilidade e o dever de ocupar-se de si; uma verdadeira prática social. O cuidado de si aparece intrinsecamente ligado a um serviço de alma que comporta a possibilidade de um jogo de trocas com o outro e de um sistema de obrigações recíprocas; uma prática, ao mesmo tempo pessoal e social onde o conhecimento de si ocupa evidentemente um lugar considerável.
O que podemos ressaltar então, com relação a noção do cuidado de si, é que o mesmo consiste em uma atitude para consigo, para com os outros, para com o mundo. Cuidar de si implica que se converta o olhar do exterior, dos outros, do mundo, dentre outros aspectos para si mesmo. O cuidado de si implica uma certa maneira de estar atento ao que se pensa e ao que se passa no pensamento. (FOUCAULT, 2010, p. 11-12).
O cuidado de si como eixo norteador para o cuidado dos outros
Uma análise superficial sobre o “cuidado de si” induz a interpretá-lo com uma visão egoísta e individualista do homem voltada para a ocupação egocêntrica sobre si (FOUCAULT, 2006). Contudo, com um aprofundamento da leitura foucaultiana é possível compreender que para este filósofo o cuidado de si é um arcabouço imprescindível para o cuidado dos outros (FOUCAULT, 2008), especialmente por considerar que os sujeitos se inter-relacionam. Esta visão mais ampla refere-se ao momento socrático-platônico em que o cuidado aos outros era excitado, especialmente por Sócrates.
Sobre este momento, a noção de cuidado de si referiu-se ao termo “ocupar-se consigo mesmo”, que segundo Foucault indica uma relação “singular, transcendente, do sujeito em relação ao que o rodeia, aos objetos que dispõe, como também aos outros com os quais se relaciona (...)” (FOUCAULT, 2010, p. 50).
Assim, esta relação interpessoal e recíproca entre o “eu” e o “outro” está pautada na noção que ele mesmo denominou de governamentalidade (FOUCAULT, 2008), no sentido moral e não estatal, pois a maneira pela qual nos conduzimos é um domínio constitutivo desta noção e está intimamente atrelada ao modo como governamos os outros (FOUCAULT, 2004). Portanto, a governamentalidade diz respeito ao modo como nos conduzimos e conduzimos os outros.
Desse mesmo modo, também não pode ser concebida a ideia de passividade e conformismo, pois o cuidado de si é um “princípio de agitação, um princípio de movimento, um princípio de inquietude permanente” (FOUCAULT, 2006, p. 11).
Assim, para exercer tal governamentalidade é necessário ser ativo sem anular a liberdade daquele que é conduzido, pois esse “outro” também apresenta uma maneira própria de governar a si mesmo e pode apresentar como reação uma resistência ao poder pelo modo de governar pré-existente, o que produz um novo ponto de partida. Esta é uma dimensão política do cuidado de si, manifestada pelo poder e resistência de maneira cíclica (CANDIOTTO, 2010).
Como governar bem é inicialmente agir sobre si mesmo (CANDIOTTO, 2010), somente quem cuida adequadamente de si, encontra-se em condições de cuidar e relacionar-se com os outros. Na governamentalidade a preocupação com a ética, ou com a prática da liberdade, ocorre por meio da “ocupação de si” como base de aperfeiçoamento pessoal que é essencial para não ser escravo de si nem dos outros (FOUCAULT, 2010). Esta é a dimensão ética do cuidado de si, que implica em um jogo do eu para consigo, onde o sujeito trava uma luta interna entre consentir aos seus desejos e a sua limitação pelas práticas de liberdade (FOUCAULT, 2004b).
Diante do exposto, nota-se que o cuidado dos outros, segundo uma visão foucaultiana, é possível por imersão primária ao cuidado de si. Muchail interpreta que para Foucault o cuidado de si alcança as mais diversas formas de relacionamento, podendo “expande-se aos círculos de amizades [...], de parentesco, de profissão, quer em forma individualizadas (aconselhamentos, confidências), quer institucionalizadas e coletivas [...] (2011, p. 76). Portanto, o cuidado de si é imprescindível para a constituição da subjetivação do sujeito em constante interação com o outro.
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1 FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito (Resumo dos Cursos do Collège de France/1970-1982). Rio de Janeiro: Zahar, 2010. Foucault M. O uso dos prazeres. 7ª ed. Rio de Janeiro: Graal; 1994.
2 A ética do cuidado de si como prática de liberdade. In.: Ditos & Escritos V – Ética, Sexualidade, Política. Rio de Janeiro: Forence Universitária, 2004.
3 História da sexualidade II: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1984.
4 Microfísica do Poder. 22ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006.